Bolcheviques negros e mentiras brancas

Muita informação sem sentido foi escrita sobre a posição da Rússia de Putin subverter “nossa democracia”. Como se a nossa democracia estivesse funcionando perfeitamente (ou até razoavelmente) bem, até que essas sombrias forças russas comprassem alguns anúncios do Facebook que nos enviaram para as ruas. É um conceito ridículo. Me desculpe, mas foi Putin quem absolveu George Zimmerman ou Jason Stockley? Foi Putin que atirou em Tamir Rice, um garoto de 12 anos? A Rússia não realizou nenhuma guerra as drogas contra os afro-americanos, implementou políticas de encarceramento em massa ou aprovou a lei de identificação de eleitores nos EUA – Tudo isso que contribuiu para marginalizar milhões de afro-americanos ao longo dos anos. Os EUA tem muito o que responder acerca de sistematicamente negar os direitos dos afro-americanos e essa não é a primeira vez que eles tentam se desviar das criticas e culpam a Rússia. Como uma estudante de historia, só revirei meus olhos enquanto os Democratas tentavam fazer as antigas táticas de red-scare, novas. Mas uma nova entrada no cânone de “ativistas negros são fantoches de Moscou” é tão insultante e tão falsa, que já que nos aproximamos do aniversário do centenário da Revolução Russa, uma resposta a isso se mostra importante.

Semana passada um autor chamado Terrel Jermaine Starr escreveu um texto para a The Root intitulado, “Russia’s Recent Facebook Ads Prove the Kremlin Never Loved Black People.” (Os recentes anúncios da Rússia no Facebook provam que o Kremlin nunca amou pessoas negras).

Já gostei de alguns textos da The Root antes, particularmente das crônicas sobre ataques racistas contra afro-americanos que são subestimados na mídia convencional. Mas a sua vontade de ficar na linha do Partido Democrata, sem critica na maioria das vezes, tem sido notada.

O texto de Starr é supostamente histórico em seu escopo, mas ele é baseado numa grande falácia histórica: a de confundir a Federação Russa com a União Soviética. Em uma frase, Starr descreve os dois como essencialmente o mesmo (mostrando a você o nível de análise histórica material que ele está interessado em se envolver) e, em seguida, o resto do artigo prossegue para reduzir a história do comunismo negro, usando o argumento preferido pelos racistas – que os negros eram a favor do socialismo porque foram enganados, e que a União Soviética só estava interessada na libertação negra, na medida que significava cuspir seus inimigos subindo na vida para a Casa Branca.

Essas afirmações negam a agência de afro-americanos, muitos dos quais estavam entre os intelectuais negros mais proeminentes de seu tempo, que olhavam para o sistema soviético como uma alternativa ao racismo e à exploração americana. Esta interpretação também nega a verdadeira solidariedade e apoio que a União Soviética expressou em sua assistência aos movimentos de libertação de muitas pessoas negras, marrons e oprimidas em todo o mundo. Já que a propaganda anticomunista é tão facilmente espalhada sem evidência neste país, permitam-me apresentar algumas das evidências que expõem essas mentiras racistas pelo que são.

A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas nasceu via uma revolução em 1917 e foi derrubada por uma contrarrevolução em 1991. Mesmo com os russos sendo a maioria da população, a própria URSS foi uma sociedade extremamente diversificada e vibrante por toda a sua existência. A União Soviética ocupava 14 fuso horários e compreendia muitas nacionalidades independentes e grupos étnicos, como os tajiques, os cazaques, os lituanos, os tártaros – todos os quais falavam diferentes línguas, praticavam diferentes religiões – e sofriam uma terrível opressão racista sob o czar. O triunfo da revolução socialista e a própria existência dessa formação política única foi o resultado de uma revolução realizada pelos povos oprimidos unidos, que se levantaram como um e tomaram o controle da sociedade longe de seus exploradores czaristas e capitalistas. Os bolcheviques sempre tomaram a tarefa de unir os diferentes povos oprimidos e elevar sua luta seriamente. Esta foi uma grande chave para o seu sucesso e um princípio orientador para o trabalho deles. Foi Lênin quem foi pioneiro na oposição comunista ao imperialismo e foi ele quem adaptou a formulação marxista de “trabalhadores de todo o mundo uni-vos” para “trabalhadores e povos oprimidos de todo o mundo uni-vos”, como uma expressão que mostrava a prioridade que eles colocavam na luta dos povos colonizados contra o imperialismo.

