Capítulo do livro “My people shall live: the autobiography of a revolutionary” (“Meu povo irá viver: a autobiografia de uma revolucionária” em tradução livre), lançado em 1973.
Traduzido por Angelo Ardonde.
Lista de siglas e nomes de companhias aéreas:
BOAC (British Overseas Airways Corporation): companhia aérea britânica.
El Al: companhia aérea israelense.
FPLP: Frente Popular para a Libertação da Palestina.
KLM (Koninklijke Luchtvaart Maatschappij): companhia aérea dos Países Baixos.
Pan Am (Pan American World Airways): antiga companhia aérea dos EUA.
TWA (Trans World Airlines): companhia aérea dos Estados Unidos.
UAB: Universidade Americana de Beirute.
A Frente Popular, em suas múltiplas instituições, é uma miniatura do mundo árabe que esperamos construir. Cada membro deve, portanto, aprender a servir ao bem comum e dar o seu máximo para ajudar a Frente a conquistar a libertação do homem árabe e seu inimigo sionista (George El-Bekaai)
As principais funções de todo membro na Frente Popular são as atividades militares politicamente orientadas, a disseminação de propaganda revolucionária e a arrecadação de fundos. Embora essas funções estejam, muitas vezes, estreitamente relacionadas, ainda assim cada camarada se especializa na área em que os seus talentos se adequam melhor. Mas o partido necessita que cada um de nós tenha uma boa compreensão da ideologia e estratégia; que estejamos preparados para assumir operações militares nos territórios ocupados e em terras estrangeiras; que sempre estejamos dispostos a viver e trabalhar com as massas; que cada um tenha que coletar fundos por uma variedade de formas, desde a venda do jornal teórico da Fronte, o Al-Hadaf, até a arrecadação de dinheiro vindo de amigos e apoiadores europeus e americanos.
Em minha qualidade de soldada, fui selecionada para a execução de operações no estrangeiro. Infelizmente, porém, minha identidade havia sido revelada pelas autoridades sírias em 1969, quando o camarada Salim Issawi e eu aterrissamos o TWA840 [1] em Damasco. Se os sírios não tivessem interferido, eu continuaria sendo uma das centenas de soldados anônimos na Frente. Graças à histeria sionista, meu nome e minha fotografia provavelmente apareceram em todos os jornais no Ocidente, se não no mundo todo. Mas a ampla publicidade não se provou um meio eficaz de acabar com a minha carreira de revolucionária. Eu ainda não estava fora de cena. Enquanto muitos membros da Frente pensavam que eu estava trabalhando em Irbid, na primavera e verão de 1970, e minha família pensava que eu ainda estava no Egito, na verdade eu estava treinando para pilotar um avião da El-Al. Os detalhes do treinamento ainda devem permanecer em segredo. Após o primeiro sequestro eu fui eleita para o comitê central da Frente, uma posição que não diminuiu, mas aumentou as minhas obrigações. Na Frente, quanto mais uma pessoa ascende na hierarquia organizacional, mais responsabilidades ela deve assumir. Na Frente, não há nenhuma dessas celebridades que desempenham funções burocráticas inócuas e são rodeadas por assistentes bajuladores.
No início de março de 1970, deixei a cidade de Amã rumo a um destino não revelado, onde passei por três cirurgias plásticas para a continuidade das nossas operações militares planejadas. De início foi difícil encontrar um médico disposto a pôr sua medicina a serviço da revolução. Após uma longa procura, encontramos um clínico com vontade de ajudar, mas ele não conseguia entender por que um futuro esposo gostaria de ver a face de sua esposa “desfigurada” antes do casamento. “Ele deve estar doido”, insistiu o bom médico. “Sim, doido”, nós concordamos, “mas faça a operação, por favor”, dissemos. O médico assentiu com a cabeça, reservou um hospital e recorreu às suas luvas de silicone. Era 13 de março de 1970 quando a primeira “distorção facial” foi realizada. Foi extremamente doloroso. Como recusei uma anestesia geral, pude ver e sentir a força das agulhas. Suponho que as pessoas no Ocidente vão concluir que eu devo ser masoquista, mas garanto a eles que não: tenho uma causa maior e mais nobre que eu mesma, uma causa à qual todos os interesses e preocupações privados devem se subordinar. Cá estou deitada, sobre a mesa de operações, enquanto meus camaradas eram torturados, minhas irmãs estupradas e minha terra saqueada.
Por vinte dias após a primeira operação, tive que viver de líquidos. Senti uma fraqueza terrível. Como a operação era um segredo sobre o qual menos de meia dúzia de pessoas tinha conhecimento, eu definhava no hospital sem qualquer visita para me quebrar o tédio. Passei os meus dias observando as idas e vindas na maternidade do outro lado do corredor. Para complicar as coisas, minha enfermeira não falava árabe nem inglês. Ela era americana e a nossa comunicação era possível apenas por línguas de sinais, uma situação em que a minha face dolorida não ajudava. Felizmente ninguém no hospital me reconheceu. Mas um dia, quando eu chamava pela enfermeira, um homem que estava visitando a esposa na sala ao lado apareceu para ajudar. Ele me reconheceu e chamou pelo meu primeiro nome. Neguei que eu fosse Leila. Ele não acreditou em mim. Quando deixei o hospital, dei à sua filha nova um colar feito de projéteis e desejei a ela uma grande, grande carreira revolucionária.
A meia-noite se aproximava e mais cirurgias ainda eram necessárias para completar o meu “tratamento de beleza”. Mais duas operações foram realizadas, a última poucos dias antes do sequestro programado. A maioria dos meus camaradas já estava na Europa à minha espera. De repente, recebi a notícia de que tudo deveria ser adiado para evitar um confronto com a Jordânia. Fiquei um pouco desapontada, mas não desanimada.
Os israelenses e seus aliados, porém, eram inimigos vigilantes e insones. Fui liberada do hospital. Era 11 de julho de 1970, duas e quinze da manhã, e eu estava no apartamento do Dr. Wadi Haddad discutindo estratégia. Sua esposa e filhos dormiam no quarto ao lado. Sabe-se lá de onde, uma rajada de rojões atingiu o quarto. Nenhum de nós se feriu. Recorremos às nossas armas. Então, no meio das chamas, a família dele saiu do quarto aos berros e sangrando. A energia elétrica parou de funcionar. Entramos em pânico por um momento, enquanto tentamos apagar o fogo. Segurei Hani, de oito anos, e corremos acima e abaixo gritando “Fogo, Fogo”. Hani estava com o peito sangrando e seus pés pareciam esmagados. Um vizinho nos ofereceu seu apartamento como refúgio e chamou a brigada de incêndio. Eu estava ansiosa, mas Hani estava absolutamente calmo e em silêncio. Ele forçou um sorriso e me disse: “Leila, os revolucionários da Frente não devem ter medo. Você deveria ter vergonha de estar com medo”. Fiquei um pouco chocada com o lembrete desse rapazinho revolucionário, agarrei-o e o carreguei até o hospital. Chamei um taxista que se recusou a nos transportar, eu cuspi na cara dele. De repente, um membro da Frente chamado Abu Dardock apareceu e lá fomos nós para o pronto-socorro do hospital da Universidade Americana. Enquanto eu corria com Hani em meus braços, nós dois cobertos de sangue, eu chorava: “por favor, me arranjem um médico”. Um médico apareceu em questão de minutos, mas antes mesmo de olhar para a criança ele indagou, insensivelmente, se eu tinha dinheiro para pagar pelo tratamento. Eu gritei na cara dele: “você é um médico ou um vendedor de carpetes?” Ele explicou, com firmeza, que a UAB era “um hospital, não um centro de caridade”. “Já que você está negociando, me tome como refém, mas, por favor, cuide da criança”, eu implorei. Nesse momento, o Dr. Haddad e sua esposa irromperam à procura do filho. A mãe estava quase histérica. O médico americano reconheceu o Dr. Haddad, seu antigo companheiro. Ele ficou surpreso e se desculpou profundamente. Suas desculpas não foram ouvidas. Expressei minhas ameaças em voz alta: “doutor yankee, a revolução fará do hospital da UAB um hospital para os pobres e médicos do seu tipo terão a licença cassada ou serão mandados de volta para a América”. Ele disse, com um rápido sorriso descarado: “me desculpe”.
