Terceiro capítulo do livro “Marx: uma introdução” de Jorge Grespan, professor de teoria da história da USP.
Originalmente publicado pela Boitempo, compre o livro aqui.
Transcrição por Andrey Santiago.
No curso das longas pesquisas que, na década de 1860, levariam à publicação do Livro I de O capital, Marx identificou e descreveu com minúcia um dos fenômenos fundamentais da sociedade burguesa, o fetichismo. Mal percebido pelos primeiros adeptos e intérpretes de seu pensamento no começo do século XX, mesmo depois esse fenômeno muitas vezes é reduzido apenas àquilo que se tornou conhecido como “fetichismo da mercadoria”. Contudo, o fetichismo, para além da mercadoria, diz respeito a formas sociais de maior complexidade, como o dinheiro e o capital. Marx formulou o conceito de fetichismo em sentido amplo para explicar e, ao mesmo tempo, desmascarar os mecanismos mistificadores do mundo organizado pelo valor que se valoriza.
De fato, o ponto de partida para a análise do fetichismo assenta-se na forma da mercadoria. Como mercadoria, o trabalho assume sua dimensão abstrata de modo objetivo, isto é, pela reiteração do processo social de troca que, aos poucos, fixa as proporções pelas quais as mercadorias são trocadas, permitindo o cálculo de seu valor. Marx afirma: “Assim que essas proporções alcançam uma certa solidez habitual, elas aparentam derivar da natureza dos produtos do trabalho” [1]. Em outras palavras, embora sejam determinadas realmente por relações sociais entre os produtores, as proporções parecem corresponder a qualidades intrínsecas às coisas e se revestem de um caráter material que lhes confere uma espécie de naturalidade e permanência. Essa é a caracterização geral do fetichismo: projetar nas coisas características próprias à sociabilidade capitalista.
Conforme examinado no capítulo anterior, Marx descreveu a forma mais simples dessa sociabilidade pela simultânea independência e dependência dos produtores de mercadorias, ainda proprietários de seus meios de produção. De modo autônomo dos demais, cada um deles decide o que, quanto e como produzirá, afirmando o caráter privado de seu trabalho na esfera da produção. Só depois, quando leva seu produto ao mercado, é que o produtor verifica se o que fez foi útil para os outros e se a quantidade que produziu foi maior ou menor do que aquela exigida pelos compradores de sua mercadoria. A dimensão social de seu trabalho aparece apenas nessa maneira indireta, mediada pela troca ou venda da mercadoria que produziu. O mesmo ocorre com todos os produtores, de modo que não só as vendas como também as compras de cada um, reguladas por suas necessidades de consumo, articulam a relação social entre os produtores individualizados.
Marx multiplica exemplos históricos de comunidades nas quais não havia propriedade privada para mostrar que, nelas, a dimensão social do trabalho já aparecia diretamente na esfera da produção, sem a mediação da troca de mercadorias. No capitalismo, ao contrário, a mediação existe e avança à medida que a forma mercadoria se alastra por todos os segmentos da vida social. Assim, as relações sociais não se apresentam como vínculo entre pessoas, e sim como vínculo entre coisas, assumindo as qualidades objetivas das coisas, especialmente sua aparência de força externa ao mundo humano, de realidade natural e eterna. Essa força parece dividir o trabalho entre os produtores e criar as necessidades e os desejos dos consumidores, ao mesmo tempo em que mantém intocáveis instituições como a propriedade privada. A naturalidade intrínseca às coisas obscurece o caráter histórico do capitalismo e, assim, contribui muito para sua aceitação e manutenção.
Contudo, a palavra “fetichismo” é empregada por Marx para indicar mais exatamente o reverso dessa situação: não só as relações entre as pessoas adquirem atributos objetivos, mas também as coisas passam a se revestir de qualidades subjetivas. “Fetiche” vem de “feitiço” e designa algo enfeitiçado, algo inanimado que se move como se estivesse vivo e ao qual se atribui um poder misterioso. Ao usar esse termo, Marx não quer dizer que as mercadorias podem ir ao mercado por conta própria, e sim que o padrão pelo qual elas são trocadas é, aparentemente, seu valor de uso, suas qualidades materiais inerentes. É como se essa materialidade presidisse as relações sociais de troca, como se o valor de troca fosse determinado pelo valor de uso e não pela sociabilidade do trabalho. Por isso, enquanto as relações humanas se coisificam, as relações entre as coisas adquirem subjetividade, e expressões como o “mercado está nervoso” ou “está calmo” tornam-se lugar-comum nos meios de comunicação.
No entanto, é preciso salientar que o intercâmbio entre as características das coisas e as das pessoas não é visto por Marx como uma mera aparência que a crítica pudesse dissolver sozinha. A ilusão criada pelo fetichismo é real. Ela, de fato, condiciona comportamentos, concentra poderes sociais efetivos em representações, dificulta a percepção de seus artifícios. Marx afirma que, em suas relações sociais, os indivíduos são inconscientes de toda a dimensão de seus atos: “Eles não sabem disso, mas o fazem” [2], diz uma conhecida sentença de O capital. Assim, não é possível nem necessário que as pessoas tenham perfeito conhecimento das condições do mercado e do sistema inteiro da produção social para neles atuar. O sistema é constituído para além da adesão consciente e das estratégias racionais de cada produtor ou consumidor justamente porque projeta suas características historicamente determinadas no movimento natural de coisas, delegando a elas a função de organizar a vida humana.
