Thomas Sankara – Uma Morte que Deve nos Iluminar e Fortalecer

Discurso sobre a morte de Samora Machel.

Outubro de 1986.

Samora Machel, presidente de Moçambique e líder da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), foi morto em 19 de outubro de 1986, quando seu avião caiu na África do Sul. Muitos apoiadores da luta pela libertação da África suspeitam que o regime do Apartheid foi responsável pela queda. O discurso a seguir, dado em Ouagadougou foi publicado em 31 de outubro de 1986 na edição do Carrefour Africain.

Tradução por Guilherme Henrique.


Camaradas militantes:

Nossa tarefa hoje não é chorar, mas sim adotar uma atitude revolucionária frente a trágica situação da morte de Samora Machel. Para evitar cair no sentimentalismo, não devemos chorar. Com sentimentalismo não se pode entender a morte. O sentimentalismo pertence a uma visão messiânica do mundo, já que espera que um único homem transforme o universo; inspira lamentação, desencorajamento e desânimo assim que esse homem nos deixa.

Outra razão pela qual não devemos chorar é para não nos confundirmos com todos os hipócritas aqui e alhures – aqueles crocodilos, aqueles cães – que fazem acreditar que a morte de Samora Machel os entristece. Sabemos muito bem quem está triste e quem está satisfeito com a morte desse lutador. Não queremos entrar na competição entre os cínicos que decretam aqui e ali, isso e aquilo, falando em muitos dias de luto, cada um tentando estabelecer e anunciar sua angustia, que nós revolucionários devemos reconhecer pelo que são.

Samora Machel está morto. Esta morte deve servir para iluminar e nos fortalecer como revolucionários, porque os inimigos da nossa revolução, os inimigos dos povos do mundo, revelaram mais uma vez uma de suas táticas, uma de suas armadilhas. Nós descobrimos que os inimigos sabem como derrubar combatentes mesmo quando eles estão no ár. Nós sabemos que o inimigo pode se aproveitar de um momento de desatenção da nossa parte para cometer seus odiosos crimes.

Tiremos as lições desta agressão direta e bárbara, juntamente com os irmãos de Moçambique. O seu único propósito é desorganizar a liderança política da FRELIMO e comprometer definitivamente a luta do povo moçambicano, acabando assim com as esperanças de todo um povo – de mais de um povo, de todos os povos.

Nós dizemos ao imperialismo e a todos os nossos inimigos que cada vez que eles cometerem tais atos, será mais uma lição que aprendemos. Certamente não são lições que aprendemos de graça, mas são aquelas que absorvemos ainda mais. No passado, quando Eduardo Mondlane foi morto de forma covarde, bárbara e traiçoeira pelos inimigos dos povos do mundo, os inimigos da liberdade do povo, eles pensaram que tinham feito bem, que tinham tido sucesso¹. Esperavam que assim a bandeira da libertação caísse na lama e o povo se assustasse e desistisse de lutar para sempre.

Mas eles não contavam com a determinação do povo, com seu desejo por liberdade. Eles não contavam com a força especial que os homens têm dentro deles que os faz dizer não, apesar das balas e das armadilhas. Eles não contavam com os destemidos combatentes da FRELIMO.

Estas foram as condições em que Samora Machel ousou levantar a bandeira portada por Eduardo Modlane, cuja memória ainda nos acompanha. Machel imediatamente se estabeleceu como líder, uma força, uma estrela que guia e ilumina o caminho. Ele soube colocar seu internacionalismo a serviço dos outros. Ele lutou não só em Moçambique, mas em outros lugares, e por outros.

Vamos nos fazer uma pergunta hoje: Quem matou Samora Machel? Fomos informados que as investigações estão sendo conduzidas e os especialistas estão se reunindo para determinar a causa da morte de Machel. Com a ajuda de estações de rádio imperialistas, a África do Sul está tentando vender a teoria de um acidente. Eles querem que acreditemos que um raio atingiu o avião. Eles querem que acreditemos que algum erro do piloto levou o avião para onde não deveria ter ido.

Sem sermos pilotos ou especialistas em aeronáutica, há uma pergunta que podemos, logicamente, nos fazer: Como um avião voando a uma altitude tão alta de repente roça as árvores e capota, ou seja, chega a 200 metros do solo.