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“As pessoas da África irão dominar seus colonizadores” – Cartaz de propaganda de 1960 por Kukryniksy

Em todo o mundo, o triunfo de Lênin e os bolcheviques de 1919 foram saudados pelos imperialistas com grande desânimo e pelos povos oprimidos/colonizados com grande entusiasmo, inspiração e esperança. Na América, 1919 foi um ano infame, conhecido por seu “Verão Vermelho” de linchamentos intensos, distúrbios raciais e terríveis violências contra os afro-americanos nas mãos das multidões brancas. O movimento político dos negros americanos entrou em uma nova era de militância, já que os veteranos que retornavam da Primeira Guerra Mundial estavam menos inclinados a se submeter a Jim Crow (política de segregação contra afro-americanos) e mais inclinados a lutar pela dignidade, salários e direitos. Uma nova onda de intelectuais radicais negros tomaram a cena política negra, muitos vindo do Caribe e principalmente com sede no Harlem dos anos 20 e 30. Esses homens e mulheres foram considerados alguns dos principais pensadores e escritores de seu tempo e a maioria desses líderes radicais afro-americanos – independentemente da orientação política – via a revolução russa com bons olhos.

De acordo com o historiador Winston Jones, no seu trabalho “Erguendo a Bandeira da Etiópia”, o apelo da Revolução Russa pelas pessoas negras da América no seu tempo não veio deles serem “recrutados” pela Rússia como o artigo da The Root diz, mas sim de suas próprias e independentes avaliações sobre o governo Bolchevique e sobre onde ele se posicionava em relação a igualdade das pessoas oprimidas e colonizadas.

James escreveu sobre três fatores importantes que atraíram os negros ao bolchevismo nas décadas de 1920 e 1930. A primeira foi a política doméstica de promoção de minorias nacionais e grupos oprimidos que foi implementada quase imediatamente após o triunfo da revolução. Após a revolução, o governo bolchevique empreendeu o que pode ser descrito como o plano de ação afirmativa mais abrangente que um governo já tentou, dedicando muito de seus limitados recursos para elevar o padrão de vida de grupos que haviam sido historicamente oprimidos e criando condições que poderiam facilitar uma maior igualdade para esses grupos.

Para os negros americanos, o exemplo mais convincente foi a rapidez e a seriedade com que os soviéticos começaram a corrigir a desigualdade histórica sofrida pelos judeus, incluindo a proibição imediata de discriminação contra eles e fim aos pogroms violentos que os haviam atormentado sob o Czar. Em 1923, Claude McKay, o jovem intelectual, escritor e poeta negro escreveu: “Para os negros americanos, o fato incontestável e notável da Revolução Russa é que um mero punhado de judeus, muito menos em relação ao número de negros na população americana, alcançaram, através da Revolução, todos os direitos políticos e sociais que lhes foram negados sob o regime do czar (166) “.

Os outros dois fatores explorados por James foram a “retórica intransigente do anti-colonialismo, do anti-imperialismo e do direito à autodeterminação das nações oprimidas (165)” adotada pelo governo bolchevique e a criação da Terceira Internacional Comunista, um órgão internacional que encorajou abertamente as pessoas colonizadas (muitas vezes, negras ou marrons) a se levantar contra seus exploradores (na maior parte europeus) em todo o mundo.

Em um momento em que o governo dos EUA ignorou sistematicamente os pedidos da população negra para passar pelo menos uma lei federal contra o linchamento, quando cidades e estados foram coniventes com linchamentos, protestos racistas e brancos que atacavam negros e saiam livres, ou até ganhavam recompensas – não é necessário um gênio para descobrir porque vários pensadores negros estavam genuinamente animados com um tipo de governo tão diferente, um que falou com eles e tomou ações para apoiar suas próprias minorias nacionais, que veio ao mundo.