O ataque ao apartamento do Dr. Haddad reforçou a nossa determinação em combater o inimigo com todo o poder ao nosso alcance. Estávamos muito mais determinados, como nunca antes, a morrer pela causa. Quando voei para Frankfurt, em agosto, a visão do apartamento em chamas foi constante no meu pensamento. Em Frankfurt, fiquei em um hotel de preço moderado cujo dono descobri ser um judeu. Ele me cumprimentou em árabe e eu hesitei, por um momento, antes de respondê-lo, então retribuí casualmente a sua saudação, fingindo ser uma não-árabe. Ele continuou falando comigo em árabe e revelou com orgulho: “sou judeu, você sabe”. Respondi prontamente: “sou árabe e não sou contra os judeus; sou contra os sionistas e aqueles que ocupam o território árabe”. Ele contrariou agradavelmente: “sou sionista por motivos religiosos, mas não tenho interesse em política”. Nosso confronto terminou aí, subi as escadas até o meu quarto e permaneci nele até a manhã seguinte. Acabei ficando sem sono e com fome, então decidi sair para comer e dar uma volta. Meu amigo judeu estava na recepção. Ele me cumprimentou com entusiasmo e perguntou se eu gostaria de ir a Amsterdã em uma viagem que ele estava organizando com os seus hóspedes. Eu sorri, agradeci o convite e saí correndo em busca de comida. No caminho, comprei diversos jornais em inglês; todos estavam cheios de notícias da Jordânia e alguns tinham editoriais comentando o impacto do Plano Rogers [3] nas relações entre o mundo árabe, Israel e as grandes potências. Praticamente todo jornal que eu lia especulava sobre os próximos sequestros. Fiquei inquieta de início, mas me aliviei ao ler que os sequestros deveriam ocorrer em Zurique e outros lugares, não em Amsterdã.
Eu estava obcecada pela ideia da minha missão. Eu a ensaiava de hora em hora nos meus dias de caminhada. Perambulei pela cidade de Frankfurt por alguns dias, entediada com a espera; então dei uma passada breve em Stuttgart e Amsterdã. Nosso rendezvous [4] com a história se aproximava: todos os planos teriam que ser traduzidos em ação; era nossa a escrita da história; Patrick Arguello a escreveria com sangue, eu não seria tão honrada. Conheci Patrick Arguello pela primeira vez em setembro de 1970, em frente ao aeroporto em Stuttgart. Trocamos informações sobre nossa tarefa mútua e revisamos o plano cuidadosamente. No dia seguinte, voamos juntos para Frankfurt. No aeroporto de Frankfurt, o Sr. Diaz (Patrick) foi inspecionado enquanto eu observava os passageiros de um voo da TWA com destino a Tel Aviv serem cuidadosamente revistados. Fiquei feliz por estarmos causando tantos problemas ao inimigo. “Que tolos, esse é o avião que vamos sequestrar no seu caminho voltando de Tel Aviv”, pensei comigo mesma. Patrick foi liberado da alfândega sem suspeitas.
A próxima parada foi Amsterdã. Em 6 de setembro, Patrick e eu nos encontramos em frente ao guichê do El-Al às dez da manhã. Ficamos meia hora esperando a abertura do escritório do El-Al, mas ele não abria de jeito nenhum. Checamos o horário dos voos; o mural ainda mostrava o voo 219 da El-Al partindo de Nova Iorque às onze e vinte da noite. Pedimos ajuda à funcionária do KLM. Ela pegou nossas passagens e chamou no escritório do El-Al. Ninguém respondeu.
A funcionária do KLM pareceu um pouco surpresa. Ela perguntou: “por que pegar o voo da El-Al? Há outros melhores e mais confortáveis”. Dissemos que “preferimos voar com a El-Al”. Enquanto esperávamos, o voo 840 da Pan Am [Pan American World Airways] aterrissou e eu alegremente me lembrei do voo 840 da TWA de 29 de agosto de 1969. Naquele momento, eu não estava ciente de que dois dos nossos camaradas, barrados pelos israelenses em uma tentativa anterior, iriam capturar sozinhos o voo 840 da Pan Am meia hora antes da decolagem. Eles tomaram o voo 747 até o Cairo, onde o explodiram como uma declaração de independência palestina. Nem Patrick, nem qualquer um dos outros cinco sequestradores sabiam que três aviões estavam sob nosso alvo naquele dia. Apenas as três comandantes palestinas e alguns dos outros líderes sabiam do plano todo. Hesitamos na sala de espera até por volta das 12h05. Ainda não havia sinal do funcionário da El-Al.
De repente, surgiu um policial armado e com uniforme israelense.
“Por que vocês estão atrasados?”, ele perguntou. Expliquei de forma acolhedora: “chegamos às 10 horas, senhor” e sugeri que ele perguntasse à funcionária do KLM, que confirmou o que eu disse. “Seu passaporte, por favor”, ele disse. Patrick e eu mostramos nossos passaportes, sem comentar nada. O policial examinou cuidadosamente cada página. Ele olhou para minha fotografia e para mim de volta várias vezes. Ele caminhava de um lado para o outro enquanto nos abordava. Ele me pediu para esvaziar a bolsa e identificar todos os meus objetos, o que eu fiz. Eu parecia completamente normal. Patrick estava vestido como um empresário e eu usava mini-saia e uma jaqueta. Eu não fingia ser outra pessoa a não ser a calma Maria Sanchez de Honduras. A abordagem corriqueira prosseguiu por vários minutos. De repente, ouvi vozes barulhentas. Vi três árabes vindo em minha direção. Meu coração parou. Eu reconheci um deles. E se ele me cumprimentasse? Imediatamente seríamos expostos. Por sorte, o policial israelense estava de costas para eles. Como já estávamos de mãos dadas, rapidamente abracei Patrick. Ele pareceu um pouco surpreso, mas que homem repeliria uma mulher sob essas condições? O abraço durou até que meu amigo árabe passasse despercebido pelo policial do El-Al ou quem quer que fosse. O policial parecia despreocupado conosco. Educadamente, ele nos convidou a acompanhá-lo até o subsolo para a inspeção da nossa bagagem. “Policial, nossas malas estão abertas, você pode inspecioná-la quando quiser”, eu disse. “Madame, o regulamento determina que os donos da bagagem devem estar presentes”, ele explicou. Concordamos, com prazer. Não era um policial amador. Ele sistematicamente examinou cada um dos itens não uma, mas duas vezes. Enquanto inspecionava os nossos objetos, ele fez algumas perguntas informais, mas pertinentes.
Então, de maneira incisiva, ele se virou para mim e perguntou: “alguém te entregou algum presente?” Respondi com um “não” enfático. “Você tem algo pontiagudo ou perigoso?” “Como o quê?”, eu disse. “Uma pistola, uma faca ou algo pontiagudo?” “Não, senhor. O que uma garota como eu faria com uma pistola ou uma faca, policial?” Ele desculpou-se com um sorriso e disse: “podem voltar ao corredor”. De repente, ele decidiu me perguntar em inglês se eu falava espanhol. Ousada, deixei escapar um “si, señor”. “Tenha uma boa viagem”, ele disse. Patrick ficou um pouco surpreso. “Por que você disse que sabe espanhol se você não sabe?” “Veja bem”, eu disse, “se ele soubesse espanhol, ele teria nos abordado em espanhol desde o começo. Acalme-se, fomos liberados”.
