Publicado em 22 de dezembro de 2015.
Texto de Joe Perry
Originalmente disponível no site Age of Revolutions.
Tradução de Andrey Santiago.
Natal enquanto feriado revolucionário? A ideia parece paradoxal, senão bizarra. Afinal, o Natal parece ser um feriado tradicional milenar que celebra os pilares centrais da estabilidade social: fé religiosa, união familiar, prosperidade material e “Paz na Terra, Boa Vontade para com a Humanidade”.
No entanto, eras revolucionárias invariavelmente produzem novas celebrações e festivais – considere as muitas tradições inventadas pelos revolucionários franceses – e o Natal traz traços da revolução em sua história. O “primeiro” Natal, inaugurado em 366 d.C. pelo imperador romano Constantino em um esforço para unificar um império turbulento e ganhar adeptos para a nova religião estatal do cristianismo, marcou um afastamento radical do paganismo. Novos rituais de férias associados ao nascimento de Jesus foram indiscutivelmente uma apropriação revolucionária de observâncias populares já existentes associadas ao solstício de inverno e à Saturnália romana. [1]
Mesmo as festas modernas que conhecemos e amamos hoje, que tomaram forma em terras de língua alemã e inglesa nas décadas em torno das guerras napoleônicas, representaram uma ruptura definitiva e transformadora com as práticas festivas existentes. A árvore de Natal, presente na véspera ou no dia de Natal, uma visita do Papai Noel, a encenação sentimental e a memorialização da vida e da história familiar: tudo testemunhou a crescente influência da burguesia ocidental, a mais revolucionária das classes sociais. “A burguesia desempenhou na História um papel iminentemente revolucionário”, lembra-nos Karl Marx. Em suas mãos, “dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de ideias secularmente veneradas”. [2] O Natal, de muitas maneiras, fez parte dessa dissolução.

Como os romanos Constantinos que inventaram o feriado, as elites sociais que refizeram o Natal no início do século 19 – principalmente membros da burguesia de língua alemã educada e “inculturada” [3] – retrabalharam as formas comemorativas existentes. Os presentes da véspera de Natal como uma expressão de amor familiar substituíram os rituais aristocráticos e corteses de dar presentes na véspera de Ano Novo. O generoso e gentil Papai Noel substituiu os vários “homens selvagens” que aterrorizavam crianças durante todo o ano. O patriarca de terno vermelho também representava os artesãos mascarados que exigiam reconhecimento e recompensas dos superiores sociais nas procissões de múmias de inverno [festival em que a população sai as ruas de máscaras – N.T]. As demandas ameaçadoras dos mascarados por esmolas acabaram se transformando em exortações cristãs para compartilhar esmolas de caridade com os mais necessitados na temporada de festas. [4] As observâncias domesticadas da véspera / dia de Natal substituíram a gama estridente de dias dos santos e feriados religiosos menores que pontilhavam o calendário em novembro e dezembro. Para celebrar esses dias de festa, os primeiros europeus modernos uma vez devoraram produtos da colheita perecíveis em grandes festivais de excesso de embriaguez e abundância; agora, a classe média sempre crescente desfrutava de um jantar familiar sóbrio e formal (embora suntuoso), seguido, talvez, por uma taça de conhaque.

Em suma, ao longo de várias décadas, a burguesia europeia padronizou e formalizou o Natal. Eles mudaram o feriado para dentro de casa e o limparam, até que os atos gentis de reciprocidade amorosa realizados em torno da árvore de Natal sintetizassem a ritualização do estilo de vida da classe média. As celebrações do Natal, repetidas ano após ano, representavam o momento culminante das práticas domésticas. Os excessos domesticados, mas ainda assim prodigiosos do feriado, confirmaram os valores da família burguesa incorporados na miríade de outros rituais menores realizados ao longo do ano (como rezar antes do jantar ou o beijo de despedida quando o marido sai para o trabalho). [5]
Esses valores burgueses foram eles próprios transformadores, considerados naturais e universais por aqueles que os estimavam. Como afirmou Marx, “cada nova classe que passa a ocupar o posto daquela que dominou antes dela se vê obrigada, para poder encaminhar os fins a que persegue, a apresentar seus próprios interesse como o interesse geral de toda a sociedade… ela tem que dar a suas ideias a forma de universalidade, e representá-las como as únicas racionais e universalmente válidas. ” [6]
A popularidade crescente do matrimônio, a extensão e idealização e até mesmo a sacralização da infância, a celebração do amor romântico como o vínculo social mais elevado, a privatização da vida familiar – isto é, a invenção da família nuclear ao longo do século XIX [7] – exigia novos métodos de representação ritualizada para universalizar esses valores e práticas emergentes.