Dizem-nos que o número de sobreviventes é a prova de que foi um acidente e não um assassinato. Mas camaradas, como podem os passageiros de um avião – despertados brutalmente pelo impacto – dizer como e por que seu avião virou?

Em nossa opinião, este evento é pura e simplesmente a continuação das políticas racistas dos brancos sul-africanos. É outra manifestação do imperialismo. Para descobrir quem matou Samora Machel, perguntemo-nos quem se alegra e quem tem interesse em matar Machel. Nós encontramos, lado a lado e de mãos dadas, primeiro os brancos racistas da África do Sul, que nunca deixamos de denunciar. Ao lado deles encontramos esses fantoches, os bandidos armados do MNR, o chamado Movimento de Resistência Nacional². Resistência a quê? À libertação do povo moçambicano e outros, e à ajuda internacionalista que Moçambique prestou, via FRELIMO, a outros povos.

Encontramos também Jonas Savimbi. Ele está planejando ir para a Europa. Nós protestamos contra isso. Dissemos aos europeus, em particular a França, que se eles fossem emitir um visto de entrada para combater o terrorismo, se eles estão procurando por terroristas, eles encontraram um: Jonas Savimbi. Ao lado deles, encontramos os traidores africanos que permitem que armas para uso contra os povos da África passem por seus países. Encontramos também aquelas pessoas que gritam “paz” aqui e ali, mas que empregam seus conhecimentos e energias todos os dias para ajudar e dar suporte para a causa dos traidores africanos.

Estes são os que assassinaram Samora Machel. Infelizmente, nós, africanos, também entregamos Samora Machel aos seus inimigos, não lhe dando o apoio necessário. Quando Moçambique respondeu ao apelo da Organização da Unidade Africana (OUA) e cortou completamente as relações com a África do Sul, quem na OUA o apoiou? No entanto, Moçambique – economicamente ligada à África do Sul – estava passando por enormes dificuldades. Os moçambicanos lutaram e resistiram sozinhos à África do Sul. É por isso que nós africanos dentro da OUA temos uma grande responsabilidade pela morte de Samora Machel.

Os discursos de hoje não valerão nada se não tentarmos ser mais coerentes com as nossas resoluções no futuro. Burkina Faso apresentou a mesma posição em Harare [na Oitava Cúpula do Movimento dos Países Não Alinhados]. Não basta aplaudir Robert Mugabe e apresenta-lo como filho digno do Movimento dos Não Alinhados se, algumas horas depois de nossa partida, a África do Sul começar a bombardear o Zimbábue e cada um de nós ficar confortavelmente em casa em sua capital, não fazendo nada além de enviar mensagens de apoio. Alguns estados nos aplaudiram. Outros achavam que estávamos indo longe demais. Mas a história provou que estamos certos. Logo após a Cúpula dos Não Alinhados, a África do Sul fez sua ação suja. E aqui estamos nós, simplesmente fazendo condenações verbais.

É o imperialismo que organiza e orquestra todos esses infortúnios. Foi quem armou e treinou os racistas. Foi quem lhes vendeu o equipamento de radar e os aviões de combate para localizar e derrubar o avião de Samora Machel. Foi também quem colocou os seus fantoches em África para comunicar a informação sobre a hora de decolagem do avião e quando passaria em seu território. É quem está agora tentando tirar vantagem da situação, e é quem já está tentando descobrir quem sucederá Samora Machel. É também quem está tentando dividir os combatentes moçambicanos classificando-os como moderados e extremistas.

Samora Machel foi um grande amigo da nossa Revolução, um grande apoiador da nossa Revolução. Ele disse isso em todos os lugares e demonstrou isso em sua atitude em relação às delegações burkinabés. Entramos em contato com ele pela primeira vez através de seus escritos sobre Revolução. Nós lemos e estudamos as obras de Machel e estávamos ideologicamente próximos dele. A segunda vez que o encontramos foi em Nova Dhélhi, na cúpula dos Não Alinhados de 1983. Ele nos contou que estava acompanhando a situação do nosso país, mas estava preocupado com o desejo imperialista de dominação.