Quando voltamos ao corredor, vi trinta ou quarenta jovens esperando para embarcar no voo 219 da El-Al. Fiquei em choque e lamentei em silêncio que, mais uma vez, eu teria que encarar um problema agoniante: o que fazer para não machucar as crianças. Amo crianças e sei que elas são isentas de culpa. Ainda que eu lembrasse das crianças palestinas bombardeadas com napalm israelense e dos filhos do Dr. Haddad fugindo do quarto em chamas, eu prometi fazer o máximo para não colocar em risco, sem necessidade, a vida de passageiros. Sentei-me, semi-paralisada por alguns segundos, lutando contra os problemas morais de nosso ato. Enquanto isso, Patrick circulava pelo corredor tentando encontrar dois camaradas. Enquanto eu olhava para as crianças, uma garotinha linda veio em minha direção, seus olhos sedentos encaravam um sanduíche em minhas mãos. A mãe dela a puxou para perto, mas eu disse à garotinha: “taali ela houna” (“venha cá, pode pegar”). Assim que disse isso, me calei. Então a mãe dela disse: “taali ela houna ya binti” (“venha cá, minha filha”). Fiquei espantada. Patrick tinha acabado de chegar. Tentei dissipar qualquer sinal de ansiedade e sussurrei furtivamente para ele: “adivinha?” “Sim”, Patrick respondeu, achando que eu havia encontrado os camaradas. “A senhora com aquela criança é israelense; imagina se ela fosse encarregada de sequestrar o avião e quisesse levá-lo para uma direção e nós, para outra. Quem venceria a disputa?”, perguntei. Patrick riu e garantiu-me: “nós venceríamos”.
Esperamos. Os minutos pareciam horas. Nenhum avião israelense estava próximo. Apenas os malditos aviões da KLM, que não nos serviam. O avião jumbo decolou às onze e meia. Era um pouco mais de meia noite. O policial israelense reparou e passamos pela mesma rotina de inspeções. Fomos mandados para o outro lado do salão. Tentei não demonstrar minha frustração. Passamos pela terceira inspeção e fomos mandados de volta para o nosso lugar inicial. Ao fim dessa inspeção, era uma e meia da manhã. Fiquei na dúvida se os sequestros tinham sido anunciados e os malditos israelenses tinham descoberto e decidiram nos transferir para os voos da KLM, ou se ele tinham capturado os outros dois camaradas e agora estavam desesperados à nossa procura. Eu tinha duas granadas de mão; Patrick tinha uma granada e uma pistola. Disse a Patrick, que estava ciente apenas dos nosso plano de sequestro: “soldados não desistem, temos que disfarçar bem se eles nos descobrirem”. Patrick concordou com firmeza. Nos pediram para descer as escadas. O mesmo policial estava ao portão checando todo passaporte e passageiro. Eu disse: “policial, estamos atrasados”. “Tudo bem, madame, estamos fazendo isso para sua própria segurança”. Fomos até o avião cercados por todo tipo de guardas armados. Estava encantada com o fato da resistência estar causando tantas dificuldades e tornando os sionistas paranóicos e tensos. Sentia que Patrick e eu já tínhamos conquistado o inimigo e cumprido parte de nossa missão, pois fizemos o inimigo de bobo e provamos que suas medidas preventivas não eram infalíveis. Percebi que a fortaleza do inimigo não era impenetrável quando embarquei no avião escoltada por doze guardas de honra armados com submetralhadoras para a garantia de minha “segurança”. Quando pisei no avião da El-Al, pela primeira vez, desde 13 de abril de 1948, me senti novamente em casa em Haifa. Na verdade, eu estava na cova dos leões. Nunca antes eu tinha me sentido tão eufórica e orgulhosa por integrar a Frente Popular como naquele momento.
Patrick e eu procuramos por dois assentos vazios. Mudamos de lugar duas vezes até que, finalmente, nos sentamos juntos na segunda fileira da classe turística. Soltamos um suspiro de alívio quando a aeromoça perguntou se estávamos confortáveis. Eu estava eufórica e mal podia esperar pela segunda parte da nossa missão. Patrick pareceu um pouco assustado quando o El-Al finalmente decolou por volta da uma e meia da manhã. Patrick me conhecia apenas por Shadiah. Achei que se eu revelasse a minha identidade, isso aumentaria bastante o ânimo dele. Assim o fiz. Patrick animou-se. Ele me fez uma saudação de vitória. A senhora ao meu lado pegou no sono imediatamente. Todos os passageiros pareciam cansados. Às uma e cinquenta e cinco, notamos que havia alguém nos observando do fundo do avião. Pedi para Patrick ficar quieto. Virei-me e olhei diretamente para o homem por um minuto. Ele estava vestido como um civil. Quando percebeu que alguém o observava, ele timidamente olhou para o outro lado. Nesse momento, Patrick preparou a granada de mão e a pistola, enquanto eu removia o pino de segurança das minhas duas granadas de mão e corria para a primeira classe e a cabine do piloto. Gritamos “não se mexam!” enquanto alguns dos passageiros tentavam se proteger. Três comissários à nossa frente empunhavam suas pistolas. Em questão de segundos, pude contar seis armas. Mas nós antecipamos a batalha. Uma aeromoça jogou-se no chão chorando para mim em árabe. Ameacei explodir o avião se alguém atirasse contra nós. Exibi minhas duas granadas e lancei os pinos de segurança no chão, esperando convencer todas as pessoas de que queríamos negociar e evitar uma batalha sangrenta. Patrick conteve os comissários e passageiros na cabine. “Prossiga, eu te dou retaguarda”, ele me instruiu. Forcei a aeromoça a se levantar e seguir na minha frente. No momento em que ela abriu a porta, ela cambaleou para frente em pânico. Não vi o capitão nem o tripulante. Tiros foram disparados. Havia outra porta antes da cabine do piloto. Ambas batemos à porta. Ninguém abriu. De repente, alguém olhou para nós por um olho mágico. Brandi minhas granadas de mão e ordenei que ele abrisse a porta, senão… Até que ouvi mais tiros e o avião começou a rodopiar.
Várias pessoas me atacaram ao mesmo tempo. Achei que o avião estava se desintegrando. O tiroteio continuou e, de repente, me vi cercada por um bando de lobos: funcionários do El-Al e também passageiros. Alguém gritou: “não atirem nela! Ela tem duas granadas!”. Ninguém atirou em mim. Mas havia pessoas me chutando, outras batendo em mim. Algumas apenas me pisotearam. Duas agarraram minhas mãos tentando pegar as granadas. Uma finalmente conseguiu arrancar uma das minhas granadas sem explodir ela mesma e todo o avião. Eu segurei firme a outra, até ser derrubada inconsciente por alguns segundos e sem forças.
De início, não sabia o que estava acontecendo com Patrick. Por alguns minutos, fui arrastada até a cabine da primeira classe, onde Patrick estava estirado no chão, sangrando muito e respirando com dificuldade. Pude notar que ele ainda estava vivo. Os sionistas agiram como cães raivosos. Eles pisotearam todas as partes de nossos corpos. Naquele momento, Patrick estava fraco demais para resistir. Eu lutava como um leão enjaulado. Lutei até ficar completamente exausta. Então um bandido cruel me agarrou, puxou meus cabelos sem piedade, me chamou de vadia perversa, árabe maliciosa e todo tipo de apelidos obscenos. Cuspi com desprezo na cara dele. Mordi as suas mãos. Ele e outros em volta me espancaram sem parar por mais alguns minutos.