Novos rituais familiares permitiram à burguesia marcar limites e estabelecer domínio sobre grupos sociais concorrentes. Indignado com os negócios desregrados e incestuosos da aristocracia? Chocado e consternado com a bestialidade, a pobreza e a simples falta de educação das classes inferiores? Procurando um meio de mostrar a superioridade social / cultural de sua própria família professada e suas crenças morais? O Natal, transbordando de significado, ofereceu uma maneira esteticamente atraente, emocionalmente atraente e divertida de consolidar, mercantilizar e disseminar as crenças e práticas burguesas. De fato, o sucesso fabuloso do feriado, consubstanciado em sua popularidade crescente para cima e para baixo e através das hierarquias sociais no século XIX, e sua disseminação para terras não-cristãs no século XX (por exemplo, Oriente Médio, Ásia Oriental), atesta seus efeitos revolucionários em termos históricos mundiais. [8]
As revoluções se exaurem e se tornam autocaricaturas; como disse Marx, “a tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos”. [9] Hoje o Natal pode parecer um clichê sobrecarregado, um abraço rotineiro de laços familiares cada vez mais tênues, inundados por um mar de comercialismo e má-fé. Reflita, então, sobre a inventividade radical da burguesia do início do século XIX. Enquanto esta classe média nascente caminhava com toda a confiança para o palco mundial, “definida em brilhantes cintilantes; êxtase… o espírito do dia-a-dia”, [10] buscou consolidar seu status em um vasto espasmo de criatividade e inventividade que transformaria a sociedade humana. Natal? O feriado mais revolucionário, de fato!
Joe Perry é professor associado de história moderna europeia e alemã na Georgia State University e autor de Christmas in Germany: A Cultural History (2010). Atualmente, ele está escrevendo um livro sobre música eletrônica e a Berlin Love Parade.
Referências
[1] Daniel Miller, “A Theory of Christmas”, em Unwrapping Christmas, ed. Daniel Miller (Oxford: Oxford University Press, 1993): 3-37; Eric Hobsbawm e Terrence Ranger, eds., The Invention of Tradition (Cambridge: Cambridge University Press, 1983).
[2] Karl Marx e Friedrich Engels, “The Communist Manifesto” (orig. 1848), em The Marx-Engels Reader (2ª edição), ed. Robert C. Tucker (Nova York: Norton, 1978), 475-76.
[3] Jonathon Sperber, “Bürger, Bürgerlichkeit, Bürgerliche Gesellschaft: Studies of the German (Upper) Middle Class and Its Sociocultural World, Journal of Modern History 69 (junho de 1997): 271-97.
[4] Phyllis Siefker, Santa Claus, Last of the Wild Men: The Origins and Evolution of Saint Nicholas, Spanning 50,000 Years (London: McFarland, 1997).
[5] John R. Gillis, “Ritualization of Middle-Class Family Life in Nineteenth-Century Britain,” International Journal of Politics, Culture, and Society 9 (Winter 1989): 213-35.
[6] Karl Marx, “The German Ideology” (orig. 1845-46), em The Marx-Engels Reader, 174.
[7] Michelle Perrot, “Introduction”, in A History of Private Life, vol. 4, ed. Michelle Perrot, trad. Arthur Goldhammer (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1990): 1-5.
[8] Aqui pode-se conjugar minha análise marxista do Natal e da modernidade com outra enraizada em Foucault, na qual o Natal desempenha um papel produtivo no aparato de implantação do eu moderno. Disciplina assegurada pelo olhar panóptico de Papai Noel – ele sabe quando você está dormindo, ele sabe quando você está acordado – as crianças desenvolvem um corpo dócil com os sentimentos sentimentais apropriados ligados às exigências da vida familiar de classe média, uma parte intrínseca da subjetividade moderna. Mas isso é material para outro post….
[9] Karl Marx, “O XVIII Brumário de Luís Bonaparte” (orig. 1851), em The Marx-Engels Reader, 595.
[10] Ibidem, 597.
Leituras adicionais:
Connelly, Mark. Christmas: A Social History. London: I. B. Tauris, 1999.
Gillis, John R. A World of Their Own Making: Myth, Ritual, and the Quest for Family Values. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1997.
Nissenbaum, Stephen. The Battle for Christmas. New York: Knopf, 1996.
Perry, Joe. Christmas in Germany: A Cultural History. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2010.
Pleck, Elizabeth. Celebrating the Family: Ethnicity, Consumer Culture, and Family Rituals. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2000.
Restad, Penne. Christmas in America: A History. New York: Oxford University Press, 1995.
Just a quick note to say that the author’s name appears incorrectly at the beginning of this translation.
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