Preto e Branco (filme)

Langston Hughes foi um intelectual negro desta geração, a mesma geração que se associa ao Renascimento do Harlem e ao New Negro. De todos os insultos enterrados nesse artigo da The Root, o desrespeito a Langston Hughes, indiscutivelmente um dos maiores escritores americanos do século XX, é um dos mais difíceis de suportar. Starr pinta Hughes como um ingênuo, alguém ”recrutado” para defender a União Soviética, como se o homem não tivesse viajado por todo o mundo, estudado e escrito extensivamente e não era capaz de genuinamente apoiar um governo que ele acreditava estar no caminho certo. Veneramos a poesia de Hughes que celebra a beleza negra, ele é o poeta de jazz laureado da América negra e nos amamos recitar suas palavras que afirmam nossa profunda história e nossa continua luta em face do racismo americano branco. Mas e sobre sua poesia que celebra a União Soviética? Aqui está um link para um poema que ele escreveu louvando Lênin. Eles mostraram isso pra você no mês da história negra da sua escola? Provavelmente não. O fato é que Langston Hughes era extremamente simpático a União Soviética, como é bastante evidente em sua autobiografia “I Wonder as I Wander”, incluída no capitulo “O filme de Moscou.”

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Langston Hughes no Turquemenistão

O artigo da The Root fornece talvez a leitura mais cínica e superficial deste capítulo possível, embora eu hesite em afirmar que o autor daquela peça até mesmo leu o capitulo. “O filme de Moscou” conta uma história importante sobre uma época em 1932, quando Langston Hughes foi convidado para a União Soviética pelo governo, para trabalhar em uma grande produção cinematográfica. O filme se chamaria “Preto e Branco” e seria feito para mostrar a luta dos trabalhadores negros no sul dos EUA e dar uma atenção internacional ao racismo e a opressão sofridas pelas pessoas negras na América. De acordo com Langston Hughes, era “pra ser o maior filme sobre negros já feito no mundo (80),” embora infelizmente o projeto não deu frutos.

Hughes foi acompanhado de uma delegação de 22 jovens afro-americanos que deveriam estrelar o filme, embora tenha sido estranho que a maioria desse grupo não fossem atores ou artistas. Starr atribui erroneamente este elenco ao racismo, dizendo que Hughes determinou que os soviéticos eram tão racistas que eles assumiram que todos os negros podiam cantar e dançar (e praticar esportes?) e, portanto, não se preocupou em verificar os antecedentes das pessoas que contrataram para o filme.

Na verdade, Hughes não disse nada disso. Ele abordou a composição peculiar da delegação no início do capítulo, afirmando: “A maioria do nosso grupo não serem atores parece decorrer devido ao fato de que muito poucos profissionais do teatro estavam dispostos a pagar suas próprias despesas para viajar todo o caminho para a Rússia para assinar contratos que nunca tinham visto antes. Apenas um bando de estudantes jovens, professores, escritores e atores interessados, ansiosos e aventurosos, estavam dispostos a fazer isso, esperando a diversão e a admiração de uma terra estrangeira tanto quanto para ir fazer cinema. Havia alguns entre eles que queriam se afastar do preconceito da raça americana para sempre, estavam de sacos cheio com as leis Jim Crow (70) “.

É importante que Hughes tenha destacado os motivos de alguns de seus acompanhantes como viajar para buscar uma refúgio do racismo americano. Tão alto era a estima para a União Soviética no grupo, que “quando o trem parou sob uma bandeira para os passaportes serem verificados, alguns dos jovens homens e mulheres negros deixaram o trem para tocar suas mãos no solo soviético, levantar o nova terra em suas palmas, e beija-la (73) “, de acordo com Hughes.

Em suas acusações de racismo, para o que Starr talvez esteja se referindo, é quando Hughes diz num ponto, “Europeus assim como Americanos, parecem ser vitimas do velho clichê que negros cantam naturalmente (80).” Isso dificilmente é uma indicação de algum racismo russo e sim mais uma reclamação de como os afro-americanos são representados no mundo.