O avião viajava suavemente; os outros passageiros permaneceram em seus assentos. Então um guarda israelense saiu da cabine do piloto. Patrick estava deitado ao seu lado. O homem virou Patrick de barriga para cima e começou a amarrá-lo com fios e uma gravata. Alguém perguntou: “como eles estão?” Uma voz respondeu: “não sabemos. Ele está… Não sabemos. Ela está um quarto morta”. O homem pisou sobre o quadril de Patrick, que me olhou em agonia e com as mãos amarradas nas costas. Então o guarda sionista realizou quatro disparos nas costas de Patrick. Alguém gritou dos fundos do avião: “por favor, parem o banho de sangue! Por favor, por favor!”. As quatro balas nas costas de Patrick foram disparadas de uma distância menor que um pé. Patrick olhou para mim e me dirigiu um sorriso mortal e eternas despedidas.
Então chegou a minha vez. Eu estava amarrada do mesmo jeito: com as mãos nas costas, meus pés e pernas imobilizados com fios. Eu esperava me juntar à glória dos mártires, assim como Patrick acabara de fazer. Mas os sionistas não me executaram. Tive certeza que eles não foram tocados por nenhuma preocupação humanitária ou pela voz suplicante do fundo do avião. Eles precisavam de mim para fins de exibição no seu zoológico humano em Israel. Presumi que eles queriam atestar sua “bravura” — tendo uma prisioneira para torturar e arrancar delações. Quando eles terminaram de me amarrar, o piloto anunciou: “estamos chegando em Tel Aviv”. Por alguns minutos, senti o avião pousar e tocar o chão. Quando ele pousou na pista, eu caí do assento e “meu segurança” se jogou sobre mim. Ele me puxou de volta gritando obscenidades e me chutando brutalmente. Os passageiros desembarcaram. Pude ouvir o som de uma ambulância do lado de fora. Dois policiais uniformizados entraram. Não sabia onde estávamos. Outro policial veio até a cabine da primeira classe, onde eu estava detida. Ele exigiu que eu fosse mandada de volta. Um policial israelense declarou: “ela é nossa prisioneira. Saia daqui, ela é propriedade israelense”. Aqueles dois policiais permaneceram em suas posições. Então o piloto israelense (sim, o piloto), saiu de sua cabine na presença de dois policiais britânicos, levantou-me e me chutou várias vezes nas partes de baixo. Os policiais britânicos gritaram “que vergonha!” e o empurraram. Mais policiais britânicos entraram na briga, identificando-se como membros da Scotland Yard [5]. O capitão lhes disse: “danem-se vocês e o seu governo! Ela é minha prisioneira. Saiam já desse avião”. Os policiais britânicos tentaram me prender. Três israelenses puxaram uma das minhas pernas amarradas para uma direção; os britânicos puxaram o meu braço para outra. Foi um cabo de guerra vencido pelo lado britânico. Um policial inglês grande e forte me carregou nos ombros e me jogou sobre os braços de dois outros policiais que me aguardavam. Eu estava nas mãos dos britânicos. Sabia que aqui seria mais seguro para mim que em Tel Aviv.
Os britânicos colocaram Patrick e eu em uma espécie de ambulância policial. Mesmo contra todas as expectativas, eu tinha esperança de que Patrick sobreviveria. Após alguns minutos, a enfermeira disse ao policial algo que não consegui entender. Então ela retirou a máscara de oxigênio da boca de Patrick. Eu soube que ele estava morto. Implorei aos britânicos para me desamarrar. Assim o fizeram, depois de me persuadirem a ficar calma. Fiquei em pé ao lado do corpo de Patrick: segurei suas mãos; examinei seus ferimentos; toquei em sua cabeça esmagada; beijei seus lábios em espírito de camaradagem e amor, descaradamente aos prantos. Disse-lhe: “Patrick, agora você juntou-se a Che no amor revolucionário. Você é uma inspiração para os fracos e oprimidos. Os palestinos vão erguer monumentos para você em seus corações e em nossa terra libertada. Almejo pela hora da libertação sob líderes da sua estatura e generosa dedicação”. Em menos de vinte minutos, a ambulância chegou no hospital de Hillingdon. Patrick Arguello, de 27 anos, pai de três crianças, um nicaraguense cidadão do mundo, nascido em São Francisco, Estados Unidos, foi declarado morto. O que motivou alguém do outro lado do mundo a ir até a Palestina e se comprometer com essa perigosa missão? Patrick era um comunista revolucionário. Sua brava ação foi um gesto de solidariedade internacional. Uma flama de vida se apagou; ela iluminou o mundo por um momento; incendiou os rastros no caminho de volta para a Palestina. Arguello vive, assim como o meu povo, assim como a revolução!
No hospital em Hillingdon, passei por um check-up geral e um raio-x. Fui cercada por um monte de pessoas que não pareciam ter muito a ver com meus exames médicos. O doutor declarou que eu estava “apta a deixar o hospital”, embora nem ele, nem as pessoas ao meu redor pudessem imaginar o quão espancada eu estava e como tudo em mim doía. Uma pessoa que não parecia ser enfermeira perguntou-me quem eu era. Eu disse: “sou uma soldada da Frente Popular para a Libertação da Palestina”. “Isso não é um nome”, gritou a voz. “Esse é o meu nome. Não quero dizer mais nada”. Enquanto as pessoas perambulavam tentando extrair alguma confissão ou declaração minha, o rosto familiar de um jornalista surgiu na multidão, mas não consegui identificá-lo. Ele deve ter reconhecido imediatamente minha voz. Ele disse: “é a Leila!”. Um policial disse: “que Leila?” “Leila Khaled, a garota que sequestrou o avião da TWA no ano passado”, o jornalista respondeu. “Tem certeza?” “Sim, tenho”. O policial perguntou se meu nome era Leila. Eu sorri, mas me recusei a comentar. Fui levada à delegacia de West Drayton, onde passei a noite. A polícia tentou me interrogar. Me recusei absolutamente a emitir qualquer palavra além de “sou uma soldada da Frente Popular”, a menos que me reconhecessem como uma soldada e me tratassem como uma prisioneira de guerra. Em West Drayton, o único incidente desagradável ocorreu quando um oficial de imigração apareceu com um maço de papéis, leu para mim todo tipo de instruções legais e informou que minha entrada legal na Inglaterra foi recusada. Eu disse: “ótimo, me liberte agora”. Ele disse “não” e quis que eu assinasse uns papéis ridículos e que eu agisse como se eu fosse algum tipo de britânica fora-da-lei. Exigi que o retirassem dali.
As duas primeiras noites foram um pesadelo. Eu me preocupava com o que estava acontecendo na Jordânia e o que havia acontecido com os outros sequestros planejados. Eu me sentia terrível por ter falhado em capturar e manter o voo da El-Al, me sentia arrasada pela morte do camarada Arguello. Esses dois pensamentos eram constantes em minha cabeça. Não conseguia dormir por uma hora sem acordar e me ver envolvida em outra batalha imaginária. Eu estava solitária e exausta. Conversei muito pouco com as guardas mulheres que me acompanhavam. A única relação que tinha com elas era “que horas são?”, uma pergunta que eu fazia com frequência, para aliviar o tédio. Mas uma guarda me provocou: “por que você fez isso? É um ato monstruoso”, ela disse. Saí sem ser capaz de explicá-la o porquê. Porém ela foi gentil comigo e me ajudou quando a polícia me moveu para Ealing. Ela colocou um manto sobre minha face e me desejou melhoras.
