Texto originalmente publicado no livro “Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento” organizado por Alex Ratts e Bethania Gomes.
Lançado pela Editora Ogum’s Toques Negros.
Por volta do final da década de cinquenta o debate sobre as relações raciais que envolvem o negro no Brasil estava na ordem do dia, não tão amplo quanto atualmente, por causa das condições específicas da época, mas da mesma forma intenso. A emergência periódica do debate sobre a problemática racial, a nosso ver, é denominada menos por uma atitude particular dos negros como raça do que pela revisão moral dos valores gerais de nossa sociedade, reclamada por determinados setores dessa mesma sociedade, e que obrigatoriamente não inclui entre si o negro; é menos uma mudança qualitativa no comportamento racial da sociedade, que verbalizações e falácias de grupos pequenos que se desviam do debate principal ao nível político, para se ocuparem de problemas, que embora políticos, não estão em suas mãos resolver. (Se é que todos os problemas necessitam de solução). Naquele tempo como hoje o debate racial centralizava-se na relevância do papel da cultura do negro, da contribuição da cultural do negro, e mais recentemente na negação da cultura ocidental empreendida pelos negros brasileiros, ao permanecerem por tempo vivendo em condições que pouco diferem daquelas em que viviam sob o regime escravista.
Em tudo isto, embora a presença do negro exista debatendo e em alguns casos ela é individualmente ou em pequenos grupos possa aparecer como vanguarda daqueles debates, até agora estes carecem de sua presença livre e expressiva questionando ou abrindo frentes para uma provável solução, ou pelo menos para a revisão efetiva de conceitos que possam provocar uma mudança, senão nas relações em si, pelo menos naquelas falácias. Falácias que confundem a forma que se obrigou o homem negro de estar no mundo, causada pelo estigma do preconceito racial, com a sua cultura intrínseca. Que confundem o seu ser com a miséria a pobreza, o obscurantismo que impedem que ele enquanto grupo racial esteja com toda a sua potencialidade na sociedade na qual é um dos pólos.
Esse estado de coisas, no qual o negro em sua esmagadora maioria ainda se vê mergulhado, se presta atualmente para alimentar a corrente contracultural “tupiniquim”. O enaltecimento dessa pretensa “cultura” da raça negra é tida como o fiel da balança para se aferir a consciência ou não do negro brasileiro. É sobre o modo de estar no mundo e a consciência desse mundo, que são duas coisas distintas, que desejo me deter relatando um encontro. Para isso me reporto àquela época, no final dos anos cinquenta, em que as relações raciais e o preconceito estavam também na ordem do dia, nos debates dirigidos por Abdias do Nascimento e seu Teatro Experimental do Negro.
Ela [Jurema] parecia-se fisicamente comigo, tínhamos o mesmo corpo magro e a mesma altura, embora ela fosse mais velha dois anos. Voltava do ginásio, onde cursava o 2º ano ginasial, quando a encontrei. Usava um vestido muito surrado e sujo, tinha uma criança, esquálida como ela, nos braços e estava em estado adiantado de gravidez. Primeiro me dirigiu um sorriso tímido, como se estudando o terreno em que ia pisar, depois se aproximou numa atitude bem peculiar, como se estivesse com medo de me macular. Perguntou em que série eu estava. Disse-lhe, numa atitude também peculiar, como se tivesse a pedir desculpas, que estava no 2º ano ginasial. Quebrando o gelo inicial, tivemos um bate-papo meio esdrúxulo; me dava conselhos como se fosse um adulto, e só tinha quatorze anos. Entre repetições de “continue estudando” me disse uma frase que eu guardei marcadamente na memória: “não deixe que façam isso com você”. Como sempre ela me confundia, inclusive neste momento, ao pronunciar aquela frase. Tinha sempre aquela agressividade, que embora contida naquele instante se me dirigia em cheio. E o que me assustava sempre nela era aquela sensação do outro que me dominava em sua presença, era como se fosse um outro eu. De todas as nossas colegas eu só me sentia assim com ela.
Depois desse encontro eu só a vi mais duas vezes, uma delas quando, junto com o irmão, tentava carregar o pai bêbado que caíra na estação, ao lado do cesto de peixes e daquela faca que sempre me amedrontara. A faca eu vi pela primeira vez na sua mão, no dia em que ela, aos gritos, jurava sangrar um menino branco que a “dedurou” em sala de aula.