A falta de um conhecimento cultural sobre os afro-americanos durante a produção do filme é o que Hughes acredita ser o problema que eventualmente condenou a realização do mesmo. Foi dado a Hughes uma cópia inicial do roteiro e ele avisou as pessoas envolvidas o que não era usável nele, já que no roteiro havia vários erros sobre o que era o racismo que os negros sofriam e que a luta deles realmente parecia no Sul dos EUA. Hughes disse que o autor do roteiro era bem intencionado, mas nunca esteve nos EUA. Ele também disse que informações sobre e de negros americanos raramente eram traduzidas para o russo naqueles dias. Mesmo com essas criticas, é quase impossível interpretar Hughes como sendo ressentido com os soviéticos por tentarem fazer este filme. Pelo contrário, Hughes escreveu com inconfundível bom humor sobre a experiência durante o capitulo e também mencionou varias vezes como eles foram todos pagos e bem cuidados, mesmo quando souberam que o filme não seria feito.

A recepção que os estudantes receberam em Moscou é realmente notável, especialmente considerando o contexto histórico – nenhum dos quais a The Root traz, claro. Os estudantes foram “bem servidos” (wined and dined) nas próprias palavras de Hughes, eles foram colocados nos melhores hotéis e foram dados a eles ingressos de graça para o cinema, a opera, o ballet e jantares e festas com pessoas importantes, quase toda noite. Eles eram convidados especiais do estado e foram tratados com as maiores honras. Nenhum delegação negra foi tão bem recebida nos EUA, nenhuma com tanta graça. Hughes diz que eles eram sempre introduzidos como “os representantes do grande povo negro (82)” e depois de descrever todas as incríveis comodidades que foram dadas a eles nos hotéis que estavam, ele acrescenta “eu nunca fiquei num hotel desse nível no meu próprio país, já que, como era de regra, negros não era permitidos a ficar neles (93).”

Sobre a recepção da delegação pelos cidadãos soviéticos, Hughes escreve:

“De todas as cidades no mundo em que estive, os moscovitas pareciam-me ser os mais educados com estrangeiros. Mas talvez isso seja porque nos éramos negros e, naquele tempo, com o caso Scottsboro em julgamento mundial nos jornais de todos os países (um caso onde 13 garotos negros foram falsamente acusados de estuprar duas mulheres brancas), especialmente na Rússia, o pessoal saia de seu caminho para nos mostrar cortesia. Num ônibus lotado, 9 em cada 10 vezes, alguém ofereceria-me um lugar, “negrochanski tovarisch – camarada negro, sente aqui”. Nas ruas onde havia alguma fila para os jornais, cigarros ou bebidas, pessoas na fila falariam, “deixem o camarada negro ir na frente” (74).

Isso em 1932! Em nenhum lugar dos EUA as pessoas negras eram tratadas assim em 1932. Infernos, muitos de nós não temos esse tipo de tratamento hoje em dia, nem que nossa vida dependesse dele (e algumas vezes ela depende). Esse conto ecoa o que muitos afro-americanos que visitaram ou se mudaram para a União Soviética diziam. No livro “Soviético, mas não russo” de William Mandel, Muhammad Ali é citado dizendo em 1978 sobre uma visita a União Soviética:

“Eu vi centenas de nacionalidades. Nada de o homem negro, ou o homem branco, ou “seu crioulo” (nigger), ou “vá embora”. As pessoas dizem, “ah, eles só mostraram o melhor deles”. Você quer dizer que todo aquele povo branco ensaiou e disse “Muhammad Ali está vindo”, todas aquelas diferentes nacionalidades fingiram se dar bem para dizer “Muhammad Ali está vindo”? …  “Eles só te levaram onde eles queriam que você fosse”. Sei que isso são mentiras. Entrei no meu carro e falei para o meu motorista onde queria ir. Eu corria em lugares estranhos onde as pessoas raramente viam um homem negro. Corri por duas pequenas senhoras russas que estavam andando para o trabalho. Elas não começaram a me olhar estranho e perguntar onde estava indo. Nunca faria o mesmo num bairro branco da América.” (85)

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Muhammad Ali na União Soviética

