Por Yoav Di- Capua.
Originalmente publicado no site Not Even Past.
Tradução por Laura Battistam.
No dia 18 de junho de 1959, vestido de farda militar e acompanhado por vários camaradas exibindo uma aparência revolucionária igualmente imponente, Che Guevara pousa em Gaza. Considerando sua reputação hoje, esperava-se que o Che de 31 anos, talvez, fosse instruir os guerrilheiros da resistência Palestina (os Fedayeen) nos caminhos da guerrilha, indicar detalhes sobre sua grande tática de foco ou estudar sobre a longa batalha de resistência contra Israel. De fato, ao saber da primeira – e única – visita de Che a Gaza, eu mesmo me questionei as tais perguntas: Seria a troca de táticas revolucionárias o legado da sua visita? Ele viajou até lá para construir uma relação duradoura com os guerrilheiros palestinos? Foi atraído para Gaza por conta de sua resistência universal ao colonialismo? O que exatamente se desdobrou dessa visita e com quem ele se encontrou lá? Eu estava curioso para saber.

Ouvi falar da intrigante visita de Che há cerca de três anos. A pessoa que aleatória conversei nos arquivos não poderia me dizer muito além do fato que ele leu em algum lugar (mas onde?) que Che visitou o acampamento dos refugiados de Shati e foi calorosamente recebido por seus habitantes palestinos. Isso não era o bastante. A pesquisa na internet rendeu a imagem acima na qual mostra Che e alguns dignitários com Ahmad Salim, o poderoso governador egípcio de Gaza. O biógrafo de confiança de Che, Jon Lee Anderson, acrescentou mais alguns detalhes e uma data, mas nada mais. Assim, com esse modesto começo, me aventurei nos arquivos para encontrar a história por trás da visita e da foto. Eu comecei com os Arquivos do Estado de Israel [Israeli State Archives]. Do final da guerra de 1948 até 1956, e novamente entre os anos de 1957 e 1967 (quando foi conquistada por Israel durante a Guerra dos Seis Dias), Gaza estava sob o domínio egípcio e seu exército controlava todos os aspectos da vida palestina, incluindo a resistência e a infiltração de Israel. Os Arquivos de Estado de Israel pareciam promissores por conta da proximidade na qual eles monitoraram Gaza durante esse período da ocupação israelense. Pensei que os israelenses não poderiam ter perdido uma visita tão importante de um dos principais teóricos e praticantes da tática de guerrilha. Para minha surpresa, descobri que perderam. Na verdade, a visita de Che a Gaza não deixou a nenhuma impressão nos arquivos de Israel. Assim, na ausência de evidências do arquivo e na completa ausência de um arquivo egípcio, recorri à imprensa árabe. O que descobri foi um tanto surpreendente. Acabou que Che era um “ninguém” cubano que a maioria dos egípcios ignorava.
De fato, como se viu, a visita de Che ao Egito – conhecido, então, como a República Árabe Unida – foi um evento breve, discreto, o qual foi rigidamente controlado pelas autoridades egípcias relutantes em reconhecer os projetos revolucionários concorrentes, como o de Cuba. Sua viagem a Gaza foi ainda mais minimizada. O contingente da imprensa foi reduzido ao mínimo, nenhuma fotografia icônica foi publicada e, ao que parece, somente uma única imagem sobreviveu. Embora Che e os cubanos tenham visitado vários campos de refugiados, ao final do dia não jantaram com os principais dirigentes da revolução palestina Fedayeen, mas sim com o contingente brasileiro da Força de Emergência da ONU. Na verdade, nem um único membro do Fedayeen estava presente, e não se falava sobre teoria revolucionária, neocolonialismo, imperialismo sionista ou qualquer uma das outras subcategorias da resistência global dos anos 1960. Vinte e quatro horas depois de Che chegar a Gaza, ele estava de volta ao Cairo. Os jornais do dia seguinte enterraram a história.
De volta ao Cairo, o tema continuou. Os cubanos estavam longe de ser o assunto da cidade e a atenção egípcia estava visivelmente em outro lugar com a visita importante do imperador da Etiópia, Haile Selassie. Enquanto Selassie recebeu grande atenção da imprensa, os cubanos, exceto por algumas reportagens de última página, quase não recebiam. Não que os cubanos fossem ignorados. Embora aparentemente estivesse muito ocupado para saudar Che no aeroporto após a sua chegada, no dia seguinte, Nasser concedeu-lhe a condecoração da Primeira Ordem da República Árabe Unida em uma cerimônia curiosa e pouco frequentada. O resto da visita foi caracterizado por um tom paternalista, no qual os egípcios mostraram aos cubanos inexperientes quanto aos métodos de engendrar uma revolução agrícola visando a igualdade social e várias teorias e sugestões foram dadas sobre como os cubanos deveriam abordar a industrialização de Cuba. Depois disso, partiram para Damasco, visitaram o túmulo de Salah al-Din (Saladino), um conhecido símbolo de resistência e sacrifício, e continuaram sua jornada para outros locais na África e na Ásia.
Essa visita ao coração revolucionário do mundo árabe nos diz em termos inequívocos que o Che, barbudo e apreciador de charutos, ainda não era um ícone internacional da resistência global e que aquela década icônica, os anos 60, ainda não havia realmente começado. Na verdade, o objetivo de sua visita não parece ter sido o de iniciar um movimento revolucionário internacional, mas sim de iniciar uma viagem de três meses ao Terceiro Mundo para que Che pudesse se apresentar às elites progressistas de vários países e, talvez, ao longo do caminho, estabelecer laços comerciais e, com sorte, vender um pouco de açúcar. Sim, é isso mesmo: o açúcar tinha precedência sobre a guerrilha. Mas com essa viagem, Cuba também começou uma busca do seu papel revolucionário nos assuntos mundiais. Três anos depois, Che apareceria como o ícone universalmente reconhecível do Novo Homem no Terceiro Mundo, digno de cobertura da primeira página dos jornais até mesmo no Egito. Certamente, em suas reuniões futuras com Nasser, a situação se inverteu e Nasser se apresentou como o acólito atencioso e modesto de Che. A essa altura, é claro, a cultura de resistência global dos anos 60 já era parte integrante da política árabe diária.