Depois disso, nós o encontramos duas vezes em Addis Abada. Tivemos discussões juntos. Nós admirávamos esse homem que nunca curvou sua cabeça, nem mesmo depois dos Acordos de Nkomati, de caráter tático queele compreendia – e que certos elementos oportunistas tentaram usar contra ele, fazendo parecer que era covarde.³ A delegação Burkinabé fez uso da palavra para dizer que aqueles que atacavam Moçambique não tinham o direito de falar enquanto não tivessem pegado em armas para ir lutar na África do Sul.

Nós o apoiamos muito, mas ele também nos apoiou. Na última cúpula da OUA, quando a posição burquinense estava sob ataque de alguns Estados, Machel tomou a palavra e disse: “Se não tiverem a gratidão e a coragem de aplaudir Burkina Faso, deveriam pelo menos ter um pouco de vergonha e ficar quietos.”

Reencontramo-nos com ele de novo na sua terra natal em Maputo. Ele nos ajudou muito a entender a situação interna e externa extremamente difícil em que se encontrava. Todos conhecem o papel que Samora Machel desempenhou entre os Estados da Linha de Frente.

Finalmente, nós o encontramos novamente na última cúpula dos Não Alinhados em Harare, onde tivemos inúmeras trocas. Samora Machel sabia que era alvo do imperialismo. Ele também se comprometeu a visitar Burkina Faso em 1987. Concordamos em fazer um intercâmbio das delegações de nossos CDRs (Comitês de Defesa da Revolução), de nosso exército, de nossos ministérios, e assim por diante.

Devemos aprender com tudo isso. Devemos permanecer firmes, de mão dadas com outros revolucionários, porque há outras tramas à nossa espera, outros crimes em preparação.

Camaradas, vamos levar esta medalha, esta distinção de honra, a Moçambique para conferi-la a Samora Machel, e peço a todos que enviem seus pensamentos com ela. Enviaremos a ele a mais alta condecoração de Burkina Faso, de nossa Revolução, porque achamos que seu trabalho contribuiu e contribui para o progresso de nossa revolução. Ele, portanto, merece a Estrela Dourada de Nahouri.

Ao mesmo tempo, peço a vocês que nomeiem ruas, prédios, etc., com o nome de Samora Machel em toda extensão do nosso território, porque ele merece. A posteridade deve se lembrar desse homem e de tudo o que ele fez por seu povo e por outros povos. Assim moldaremos sua memória em nosso país, para que outros homens se lembrem dele para sempre

Camaradas, estamos aqui reunidos hoje para pensar na perda de Samora Machel. Amanhã devemos seguir em frente, devemos vencer.

Pátria ou morte, venceremos!

Notas de Rodapé

¹ Eduardo Modlane, fundador da Frelimo, foi assassinado por agentes do colonialismo português em 1969. Foi sucedido por Samora Machel.

² Uma referência à Resistência Nacional Moçambicana, ou Renamo. Esta era uma organização intimamente ligada ao regime do apartheid sul-africano, que estava travando uma guerra terrorista contra o governo de Moçambique, matando milhares.

³ Em fevereiro de 1984 os governos de Angola e da África do Sul assinaram o Acordo de Lusaka pelo qual o governo do apartheid disse que retiraria a sua força de invasão do sul de Angola e o governo angolano prometeu restringir as atividades no seu território da Organização do Povo do Sudoeste Africano (SWAPO), que liderava a luta pela independência na Namíbia, governada pela África do Sul de 1915 a 1990, este acordo foi seguido em março de 1984 pelo referido Acordo de Nkomati entre Moçambique e África do Sul, pelo qual o governo do apartheid disse que iria retirar o seu apoio às forças pró-imperialistas da Renamo em Moçambique, enquanto o governo moçambicano prometeu deixar de permitir que o Congresso Nacional Africano da África do Sul operasse a partir de seu território.

Um comentário em “Thomas Sankara – Uma Morte que Deve nos Iluminar e Fortalecer

  1. Muito bom ler esse discurso que nos lembra do papel dos poucos na história e nos cobra também que não silenciamos a brutalidade racista e genocida de hj.
    Obrigada pela tradução e disponibilização aqui!

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