O texto da The Root tenta pintar a URSS tendo o mesmo racismo que existia na América na época das leis Jim Crow, que isso infectou todos lá, mas simplesmente não há evidência para dizer que esse era o caso. Eles citam a experiência de um único negro americano (Robert Robinson). Mas e sobre a experiência dos estimados 400 mil estudantes africanos que foram estudar de graça na União Soviética entre 1950 e 1990? Essa juventude negra frequentou varias escolas técnicas, a Universidade Lumumba e a escola Lênin para liderança, eles viveram e viajaram por toda a União Soviética e depois da graduação, eles voltaram para seus países com as habilidades necessárias para auxiliar os novos governos independentes. Mandel entrevistou alguns negros soviéticos para o seu livro, incluindo outros afro-americanos que se mudaram para a União Soviética – e o que eles dizem é bem diferente do que o conto sobre o país de Robinson. Sem dar nenhuma evidência, Starr também diz que as relações inter-raciais seriam naturalmente um problema na União Soviética, dizendo “ambos russos e americanos brancos não estavam contentes com mulheres juntas com homens negros.” Já que ele introduziu o termo “besteira” antes dessa linha, direi que o que foi escrito também é uma besteira.

No capitulo que Langston Hughes fala sobre o filme, há algumas historias de homens do grupo dele ficando com mulheres soviéticas e nenhuma palavra sobre alguém com um olhar estranho para esses casais – o que em 1932, conseguiria fazer alguém ser linchado nos Estados Unidos. Por favor pare de projetar o racismo americano na União Soviética, quando você não tem a evidência para suportar tais afirmações. Como W.E.B DuBois escreveu na sua terceira visita a URSS em 1949, “de todos os países, a Rússia sozinha sozinha fez do preconceito um crime; de todos os grandes imperialismos, a Rússia sozinha não é dona de nenhuma colônia de senhores negros ou brancos e o mais importante, não tem nenhum investimento em colônias e não está se erguendo no dinheiro manchado de sangue da mão de obra barata da Ásia ou da África.” A base material para o racismo do estilo Jim Crow simplesmente não estava lá.

Hughes estava ciente que a imprensa ocidental comemorava o fracasso do filme e espalhava vários rumores que eles sabiam que eram falsos contra o governo soviético sobre ele manipular contra os estudantes negros. Ele escreve que os jornalistas ocidentais,  que viram eles gastando dinheiro e andando pelos clubes noturnos de Moscou, enchiam as historias no EUA sobre como eles não estavam recebendo nada e estavam sendo negligenciados.

Hughes escreveu que alguns do grupo suspeitavam que o filme foi riscado porque os soviéticos estavam sacrificando a luta negra para apaziguar o governo americano – mas Hughes em si não acreditava nisso. Ele era um dos únicos membros do grupo que viu o roteiro e ele afirmou incontestavelmente, que o maior motivo do fracasso do projeto foi o roteiro. Hughes também menciona repetidamente o contexto internacional da campanha em defesa dos garotos de Scottsboro, uma luta negra que certamente não foi abandonada pelos soviéticos, já que tudo isso estava acontecendo naquela hora.

A The Root descaracteriza esse excerto da vida de Langston Hughes para suportar sua conclusão que as tentativas dos soviéticos de apoiar a luta negra eram “insinceras e totalmente fraudulentas”. Eu contestaria que essa propaganda anticomunista é na verdade “insincera e totalmente fraudulenta” mas permitam-me apresentar mais evidências da genuína solidariedade expressada pela União Soviética. Ficando no mesmo tema, vamos continuar falando sobre cinema.

Foco na África no cinema

No livro “Foco no Cinema Africano”, a professora de cinema Josephine Woll descreve “A Conexão Russa” entre a União Soviética e o cinema Africano, uma aliança inestimável para tornar o cinema africano pós-colonial uma realidade. Como mencionado na seção anterior a União Soviética gastou bastante recursos para ajuda e desenvolvimento das nações africanas, que estavam no processo de mandar embora seus colonizadores e começarem suas independências pós-Segunda Guerra Mundial. Esses países eram severamente subdesenvolvidos, como foi dito por Walter Rodney  e a União Soviética foi um grande aliado ao dar suporte material, educacional e tecnológico para permitir que essas nações pudessem prosperar sem ser seguradas por seus antigos mestres colonizadores. É importante mencionar que a maior vitória da luta negra que aconteceu durante minha vida, foi o fim do apartheid na África do Sul, o que envolveu um grande suporte material e político da União Soviética, que foi integral pra o sucesso do movimento.

