O filme do cineasta Fernando Meirelles me agradou muito mais pela realidade da ditadura militar argentina mostrada do que pela corrupta história do Vaticano aventada.
A ditadura militar argentina fundamentou-se, ideologicamente, na doutrina de segurança nacional, no integralismo católico e no anticomunismo, utilizando-se da estratégia do terror de Estado e de uma série de políticas públicas para desmantelar as estruturas formais e informais de proteção estatal que haviam sido criadas no país na década de 1930 e, principalmente, durante o primeiro governo peronista. Para tanto, teve as devidas bênçãos e recomendações da Conferencia Episcopal Argentina (CEA), cuja cúpula hierárquica foi ouvida na véspera do golpe. Bergoglio estava lá.
O filme, quando trata da pedofilia, cita o padre mexicano Marcial Maciel Degollado e, ato seguido, escondendo os crimes deste marginal – que fora protegido pelos Papas João Paulo II e Bento XVI – continua sua história.
Pois bem, o que foi sussurrado no filme, torno público aqui:
“O padre Marcial criou uma organização religiosa mafiosa, de alcance internacional, com o apoio do ditador fascista general Francisco Franco e, posteriormente, expandiu-a com o auxílio da monarquia madrilenha. Foi financiado por banqueiros, por empresários e por políticos de várias nações. Tão multinacional e tão acumulativa era sua congregação que ela já tinha os olhos postos na China, o grande país emergente da segunda metade do século XX. O jornalista Alfonso Torres Robles, autor do livro “A Prodigiosa Aventura dos Legionários de Cristo” (Editorial Foca, Madrid, 2001) afirma que é “uma ordem religiosa clandestina que está mais perto dos negócios do que da religião”.
Para atender aos interesses do grande capital, os Legionários montaram um formidável império com uma dezena de universidades e uma centena de colégios privados, em 21 países dos quatro continentes, nos quais dispõem de institutos de educação privada que vai do pré-escolar ao nível superior, destinados a instruir os filhos da burguesia, bem como a preparar mão de obra para suas empresas.
Por ocasião das festas natalinas, Marcial visitava pessoalmente o Vaticano, para cumprimentar cardeais e demais integrantes da sua alta burocracia, doando-lhes envelopes contendo vultosas propinas em dólar e euro. Tinha por finalidade, com isso, comprar o silêncio e o acobertamento da Igreja no tocante aos seus crimes de pedofilia, de pederastia e de uso de drogas realizado contra os meninos seminaristas, arrancados de suas famílias mexicanas e levados aos internatos espanhóis. Desse modo, enquanto a Igreja condenava o divórcio, concomitantemente, protegia a pedofilia.
Essa congregação não se atinha apenas à formação de padres, mas trabalhava também com um exército de aproximadamente 50 mil leigos sob o nome de Legião “Regnum Christi”. Entre eles, os presidentes do Banco Santander, da Telefónica, da Claro, o tenor Plácido Domingo e vários ministros do governo de José María Aznar. Se bem é certo que os Legionários conseguiram estabelecer suas bases na Espanha durante a ditadura de Franco, afirma Alfonso Robles, foi precisamente com a chegada de Aznar e do Partido Popular ao governo que se deram “suas maiores quotas de implantação neste país”.
O grande papel desempenhado pelo padre Marcial na política mexicana foi a de combater o laicismo e o secularismo da Constituição de 1917, que separava claramente o Estado da Igreja. Tanto que João Paulo II visitou o país asteca por cinco vezes durante seu pontificado, sendo sempre recebido pelo delinquente Marcial e seu protetor imediato, o cardeal Norberto Rivera Carrera, arcebispo primado da capital. Só assim o papa polaco e o presidente neoliberal Carlos Salinas de Gortari conseguiram estabelecer as relações diplomáticas. Dava-se, então, por encerrado um conflito entre a espada e a cruz iniciado com as Leis de Reforma de Benito Juárez, de 1859, incrementado com a Revolução Mexicana, de 1910, e exacerbado com a Guerra Cristera, de 1926.
Apesar das denúncias do bispo de Cuernavaca, Dom Sergio Méndes Arceo, ao Vaticano, já na década de 1950, sobre as barbaridades praticadas pelo padre Marcial, a alta hierarquia da Igreja, em Roma, não lhe deu nenhuma importância. E olha que Dom Arceo era uma autoridade nacional, tanto que, posteriormente, se tornaria conhecido em todo o mundo por suas posições avançadas dentro da Igreja, tais como, a defesa da psicanálise nos mosteiros da região, a remoção dos ornamentos tradicionais das igrejas e a introdução dos mariachi, grupo musical típico mexicano, nos cultos religiosos. Tive o prazer de conhecê-lo e dizer-lhe que por conta de sua atuação me chamara a atenção a teologia da libertação no México. Respondeu-me, com uma gostosa gargalhada e ato seguido com sua cálida voz de órgão, que não era tão importante assim, tamanha a sua modéstia”.
(Waldir José Rampinelli, “Evangelho e Manifesto – na religião e na política”, 4ª edição, Editora Insular, Florianópolis, 2018, pág. 77-78.
Texto originalmente escrito por Waldir Rampinelli.