Me mudaram para a delegacia de Ealing em 7 de setembro. Aqui eu fui colocada em uma cela solitária. Duas policiais mulheres estavam de sentinela. De início, ambas pareciam ter receio de mim. Trocamos poucas palavras. Recusei-me a comer. Eu apenas fumava e bebia café preto. Pedi para ler algum jornal. Elas disseram que eu poderia ler apenas uma revista feminina. Eu disse: “não, obrigada”. Em 8 de setembro, encontrei-me com o superintendente-chefe Frew e os inspetores Bruce e Laidlaw. Disse a eles: “falarei se eu for reconhecida como uma soldada”. Eles concordaram na condição de eu dizer a verdade.
Frew: “qual é o seu nome?”
Khaled: “Leila Khaled”.
Frew: “mentira”.
Khaled: “então qual é o meu nome?”
Frew: “Khaled é um pseudônimo”.
Khaled: “meu pseudônimo é Shadiah Abu Ghazalah, ela foi uma de nossas grandes combatentes…”
Frew me interrompeu: “ah, por favor, não nos faça sermão. Seja objetiva”. Ele me mostrou uma pistola e pediu para eu identificá-la. Eu disse que essa era uma das várias pistolas israelenses que brandiram na minha cara. Eles me mostraram uma pistola que mais tarde eu descobri ser do Patrick, mas como eu não sabia na época, disse que não sabia de quem ela era. Ele não acreditou em mim. Então ele perguntou: “como foi que você obteve esses objetos estranhos?”, referindo-se às granadas de mão. Eu respondi, concisa: “me foram dados pela Frente Popular”. “Quem emitiu esse passaporte para você?” “A Frente Popular”, eu disse. “Para onde você iria levar o avião?” “Para algum lugar”. “Onde?” “Algum lugar”, eu insisti. “Quem é Abd Arheem Jaber?” Agora eu me animei e decidi fazer o meu primeiro discurso breve, recusando-me a continuar caso alguém me interrompesse. Os policiais notaram a minha determinação e permaneceram em silêncio.
“Jaber é um herói palestino em masmorras sionistas. Ele é um dos nossos líderes clandestinos em combate que causou terror no coração do inimigo e em suas cidades. Antes de ser capturado pelo inimigo em 21 de setembro de 1968, ele lutou corajosamente até ficar sem munição. Ele conteve o inimigo até que a maioria dos seus camaradas conseguiu desaparecer da mira dos helicópteros Sikorsky fabricados nos Estados Unidos. Ele viveu entre os camponeses palestinos. Ele os organizou, os treinou e difundiu entre eles as ideias revolucionárias. Seu ato mais audacioso foi ter ameaçado o general Sharif Nassir, tio do rei Hussein. Sharif Nassir estava enfrentando um pelotão jordaniano antes do regime reacionário mandá-los para o Iêmen, para ajudar na tentativa contra-revolucionária de restaurar o imamato ali deposto. Jaber levantou-se contra Sharif Nassir e disse: ‘ao invés de nos enviar ao Iêmen para enfrentar as tropas da República Árabe Unida e os radicais iemenitas, por que não nos envia à Tel Aviv para enfrentar o verdadeiro inimigo da Palestina?’ Sharif Nassir, que era ágil no gatilho, descobriu que Jaber era um pouco mais. Jaber foi desonrosamente expulso, mas manteve a sua dignidade. Eu poderia contar muito mais sobre as operações planejadas por ele nos territórios ocupados, mas quero que você entenda uma coisa: Jaber foi mantido incomunicável por quatro meses e o inimigo não conseguiu lhe tirar a vontade, mesmo com as torturas – físicas e psicológicas – que o infligiram. Eu te garanto que sou feita desse mesmo material. Acredito que você entenda, agora, por que a minha unidade chamava-se Unidade de Comando Abd Arahman Jaber”.
Os oficiais britânicos ouviram chocados. Quando terminei, Frew resumiu o interrogatório: “nessa nota que você escreveu, miss Khaled, aqui diz ‘Shadiah e suas colegas’. Quem são suas colegas?” “Que colegas?”, eu perguntei. Parei por um instante e disse: “é bastante provável que houvesse no avião outras pessoas que eu não conhecia. Por que a pergunta? Vocês encontraram mais alguém?”, perguntei inocentemente. “Miss Khaled”, Frew disse, “eu tenho cabelos brancos”. Eu o interrompi de imediato: “não é minha culpa, isso é porque você tem uma esposa irritante”. Frew soltou um sorriso: “acho que você é uma mulher muito inteligente”. “Eu recuso os seus elogios”, revidei enquanto a batalha verbal continuava. Sem sucesso, tentei parecer indignada e disse ao trio que, sendo uma mulher árabe-palestina, eu me recusava a aceitar os elogios de porcos fascistas que me mantinham como prisioneira.
Frew revirou a sua coleção de documentos e retrucou: “por que uma mulher árabe-palestina tentaria explodir um avião onde havia árabes palestinos?” Não fui antagonizada. “Ah”, eu disse, “você já decidiu que sou culpada por um crime que não cometi, antes de me dar a oportunidade de um julgamento britânico perante o tribunal”. “Todas as testemunhas disseram que você tentou explodir o avião”. “Mr. Frew”, eu disse, “há um bando de sionistas mentirosos. Além disso, por que vocês não realizam um inquérito público em que cada uma das testemunhas sejam inquiridas?” Ele sabiamente interveio: “você se considera covarde, miss Khaled?” “Veja”, eu respondi, “eu tinha ordens para tomar o avião, não para explodi-lo. Não sou uma kamikaze. Me preocupo com as pessoas. Se eu quisesse explodir o avião, ninguém conseguiria me impedir”.
“Onde você embarcou? Em Tel Aviv?”, Frew perguntou. “Embarquei no aeroporto Schiphol em Amsterdã”. “Mais quantos sequestros você tinha planejado?” “Mais nenhum”. “Houveram mais dois”, ele me informou. Surpresa e satisfeita, tentei não esboçar nenhuma reação a essa afirmação. Então Frew disse: “os israelenses demandaram a sua extradição. Você gostaria de ser extraditada para Israel?” Eu não conhecia o significado da palavra “extradição” e pedi que ele me explicasse as suas implicações. Ele o fez e adicionou: “se você for extraditada, é provável que os israelenses queiram te torturar”. “Bom, Mr. Frew, então você tem ciência das câmaras de torutra em Israel, das sessões de lavagem cerebral e humilhação física. Muito bem. Fico contente que você saiba disso. Acho que os outros também deveriam saber. Enfim, se eu for extraditada, serei apenas a número dois mil e um. Apenas estatística. Eu te garanto, não vou sucumbir sob a tortura sionista”. “Vou repetir, você é uma garota muito inteligente”, Frew declarou. “Eu insisto, não aceito os seus elogios. Me dê um cigarro e um copo de água, por favor”, eu disse bem humorada. Nessa atmosfera relaxada, disse aos policiais que não cometi crime algum contra os britânicos e que não via razão alguma para me manterem presa em uma cela britânica. Eles disseram que também não. Perguntei se algum israelense também estava preso. “Nenhum”, eles responderam. Eu explodi: “por que não? Não sabem que eles executaram meu camarada a sangue frio?” Frew destacou: “seu colega foi morto em batalha. O veredicto do médico legista diz que a morte dele foi um ‘homicídio legítimo’”. “Que vergonha para a corte britânica”, eu gritei. Como eles podem tomar uma decisão dessas com base em evidências enviesadas, sem ao menos me interrogar? É a volta da Câmara Estrelada [6], dessa vez dirigida por Tev Aviv e Washington”. A atmosfera ficava tensa enquanto o meu olhar furioso mirava os policiais. Eu murmurei: “essa é a polícia britânica”; e eles se retiraram. Fui levada de volta à minha cela. Eu estava com uma dor de cabeça intensa naquela noite. Os guardas me vigiavam atentamente enquanto eu marchava inquieta de um lado para o outro.