O cinema foi outra área em que o suporte dado pela União Soviética aos africanos foi essencial para sua formação. Ousmane Sembene do Senegal, considerado por muitos o “pai do cinema africano” foi educado na União Soviética. Esse também foi o caso de outros pioneiros do cinema do continente, como Souleymane Cisse do Mali e Abderrahmne Sissako da Mauritânia/Mali e Sarah Maldoror, a francesa filha de imigrantes de Guadalupe que fez vários filmes sobre a libertação africana. Em adição ao ensino de como trabalhar com filmes, a União Soviética também providenciou o equipamento essencial para produção de filmes, distribuição e promoção, para enfim trazer o cinema africano ao mundo.

Dr. Woll parece pensar que os motivos dos Soviéticos foram claramente políticos, mas também foram genuínos. Woll escreve: “A revolução bolchevique e suas consequências, alteraram radicalmente como, porque, e para quem o cinema era feito. O lucro financeiro ainda importava, mas competia com outros objetivos: educacionais, políticos, promocionais. O novo regime na Rússia pós-czar, como os lideres das nações africanas pós-coloniais, atribuiu de bom grado parte de suas despesas para o cinema, eles reconheciam como a mídia poderia ser poderosa como um instrumento de propaganda; e a maioria dos cineastas soviéticos na década de 1920, apesar de terem agendas estéticas individuais e muitas vezes convincentes, apoiam prontamente as políticas de revolução (225).” Nos EUA tendemos ser bastante cínicos da palavra “propaganda”, mas em tempos revolucionários, a propaganda é necessária e os africanos precisavam de apoio para produzir a deles. Ousmane Sembene claramente concordava; ele era inflexível sobre contar histórias políticas convincentes através de seus filmes e ele reconheceu plenamente o potencial de seus filmes para “ajudar a descolonizar a África (225)”.

A União Soviética treinou e equipou esses diretores africanos, para que eles pudessem trazer a beleza e a luta de seu povo para o cenário mundial. O trabalho desses cineastas africanos revolucionários pode ser visto como um final feliz para a saga que começou com “Preto e Branco”. Embora nunca tivéssemos o filme patrocinado pela URSS, sobre a luta negra nos EUA que eles queriam produzir, desde então vimos uma variedade de filmes de diferentes países africanos que destacam a sua luta em formas semelhantes, mas, sem dúvida, muito mais precisas.

Conclusão

Sei que isso foi muito para escrever em resposta a um pequeno artigo que provavelmente nem foi tão considerado pelo próprio autor. Mas o legado da União Soviética em relação a luta negra é única e inspiradora e deve ser celebrada, não horrivelmente distorcida e negada. Em “Paul Robinson Fala”, o grande ator negro diz:

“A humanidade nunca viu a igualdade da Constituição da URRS… Em primeiro lugar, devido ao significado que tem para o meu povo em geral. Em todo lugar, fora do mundo soviético, os homens negros são pessoas oprimidas e desumanamente exploradas. Aqui, eles se enquadram no artigo 123 do Capítulo X da Constituição, que diz: “A igualdade do direito dos cidadãos do U.R.S.S. independentemente da sua nacionalidade ou raça, em todos os campos da vida econômica, cultural, social e política, é uma lei irrevogável. Qualquer restrição direta ou indireta desses direitos ou, inversamente, o estabelecimento de privilégios diretos ou indiretos para os cidadãos em função da raça ou nacionalidade a que pertencem, bem como a propagação do excepcionalismo racial ou nacional, ou o ódio e o desprezo, é punível por lei. “(1978, 116)