Quanto aos palestinos, os combatentes Fedayeen de 1950 tinham pouco a ver com a cultura de guerrilha com a qual agora estão anacronicamente associados. Mas isso também estava para mudar, pois durante a década de 1960, Che estabeleceu um relacionamento próximo com a Organização para a Libertação da Palestina e uma nova geração de combatentes foi fortemente influenciada pelo seu exemplo, bem como a cultura global de resistência. Seu momento de agir veio após 1967, quando Israel ocupou a Faixa de Gaza, se estabeleceu ali e começou a se acomodar. Em resposta, guerrilheiros palestinos de esquerda lançaram uma campanha sustentada que atingiu o auge sob a liderança de Muhammad al-Aswad, conhecido na época como o “Guevara de Gaza”.

O al-Aswad carregou orgulhosamente o legado de Guevara até seu trágico fim, que aconteceu durante uma batalha contra os soldados israelenses em 1973. Alguns anos mais tarde, devido a uma campanha sustentada por Israel, o movimento de esquerda da resistência palestina de Gaza estava em ruínas e, uma década depois, a esquerda revolucionária não tinha muito a oferecer. De fato, a essa altura, a oposição militar a Israel estava organizada de acordo com as linhas islâmicas, com organizações como o Hamas e a Jihad islâmica, que assumiram um papel central. Hoje, após duas rebeliões populares (intifadas) e depois de uma série de outras escaramuças sangrentas, tudo o que resta do legado de Che em Gaza são alguns palestinos de meia-idade que, na década de 60, receberam o nome de Guevara por seus pais idealistas. Assim se dá a história de Guevara em Gaza, um compromisso que começou com a visita modesta de um cubano anônimo apreciador de charutos, mas terminou, notoriamente, com a construção de um ícone de resistência para os palestinos que também buscavam a libertação de seu país e do mundo.