No dia 9 de setembro, Mr. Frew me visitou mais uma vez. Ele perguntou para onde eu gostaria de ir, se fosse extraditada. Respondi que para minha pátria, Palestina. Exigi que eu fosse libertada imediatamente e ameacei consequências terríveis se os britânicos continuassem com a minha detenção. Naquele dia, um avião VC-10 da BOAC foi sequestrado. Eu sabia que minha libertação seria iminente. Mr. Frew retornou naquela noite para dizer que eu devia saber o que estava acontecendo. Eu disse: “a Frente sabe o que está fazendo, não preciso esperar por uma recomendação de clemência da corte britânica”.
No dia 10 de setembro, fui assombrada pelo fantasma de Patrick. Não consegui segurar as lágrimas. Não consegui comer, pois Patrick morreu com fome; passei o dia todo me lembrando disso e tentei parar de comer para me acalmar. A supervisora tentou me acalmar; ela era uma mulher gentil e seus conselhos foram de muita ajuda, mas os sentimentos de angústia e tristeza são coisas que não podem ser apagadas com umas poucas palavras maternas. Porém eu me animei um pouco quando descobri que a Frente Popular demandava o meu retorno em troca dos passageiros da BOAC. Mr. Frew veio para inquirir sobre o passaporte de Patrick e perguntou: “quem era o seu companheiro, Leila?” Ele fechou a porta atrás dele. “O meu nome não é Leila, é Miss Leila Khaled, soldada da Frente Popular. Isso está claro, Mr. Frew?” Ele se surpreendeu com minha formalidade. Eu sorri e o provoquei ainda mais: “de acordo com as suas próprias regras, você não tem o direito de estar aqui na ausência de uma companhia feminina. A propósito, quando vou ter o prazer de encarar a justiça britânica?” Frew estava confuso. Ele murmurou algumas palavras incoerentes e recuou abrindo a porta. Ele foi um tanto apologético ao me perguntar se havia algo que ele poderia fazer por mim. “Sim”, eu disse, “eu gostaria de tricotar suéteres para os nossos soldados. Você seria gentil o bastante para me prover alguma lã e agulhas?” Ele prometeu que tentaria, mas achava que as leis não permitiriam. Solicitei um lápis e um pedaço de papel. Ele me deu um lápis de duas polegadas. Apesar da sonolência e da minha dor de cabeça, escrevi a minha primeira nota para Patrick:
Hoje é o quarto dia desde que embarcamos em nossa jornada imortal. Seu espírito me enche de esperança na justiça e honra da causa que abraçamos. Você deu a vida por um povo que não conhecia, por um povo a continentes distante de sua pátria, por um povo que não viu a sua fotografia. Apesar de não te conhecer, eu te conheço melhor que qualquer outro homem que encontrei em minha vida e qualquer outro herói sobre quem já li ou com com quem já sonhei. Sempre desejei conhecer pessoas que amam mais as outras do que a si mesmas; sempre admirei os homens que sacrificaram as suas vidas pela causa da liberdade; sempre adorei as pessoas que caminharam nuas em frente ao sol, sem temer os seus raios escaldantes, e disseram não aos inimigos da luz, da vida e do progresso. Ao morrer pela Palestina, você se tornou o símbolo que alivia a nossa opressão; você também se tornou o feliz encargo que nos impele adiante rumo ao fim dessa opressão. Ao juntar-se à nossa luta por dignidade e humanidade, você nos deu uma lição de solidariedade internacional e fraternidade, cimentando os laços afetivos entre o povo latino-americano e o povo palestino. Você escreveu história ao derramar o seu sangue por outros; você uniu continentes com o seu espírito todo-abrangente; você ascendeu ao reino dos deuses olímpicos com o seu comprometimento que é exemplo de vida. Você é ao mesmo tempo um Lafayette, um Byron, um Norman Bethune, um Che Guevara – um Patrick Arguello, mártir pela liberdade palestina. Você não está morto. Você vive. Viverá para sempre. Você é o santo patrono da Palestina. Na revolução,
Leila.
11 de setembro foi um dia para brincadeiras. Comecei com a visita do emissário de Honduras, um senhor feudal corpulento e bigodudo. Mr. Frew o introduziu como sua excelência, o cônsul de Honduras. Ele perguntou: “como você obteve esse passaporte hondurenho?” Respondi desdenhosamente: “a Frente Popular te disfarçou e te mandou aqui como um embaixador fictício da república das bananas?” Sua excelência ficou furiosa. Ele partiu como um Napoleão derrotado. Que triste estado de coisas para o oficialismo, um cônsul latino ser ridicularizado e insultado por uma Palestina, uma sequestradora, uma ninguém. Que humilhante! Mr. Frew ficou indignado, mas não surpreso com a minha reação. Eu o culpei pela promessa não cumprida dos materiais de tricô. Ele se desculpou e explicou: “você não está autorizada a possuir materiais pontiagudos”. Ele queria saber se a Frente explodiria o avião com os passageiros, como foi noticiado pela “objetiva” imprensa britânica naquele dia. “Sim”, eu disse sem hesitação. “O que?”, ele perguntou, “você não tem nenhuma humanidade?” “Humanidade uma ova!”, eu gritei. “Você devia ter vergonha de dizer essa palavra no Ocidente. Se tivesse alguma integridade, você removeria essa palavra dos seus dicionários e a declararia uma palavra não inglesa”. Comecei a discursar sobre o sionismo e o imperialismo e sobre como os britânicos vampirizaram o mundo árabe, mas Mr. Crew me cortou dessa vez. Ele me interrompeu: “Miss Leila Khaled, talvez o nosso governo seja imperialista. Por favor, pare com esse discurso”. Me senti minada, depois perguntei aos meus “guarda costas” por que Mr. Frew não defendeu o seu governo. Eles explicaram que havia muitos membros do Partido Trabalhista em Ealing que não eram propriamente simpáticos ao governo conservador.
No dia 12 de setembro, tentei adotar outra tática depois de ouvir que os aviões imperialistas haviam sido explodidos. Como estava ocorrendo muitas greves na Grã-Bretanha, pensei que os meus “guarda costas” deveriam aderir à greve em solidariedade aos seus companheiros trabalhadores. Como eles eram os “meus prisioneiros”, sugeri que eles organizassem uma revolta e se juntassem aos seus companheiros em greve. Enquanto eu incitava a rebelião, Mr. Frew entrou na sala. Ele suspirou profundo e disse: “o que você está tramando agora?” “Mr. Frew”, eu disse, “esses prisioneiros merecem a liberdade”. “Que prisioneiros?”, ele perguntou. “Essas pobres massas que trabalham aqui dia e noite”. “O.K., você venceu dessa vez”, ele disse paternalmente. Enquanto Mr. Frew checava a sua papelada, eu decidi molestá-lo. “Eu sei que o Ministério do Interior está violando a justiça britânica, o habeas corpus e outros conceitos jurídicos, mas o Ealing Hilton tinha que violar também as leis de higiene, Mr. Frew?” Ele coçou a cabeça e me perguntou sobre isso. Eu o informei que faziam seis dias que eu não tomava banho. Ele rapidamente tratou que eu fosse transferida ao quinto andar, acompanhada por quatro guardas mulheres que insistiram para que eu me despisse na presença delas, enquanto cada uma delas guardava os cantos daquele banheiro estreito.