Quando eu ingressei na escola, recém-chegada de Aracaju, ela estava numa classe mais adiantada, seu nome era Jurema e tinha um irmão chamado Tião que era da minha turma. Pela primeira vez, embora estudasse numa escola pública e num bairro pobre, próximo à favela, tive uma colega da minha cor. Mas entre nós existia um como que abismo; enquanto eu imigrante nordestina, recém-chegada, era introspectiva e amedrontada, ela parecia nada temer e enfrentava tudo e todos com sua linguagem agressiva, carregada de palavrões e gírias, que a denunciavam como sendo “neguinha-do-morro”, apelido que repousava na boca de todos. Era da alcunha “neguinha-do-morro”, tão usada na época nas rodas infantis que eu me esmerava em fugir. Mas embora não fosse como Jurema, os castigos, os desprezos, o pouco caso e o próprio apelido me atingiam; e quantas vezes! Lembro-me que por essa época meu cabelo muito curto e natural era, como o dela, alvo das gozações do bairro: “paletó sem manga é blusão, negra sem cabelo é João”. E nós éramos seguidas por séquitos de meninos aos gritos, sob a complacência e adesão dos pais e dos outros adultos. Numa dessas vezes uma criança levantou o meu vestido para “ver se eu era menino ou menina”, foi o máximo das humilhações! Essas coisas aconteciam frequentemente conosco.
Uma das maneiras de que me livrava daquelas guerras de rua era me refugiando em casa, nos livros. Na sala de aula eu encontrava Jurema que não tinha como se refugiar e que brigava com todos, defendendo-se ou desacatando. Eu era uma das primeiras da sala, ela era inevitavelmente a última. E a algazarra das crianças não negras ao nosso redor. Como se não bastasse tinha todo o aparato de indiferença e ingenuidade disfarçada da instituição escolar. As professoras sem exceção eram brancas, antissépticas, castas, indiferentes e bonitas. Quase todas vinham de outro mundo, fora do subúrbio, fora da favela. A relação delas conosco era de fria empatia, ou de total aversão, como aquela do quarto ano, que deliberadamente nos confundia uma com a outra, e que numa aula de catecismo, dramatizando sobre anjo mau e anjo bom, chamou Jurema à frente do quadro negro e a comparou ao primeiro e a Rosa, uma menina loira, ao segundo. Naquele dia diante das gozações ululantes da classe, Jurema, como alternadamente o fazia, pareceu não entender a alusão clara que se fizera à sua cor, caindo na gargalhada. Também pareceu não entender quando no mês de outubro daquele ano nossos trabalhos anuais foram recusados para a exposição, porque nós éramos “assim mesmo, não tinham capricho”. Pareceu não entender ainda quando eu, que sempre tirava uma dos três primeiros lugares, tirei o primeiro naquele mês, mas não fui, como era de praxe, convocada para guarda-de-honra da bandeira nacional “porque não tinha roupa decente”, e nós usávamos uniforme. Mas no início de novembro ela tinha desaparecido da escola.
Nos meados daquele ano um acontecimento marcou minha relação com ela, assim como toda a minha vida a partir daí. Como eu disse, um abismo nos separava. No dia em que eu a vi de peixeira em punho a cem metros da escola, chamando o “dedo-duro” para sangrá-lo, me encostei nos muros das casas e fugi, com uma gama de sentimentos a confundir-me, sendo que os mais dominantes eram o medo e aquela sensação de ser ela, de estar do seu lado sempre.
Até aquela altura ela parecia não me reconhecer, com as outras crianças às vezes me agredia por falar diferente, e antipatizava frontalmente com o meu comportamento quieto e o fato de ser uma das primeiras alunas. Não se dirigia diretamente a mim, nem eu a ela, até o dia em que eu soube que ela fizera um trocadilho com o nome do meu irmão. Me senti no direito de esbravejar contra ela, embora soubesse que quase toda a escola fazia o trocadilho muito antes dela. Quando dava vazão ao que achava justa indignação, ela apareceu na minha frente, e me chamou para ajustar contas “lá fora”. Meu medo foi tanto que não falei nada. Entretanto as outras crianças já se dividiam em dois partidos, a favor dela e a meu favor. Não tive opção.