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Paul Robinson na URSS

Enquanto nosso atual Presidente aponta membros da Klu Klux Klan para o Departamento de Justiça e fala que nazistas homicidas “são pessoas de bem”, enquanto sua oponente Hillary Clinton chama nossas crianças negras de “super predadores” e fez campanha para sua prisão em massa – nós temos que apreciar o quão significante é um governo nacional – em 1919 – colocar leis em livros como o descrito acima. Eles proibiram o racismo. Eles investiram fortemente na educação negra e na expressão artística negra. Eles deram armas para aqueles que estão lutando contra imperialistas e fascistas em todo o mundo. O que mais você poderia querer? Terrell Jermaine Starr e The Root podem estar confusos sobre o governo que se preocupa com os negros, mas não posso dizer que eu estou. Tenho orgulho de ser socialista e estou orgulhosa do legado de amizade entre meu povo e a URSS.

Como mencionei no início deste artigo, chamar os negros que lutam pela libertação “commies” ou “enganados” não é nada novo. John Hope Franklin referiu-se a isso em “Da Escravidão a Liberdade”, dizendo que a resposta à autodefesa negra contra os tumultos racistas em 1919 provocou tais especulações: “Muitos americanos brancos sugeriram que influencias estrangeiras – especialmente a propaganda bolchevique depois da revolução russa de 1917 – foi a causa para os negros lutarem. Talvez tenha alguma verdade para isso… Entretanto negros americanos, de todo o espectro político (de conservadores, para moderados, para a esquerda radical) ridicularizaram a afirmação de que sua nova assertividade era o resultado de uma “agitação externa”. Os negros americanos não precisavam de pessoas de fora para despertar a consciência da tremenda contradição entre crenças professas da América e suas práticas reais (362)”.

Isso permanece tão verdadeiro hoje quanto foi quando escrito. Além disso, vou fechar com mais uma declaração daquela época, que também permanece verdadeira, pelo menos para mim. A publicação militante da The Crusader, do Harlem Negro, sob a liderança do ardente comunista negro Cyril Briggs,  que declarou em 1919: “Se lutar pelos direitos de alguém é ser bolchevique, então somos bolcheviques e deixamos que eles aproveitem o máximo!”

Referências

Hughes, Langston. (1984). I wonder as I wander: An autobiographical journey. New York: Hill e Wang.

Robeson, Paul. (1978). Paul Robeson speaks: Writings, speeches, interviews 1918-1974, ed. por P.S. Foner. New York: Citadel.

Artigo original escrito por Peta Lindsay para o site Liberation School, disponível no link abaixo:

Black Bolsheviks and white lies

Tradução por Andrey Santiago

5 comentários em “Bolcheviques negros e mentiras brancas

  1. Que pérola. Muito obrigado por publicar a tradução. Sou de Belo Horizonte e faço parte de um coletivo que está interessado em mais conteúdo dessa natureza. Como podemos fazer contato com as pessoas responsáveis pelo blog ou com o tradutor?

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    1. O texto original é da Peta Lindsay, uma mulher afro-americana membra do PSL (Party for Socialism and Liberation), o site para qual ela escreveu este texto tem vários outros do mesmo tema e de alto nível também, infelizmente, as traduções que tenho agora vão me impedir de pegar novos projetos, mas fica a recomendação dos textos da Liberation School nos seguintes links:

      http://liberationschool.org/category/theory-national-question/
      http://liberationschool.org/category/black-liberation/civil-rights-black-power/
      http://liberationschool.org/category/black-liberation/slavery-civil-war-reconstruction/
      http://liberationschool.org/category/black-struggle-today/

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  2. Que texto bonito e que artigo importante!
    Parabéns. Deixar os links originais também é muito bem pensado. A gente acaba conhecendo publicações que não sabia da existência.

    dúvida: por ora só estão disponíveis estes dois artigos, correto? (procurei e não encontrei mais).

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    1. Por enquanto só dois artigos, tenho mais de 15 pra traduzir ainda, até o fim do ano lanço tudo, tem alguns meio acadêmicos, tem alguns gigantes, tem outros que eu mesmo preciso me contextualizar, é um trabalho hercúleo, mas que vale a pena.

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  3. Muitíssimo obrigado pela tradução! é um ótimo ponto de partido para tratar sobre o fundamento capitalista da opressão racista.

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