13 de setembro foi um dia ruim para mim. Me senti mal a maior parte do dia e não consegui dormir naquela noite. O médico foi chamado. Ele implorou para que eu comesse mais que apenas sanduíche de queijo e café e me deu dois comprimidos para dormir. O efeito deles em mim foi terrível. Aquela noite foi um pesadelo para todos, menos para mim. Eles pensavam que eu iria morrer, mas eu os surpreendi e acordei sentindo que minha cabeça pesava uma tonelada. Quando abri os olhos às cinco e meia da manhã, praticamente todos estavam chorando. Aquela pequena supervisora encantadora ficou aliviada e contente ao ver que eu me recuperei. Era evidente que ela teve uma noite sem sono, assim como a maioria das pessoas ao meu redor.
Nas próximas duas semanas eu me acomodei a uma rotina estabelecida. Não houve mais interrogatórios. Me permitiram ficar no quarto da supervisora e perambular dentro de um raio de dez jardas sem ser seguida. Os acontecimentos políticos na Jordânia, especialmente após o dia 17, me preocupavam e se tornaram o ponto focal das minhas discussões com Frew e outros. Recebi um pacote de cartas que chegaram em Ealing: algumas me denunciavam, outras apoiavam a causa; uma continha uma proposta de casamento. Não me era permitido responder nenhuma delas, mas eu podia escrever para meus pais e alguns amigos próximos. Me voluntariei a traduzir o conteúdo das cartas, mas Mr. Frew disse que o Governo de Sua Majestade tinha os seus próprios intérpretes.
Não me surpreendeu que um massacre em larga escala estivesse em curso na Jordânia. Isolada em uma cela britânica, porém, não pude estimar a magnitude e a extensão do terror de Hussein. Me pareceu, julgando pela reportagem da mídia britânica, que o incidente foi uma continuação da política de perseguição, intimidação e terror instaurada em novembro de 1968 e continuada esporadicamente desde então. Embora fosse óbvio que o último combate engoliu o país todo, isso não era tão óbvio como a tentativa de liquidação final por parte da monarquia.
Muitos alegaram, sem justificativas, que a FPLP precipitou os massacres do regime jordaniano de setembro de 1970 com os vários “sequestros” que realizamos. Esse tipo de explicação simples, vinda da bem-concebida trama por parte das autoridades jordanianas para eliminar a revolução palestina, não pode ser aceita. O massacre de setembro e a as subsequentes operações de limpeza que ocorreram enquanto os estados árabes fulminavam deveriam convencer todos de que, de fato, os reis árabes e coronéis viam a resistência palestina como um movimento perigoso que poderia ameaçar os seus próprios regimes e engolir toda a região em uma guerra civil internacional da classe trabalhadora contra as forças de opressão. Uma coisa ficou clara naqueles meses memoráveis: Hussein estava preparado para convidar Israel a conquistar o “seu reino”, ao invés de permitir que a resistência o destronasse, e os Estados Unidos quase intervieram para “resgatar” os seus cidadãos e manter Hussein no poder. Os componentes desse drama foram uma camarilha dominante Haxemita faminta por poder, preparada para cometer qualquer traição para manter as rédeas do poder em suas mãos; o silêncio geral dos árabes, que só pode ser interpretado como aquiescência ao massacre; e a conspiração sionista-americana eclodiu entre Golda Meir e Nixon em Washington.
No dia 17 de setembro, a guarda britânica, por iniciativa própria ou sob instrução de seus superiores, me incitou a pedir asilo político. Para mim, seria uma forma repugnante de abdicação. Rejeitei a ideia de imediato. Na verdade, exigi que me soltassem para que pudesse me juntar aos meus camaradas na Jordânia. Os britânicos esperaram e negociaram como parceiros da assim chamada “Berne Five”, sob pressão dos americanos e israelenses. Estou certa de que os alemães, suíços e britânicos teriam trocado os reféns por nossos prisioneiros, não fosse a insistência sionista e americana por uma frente unificada – um ato que, na prática, mostrou o quão pouco os europeus ligam para os seus próprios cidadãos, comparado com aqueles da Israel Sionista e do behemoth Americano. Sei que a justificativa que eles deram por ações tão insensíveis foi o respeito às leis internacionais, a moralidade e a defesa de “passageiros inocentes”, mas não nos enganemos aqui; os interesses de Dick Nixon e Golda Meir estavam à frente dos da Inglaterra, Alemanha e da “neutra” Suíça.
O tumulto na Jordânia me perturbava profundamente. Tentei manter a compostura e agir naturalmente, mas era difícil. Mr. Frew me visitava diariamente. Ele perguntou por que os muçulmanos lutavam entre si ao invés de lutar contra o inimigo. Eu dissertei para ele sobre a natureza da sociedade de classes e expliquei que o bom e pequeno Reino da Jordânia, criado pelos britânicos, era parte do campo inimigo. Frew escutou atentamente, mas assim como a maior parte dos seus compatriotas ocidentais, ele era incapaz de entender a ideia de classes sociais e suas implicações históricas. Ele apenas me acusou de ser amargurada. Eu disse que era mais que amargor, eu era cheia de ódio de classe e aspirava nada menos que a obliteração completa da monarquia jordaniana e sua corte. Frew me prescreveu, como remédio para a minha consciência de classe, o repouso de uma semana na Inglaterra “democrática” antes da minha soltura. Eu disse: “eu ficaria feliz em permanecer na Inglaterra até o natal, caso fosse solta imediatamente, pois assim poderia aproveitar os belos frutos da democracia britânica”. Frew detectou o meu tom sarcástico. “Agora”, ele disse, “eu quero que você volte para a Jordânia, antes que eu perca minha esposa”. “Diga para a sua esposa não se preocupar, Mr. Frew. Não tenho intenção de me casar com um policial britânico. Se fosse para me casar, seria com um revolucionário árabe ou um simples camponês, não com um lorde inglês, nem com um magnata da marinha grega ou um barão industrial americano. Está claro, Mr. Frew?”.
Eu acompanhava a guerra civil na Jordânia pelo noticiário britânico. Quando comecei a ler as reportagens sobre a “intervenção síria”, descobri por comentários fragmentados no editorial que a invasão por parte de Israel e dos EUA estava sendo contemplada. Porém, quando foi noticiado que a “coluna síria” havia sido derrotada por bravos jordanianos e forçada a se retirar, compreendi que o regime não estava à beira do destronamento. Mas quando vi Hussein e Arafat dando as mãos na presença de reis e presidentes, eu soube que a revolução havia sido traída. Naquele momento, eu certamente poderia ter matado, sem hesitação, todos os participantes daquela conferência a tiros. Eu não podia mais conter minha fúria, eu conseguia ver escrito na parede: a resistência tinha morrido como força histórica. Eu realmente chorei pelo sangue dos mártires na Jordânia, o sangue barganhado em Hilton, no Cairo, no Palácio Koubbeh e no Quartel-General da Liga Árabe. Não consegui perdoar a Liga Árabe pelo sangue de Patrick, cujo sangue ainda jazia em um necrotério britânico enquanto assinavam uma “paz” contra-revolucionária. Eu sabia que os combatentes repudiariam a direção e, com o tempo, formariam o seu próprio partido revolucionário de vanguarda. Eu sabia que isso precisava ser feito; sabia que a Frente assim o faria. Nos meses seguintes, porém, Arafat e cia. ainda se recusavam a entender que a revolução árabe-palestina estava em contradição fundamental com a decadência das ordens sociais árabes. Hussein esmagou a resistência fisicamente na Jordânia e expulsou as guerrilhas em julho de 1971. Os “líderes da resistência”, com exceção da Frente Popular e de alguns independentes, aceitaram a mediação saudita-egípcia e ainda estavam preparados para negociar com a Jordânia e abraçar Hussein e Hassan.