Depois da aula o espetáculo se preparou, ao nosso redor toda a turma, os aderentes e nós duas no meio; eu morta de medo não só da bravura dela, mas, mais ainda do que isso, me envergonhava de ter de brigar justo com ela, a “neguinha-do-morro”, o que fazia de mim aquilo de que sempre tentei me defender. Chegarmos ao ponto combinado, e, enquanto Jurema alardeava sua sagacidade, ditando, como de costume, o que faria com aquele fardo inexpressivo em que eu me transformara, parti, atabalhoadamente para ela e dei-lhe sucessivos arranhões no rosto. Pega de surpresa, ela não reagiu, quedou-se a olhar-me estupefata. Parecia que só existíamos naquele lugar nós duas; uma algazarra muito grande nos rodeava, mas nós permanecíamos em silêncio. Os meninos principalmente instigavam-me a continuar. Eu senti o choro espalhando por meu peito, minha face, enquanto Jurema apatetada continuava me olhando. Não seu quanto aquilo demorou, talvez não tenha passado de segundos. Ouvi uma voz de homem nos chamando de “suas neguinhas-do-morro”, perguntando se não tínhamos vergonha, etc. Sua mão me puxou para fora da roda. Enquanto todos ficavam em volta de Jurema, esgueirei-me chorando de medo e dó, até em casa.
Daquele dia em diante seu comportamento mudou comigo. A turma se preocupou em me alcançar ao posto de heroína e novo ídolo, para mim eu tinha sido salva pela mão do homem e pela alcunha de “neguinha-do-morro”. Não entendia o que se passava com ela; começou por procurar estar sempre perto de mim, em algumas provas ficava do meu lado, pedindo cola, que eu dava com prazer. De minha parte comecei a me identificar cada vez mais com ela, não mais como estar do lado dela, mas como se ela fosse meu imago. Desleixei-me mais das minhas obrigações, e quando os trabalhos meu e dela foram recusados para a exposição anual da classe essa identificação chegou ao auge. Só que, enquanto no mês de dezembro nossa professora se surpreendia ao ver-me com as vestes pobres, recebendo o diploma das mãos das autoridades, por ter tirado o primeiro lugar, Jurema tinha sumido da escola.
Dois anos mais tarde a encontrava naquelas circunstâncias. Me contava que tinha “se perdido” e o homem pai da criança de colo a abandonara, ela tinha ido com outro que na ocasião a engravidara, abandonando-a a seguir. Mostrava-se de uma forma excessivamente interessada em que eu continuasse estudando, com se isto fosse algo vital para ela. Novamente se estabelecia entre nós aquela comunicação em que “tudo” não era dito, como se uma soubesse da outra a partir de um determinado dado que ocultávamos. Adivinhava perfeitamente que aquele diálogo era impossível de se estabelecer entre ela e qualquer uma de nossas colegas brancas, não havia aquele dado que só nós duas, pela nossa experiência vivida sabíamos, e que entrava na composição de nossas personalidades, dado que fazia com que ela, a seu modo, e eu, do meu, enfrentássemos com unhas e dentes, com agressividade e com fugas o mundo preconceituoso que se delineava na nossa frente. O mundo preconceituoso e hostil que fechara o seu próprio mundo, delimitando sua vida com obstáculos irremovíveis, diante dos quais ela quedava prematuramente derrotada.
Hoje nada sei dela, nem de suas crianças. Eu continuei, não sei se movida pelas circunstâncias, ou pelo seu desejo, o certo é que a necessidade de continuar era impulsionada para me afastar do universo infantil, o qual nós duas compartilhamos e do qual ela foi a vítima. O certo também é que hoje o universo externo é semelhante. Recentemente ao me recusar a entrar pela entrada de serviço de um edifício, o porteiro justificou a atitude que tomara (quis me obrigar a entrar) dizendo que não adivinhava se eu era empregada doméstica ou amiga da pessoa a quem ia visitar. Do mesmo modo na infância a pessoa que levantou meu vestido justificou que não “adivinhava” se eu era menino ou menina, por causa do meu cabelo encarapinhado. Do mesmo modo a professora não adivinhava que eu era uma das melhores alunas da escola e que tinha os mesmos direitos que as crianças brancas nas mesmas condições.