Na manhã do dia 28 de setembro, me informaram que o presidente Nasser estava morrendo. Não me dei conta da realidade da notícia, nem das implicações dessa morte iminente. Eu ainda estava frenética demais com o acordo entre Arafat e Hussein para pensar claramente. Mais tarde naquele dia, porém, me informaram que o presidente Nasser estava morto. Fiquei chocada, emocionalmente paralisada. Os sentimentos que tive quando Che e Ho morreram retornaram. Dessa vez, provavelmente mais pungentes, pois eu era uma admiradora de Nasser, assim como todo árabe alguma vez ou outra. Ele foi um dos maiores líderes árabes da era moderna. Como um gigante entre anões, ele simbolizava tudo o que há de nobre, grande e fraco entre os árabes. Ele era por nós e um dos nossos; ele foi um líder dos homens. Senti que uma parte minha morreu com ele. Estava feliz por ter vivido na época de Nasser. Só serei mais feliz ao viver em uma Palestina libertada.
Mr. Frew e aqueles à sua volta perceberam como eu estava triste. Eles não conseguiam entender por que me perturbava a morte de alguém que eu tinha criticado no dia anterior. Eles não conseguiam entender que Nasser era o grande campeão do anti-imperialismo em meu mundo.
No dia 29 de setembro, Frew insinuou que eu seria solta logo. Conferi atentamente se os jornais davam alguma pista sobre quando os seis reféns seriam entregues ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Eles finalmente o foram no dia 30 de setembro de 1970. Assim que os reféns chegaram no Chipre, fui instruída a me preparar para a minha partida. Não havia indicação sobre o meu destino. Me despedi dos meus amigos britânicos, beijos e tal, e prometi enviar mais hóspedes ao Ealing Hilton, onde os clientes têm guarda-costas e o alojamento é grátis. Às seis e meia, Mr. Frew veio e perguntou para qual país eu gostaria de ir. Eu disse, confiante: “essa decisão já foi tomada por meus comandantes. A propósito, para onde estão me levando?” Frew não respondeu, ninguém me respondeu isso nas próximas horas. Me disseram que, como eu era uma soldada, era esperado que eu cumprisse as regras quando fosse retirada da Inglaterra. Concordei e segui as ordens à risca. As inspetoras disseram que as pessoas fizeram filas nas ruas para me ver, mas elas iriam ficar tristes e desapontadas, pois me levariam deitada e escondida em uma van. Fiquei surpresa ao ser acompanhada por todo um comboio de viaturas e motos da polícia. Me permitiram dar uma olhada rápida para a multidão reunida em volta da delegacia de Ealing, antes de ser levada ao aeroporto militar. Ao embarcar no helicóptero, fiz um sinal da vitória para os fotógrafos. Me despedi de Mr. Frew e prometi que voltaria para visitar Ealing. “Não”, ele gritou, “venha para a Inglaterra, não para ‘Ealing’”. Viajamos de helicóptero por volta de uma hora e pousamos em outro aeroporto sem nome. Comentei com o piloto que helicópteros são mais difíceis de sequestrar que aviões. Ele não gostou do meu senso de humor. Então embarcamos em um Comet rumo a um destino não anunciado. Não consegui descobrir para onde estavam me levando. Então ouvi alguém na tripulação dizer “tem outra mulher que vai embarcar”. Na hora eu entendi que só podia ser Amina Dhahbour, que havia sido presa pelos suíços em Zurique. De repente, pousamos em Munique. O aeroporto era um quartel. Da minha janela, contei os veículos blindados. Ordenaram que eu sentasse na última cadeira do avião. Três irmãos da Organização para Ação [Action Organization], Mufid Abdul Rahman, Hanabi e Nashaat, foram trazidos a bordo. Eu não conhecia nenhum deles, não podíamos nos dar as mãos. Depois paramos em Zurique, onde a minha inspiração, Amina, e os camaradas Ibrahim Tewfiq e Mohammad Abu Al-Haifa também embarcaram. Eu queria pelo menos abraçar Amina, mas não era permitido. Apenas nos cumprimentamos de longe. Cada passageiro tinha o seu próprio guarda-costas. Ninguém estava algemado. A noite do dia 30 de setembro foi longa. A jornada para o Cairo foi a mais longa que já enfrentei. Eu dormi periodicamente. Tínhamos que permanecer sentados o tempo todo.
Chegamos no Cairo em primeiro de outubro de 1970 às oito da manhã. A cidade estava de luto pela morte do presidente Nasser. Os cônsules da Inglaterra, Alemanha e Suíça nos encontraram no aeroporto. Cada um de nós foi obedientemente levado pela mão por “seu” cônsul e entregue às autoridades do Egito. O protocolo reinou. Fiquei chocada ao descobrir que o corpo de Patrick não estava conosco, mas não havia britânicos por perto para condenar isso ou líderes árabes para ameaçá-los. Fomos levados a uma “casa de hóspedes” egípcia e lá permanecemos por onze dias. Disseram que iam nos manter lá por “questões de segurança”.
No dia 12 de outubro, voamos para Damasco e cada soldado voltou para a sua unidade. Antes de voltar para Beirute, porém, visitei meu amigo, o coronel Ali Zaza, o homem que me acusou de trabalhar para a inteligência egípcia no caso da TWA.
“Coronel”, eu disse ao invadir o seu escritório, “acredito que agora você está convencido de que a Frente Popular e eu não são instrumentos de ninguém”. “Sim”, ele disse. “Você não gostaria de me hospedar de novo em sua pensão?” “Não, Leila. Dessa vez você pode ser a minha convidada para o almoço”. “Não, obrigado, coronel”, eu disse. “Tenho que retornar à minha unidade em Beirute dentro de duas horas. Vejo você no campo de batalha na Palestina”.
Fui para Beirute no meio de outubro e realizei uma conferência de imprensa no escritório de Al-Hadaf, destacando que Patrick foi assassinado pelos israelenses e os britânicos justificaram o crime que ocorreu em seu espaço aéreo. Até hoje, os britânicos se recusaram a apresentar a sua “evidência” diante de uma autoridade competente para inspeção e o relatório da autópsia permaneceu confidencial.
Para as próximas semanas, passei a maior parte do tempo dando entrevistas para a imprensa e me preparando para me casar com um companheiro combatente, Bassim, um revolucionário árabe e iraquiano. Nos casamos em 26 de novembro de 1970, passamos uma semana juntos e então retornamos às nossas tarefas separadas.
Notas de Rodapé
[1] No dia 29 de agosto de 1969, os militantes da Frente Popular para a Libertação da Palestina Leila Khaled e Salim Issawi sequestraram o voo 840 da Trans World Airlines (TWA) que viajava de Roma para Tel Aviv. O objetivo era sequestrar Yitzhak Rabin, general e embaixador israelense nos EUA, que devia embarcar naquele voo, mas não o fez por imprevistos de última hora.
[2] “Syslestics”, entre aspas no original. A tradução do termo é incerta. Suponho que se trata da palavra “silastic” (silicon + plastic), material criado em 1948 e presente nas luvas cirúrgicas de silicone.
[3] Plano Rogers: plano de paz elaborado após a Guerra dos Seis Dias por William P. Rogers, secretário de Estado dos Estados Unidos, visando o fim dos conflitos entre árabes e israelenses.
[4] “Encontro marcado”, em francês no original.
[5] Scotland Yard: quartel general da polícia metropolitana de Londres.
[6] Câmara Estrelada: “Star Chamber” foi uma corte inglesa situada no Palácio de Westminster, entre os séculos 15 e 17, e era composta por conselheiros particulares e juízes. Nos tempos modernos, órgãos jurídicos ou administrativos com decisões rígidas e arbitrárias são alegoricamente chamados de “star chambers”.
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