Ninguém realmente pode “adivinhar” se o negro não por a boca no mundo e disser exatamente o que significa viver quotidianamente sob a tirania do preconceito racial que domina as ralações no Brasil. Ninguém adivinha, mas nós sabemos que não é tão real a aparência de negação dos valores sociais, pois nós não escolhemos essa negação. A aparência de “contestação” da qual uma grande maioria de negros parecem portadores, negros como Jurema, não é mais do que a ação corrosiva de uma opressão racial e social sobre um determinado grupo componente da sociedade brasileira. Com quatorze anos ela sabia que era produto de uma ordem injusta, e que não só ela, mas toda uma raça, daí nossa preocupação uma com a outra. Era se referindo a isso que ela me segredava: continue!
Quando observo o estardalhaço e certo modismo em torno da consciência racial do negro, pergunto às Juremas que existem dentro de mim e às com que cruzo nas ruas, o que pra nós representa esta “consciência racial”, que gira em torno da salvaguarda e preservação da cultura “folclórica” do negro, ou então da preservação da ingenuidade, do despojamento, da despretensão, da ausência previamente estabelecida do bem e do mal, da alegria, e de outras coisas que dizem pertencer intrinsecamente ao negro.
Observo também com alguma desconfiança as “estratégias” elaboradas às pressas para que nós vençamos o continuísmo de miséria, pobreza e aniquilamento pessoal. Preveem para nós um segregacionismo absurdo, questiona-se estupidamente se nossa luta deve ou não deve ser empreendida ao lado do branco; blasfemam contra nós sob a justificativa de que devemos retomar nossos “valores culturais”, depois de quatro séculos de opressão sistemática e de ausência de organização como, esquecendo-se propositadamente que determinados “valores culturais” não são nada mais que a fórmula que fomos forçados a recorrer para nos defender da mesma opressão, e que portanto estão carregadas, impregnadas da nódoa do racismo e por isso socialmente ineficazes.
Gostaria de perguntar a Jurema neste momento o que ela acha, por exemplo, de enaltecer-se sua agressividade anárquica que a levou à marginalidade. Ela deve saber que esta agressividade era uma resposta à vida material insuficiente que tinha, era uma resposta às manifestações inúmeras e incontroláveis do preconceito racial que imperava no meio em todo o aprendizado escolar nossa raça e os feitos dela eram enriquecidos, ocultados, distorcidos nos livros; era essa sensação de não ser, embora estivéssemos presentes naquele mundo que fazia de nós duas criaturas autômatas, amargas e dispersivas, sem nenhuma identidade com as mestras, com as colegas, com as coisas contadas nos livros. Gostaria de lhe perguntar, se, depois dessa experiência que a levou inclusive a abandonar a escola no último ano, gostaria de lhe perguntar, repito, se ela ficaria piamente agradecida se soubesse o quanto os brasileiros brancos se orgulham de trazerem na sua composição social “elemento tão importante quanto o negro, principalmente no momento em que se intensificam as ralações do Brasil com a África”.
Você ficaria agradecida Jurema? Se você conseguiu sobreviver, em que favela você mora? O que você faz para ganhar seu pão-de-cada-dia? Eu soube muito tempo depois que aquele bêbado do seu pai foi assassinado por outro peixeiro. Pelo menos peixe, sei que é capaz de você não comer mais facilmente. Soube também que seu irmão, meu colega, tinha sido preso como maconheiro e marginal perigoso. E você e suas crianças? Com quantos homens mais você teve filhos? Sabe, acham que isso é que é vida, porque só assim você sabe das coisas e continua negra, “dentro da sua cultura”. É Jurema? Nós duas sabemos o que é ser negro, e quantas coisas por isso você deixou de aprender! Jurema, quantas coisas não nos ensinaram. Mas eu aprendi. Não sei se porque continuei.
Neste instante eu me dirijo a você, onde e como você estiver: É duro zombarem do seu sofrimento com tanta acomodação. Olhe, Jurema, justamente por que as coisas foram assim com você era importante que você me respondesse. Lembrando nossa infância, a nossa adolescência, não posso aceitar sem asco que queiram nos dar como alternativa nossa “cultura” e nossa forma de estar no mundo. Não aceito porque é um preconceito. Quem nos dá esta opção são os mesmos brancos. Eles não sabem que você um dia me disse – continue. Eu continuei, mas lhe digo que não adiantou muito. O preconceito é o mesmo, embora hoje eu seja mais “viva” e não o deixe me destruir como destruiu parte de você. De onde você estiver, fazendo de suas palavras as minhas: “Não deixe que façam isso conosco!”