O poder que realiza a ilusão fetichista é ainda mais forte quando entra em cena não apenas como mercadoria em geral, e sim como a mercadoria equivalente geral, isto é, o dinheiro. Como o dinheiro é o mediador universal das trocas, nele sintetiza-se toda a circulação de mercadorias, toda a ligação social entre os vários trabalhos privados. Marx afirma, nesse sentido, que “o poder que cada indivíduo exerce sobre a atividade dos outros ou sobre as riquezas sociais existe nele como o proprietário de valores de troca, de dinheiro”, mais do que como o produtor de mercadorias. E arremata: seu “poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso” [3].
Pelo simples fato de possuir dinheiro, um indivíduo pode comprar o que outros produziram ou pode contratar alguém para trabalhar em seu lugar. Nesse caso, o fetiche consiste na transposição das relações de trabalho e de troca na matéria do dinheiro, transposição que se realiza como manifestação do poder social de comandar trabalho alheio. A matéria de que é feita a mercadoria usada como dinheiro parece conferir poder a ele, quando, na verdade, esse poder decorre de sua função de equivalente geral. O poder fetichista do dinheiro vem de uma relação social que encontra nele a forma adequada para se realizar. É importante recompor corretamente essa formulação do fetichismo do dinheiro por Marx para entender o processo histórico pelo qual o dinheiro abandonou a forma identificada com metais preciosos, como o ouro, a prata e o cobre, e adotou a forma do papel-moeda. Depois do papel-moeda, o dinheiro ainda pôde evoluir para a forma de cartões magnéticos de débito e crédito, e outras mais, livrando-se do lastro em ouro e adquirindo, com isso, até mais poder social do que antes, em razão da universalização de seu caráter de equivalente.
A partir dessa concepção do dinheiro como forma que se autonomiza das relações sociais de produção que a originaram e que passa a comandá-las, Marx desenvolve a sequência cada vez mais complexa de suas funções. De simples medida de valor, o dinheiro passa a meio para efetuar diretamente a transação de mercadorias e, depois, a meio de pagamento, forma na qual precisa se apresentar apenas virtualmente, como uma promessa de futuro reembolso do valor da mercadoria comprada. Como meio de pagamento, é possível realizar uma grande cadeia de transações repassando a mesma promessa de reembolso de mão em mão, de modo a ampliar grandemente o poder aquisitivo do dinheiro e a aparência fetichista de que é ele o responsável pela circulação de uma enorme massa de mercadorias.
Por fim, quando o dinheiro é usado para pagar o salário de trabalhadores, de quem é extraído o mais-valor, ele se converte em forma monetária do capital. Agora seu poder fetichista penetra na esfera da produção das mercadorias, não se contentando em presidir apenas a esfera das trocas. Quem recebe salário pode comprar as mercadorias de que necessita para sobreviver e, como comprador e consumidor, alcança certo poder social. Contudo, quem paga o salário tem direito a se apropriar da força de trabalho de quem a vende e dispor dela para produzir uma mercadoria de valor mais alto. Na realidade, é o capitalista quem detém o verdadeiro poder social. Em suas mãos, o dinheiro representa todo o processo pelo qual a força de trabalho é contratada, os meios de produção são comprados e a mercadoria produzida tem seu mais-valor realizado ao ser vendida.
Assim, o capital na forma de dinheiro se reveste de um fetichismo que ultrapassa a esfera da circulação à qual se limitavam a mercadoria e o dinheiro em si mesmos. O capital tem poder fetichista não apenas por assumir a forma de mercadoria ou de dinheiro, mas por comandar o processo de trabalho de modo a se apresentar como um elemento de produção também capaz de produzir valor. Para Marx, o poder de comando que dá ao capital a pretensão de produzir valor é a figura central do fetichismo presente na sociedade burguesa.
De fato, o capital não cria valor, uma vez que ele mesmo é valor. Marx ressalta que somente o trabalho pode criar valor e aponta o engano dos economistas, que confundem o capital ora com os meios materiais de produção, ora com o dinheiro, definindo o lucro como a remuneração devida ao capital por ser uma fonte independente de geração de valor. Para Marx, o capital apenas adota uma forma específica, seja a dos meios de produção, seja a do dinheiro pago na compra de força de trabalho e matérias-primas, seja a das mercadorias produzidas; mas não se reduz a nenhuma delas. Como valor que se valoriza, o capital está sempre no fluxo entre essas formas. Essencialmente, ele é a relação social que exclui a força de trabalho da propriedade dos meios de produção e a inclui no processo de valorização como um recurso subordinado. É uma ilusão pensar que o capital também produz valor.
Essa ilusão, porém, não é gratuita. Há algo no modo como o capital se constitui que induz a ela: a valorização se efetua sob condições determinadas pelo próprio capital. Sucessivos capítulos do Livro I de O capital analisam o processo pelo qual a força de trabalho é submetida realmente às condições da “cooperação”, da “divisão do trabalho” e da “grande indústria”. Antes de tudo, ao destituir o trabalhador da propriedade dos meios de produção, o capital se torna sua fonte única de emprego. É interessante registrar aqui que a palavra “emprego”, como sinônimo de “trabalho”, ilustra bem a situação na qual trabalhar quase sempre implica ser empregado pelo capital. Uma vez que o capital despojou os trabalhadores dos meios de produção, ele pode reuni-los num mesmo empreendimento e fazê-los “cooperar” sob seu comando, potencializando a força dos indivíduos agregados. Num segundo momento, o capital divide tarefas entre eles para aumentar a produtividade do conjunto, em um processo já conhecido desde as manufaturas inglesas do século XVIII e descrito por Adam Smith em A riqueza das nações [4]. Por fim, a “grande indústria” corresponde ao sistema fabril, caracterizado por subordinar o trabalhador à máquina. A partir desse último momento, ocorre a completa perda de controle do trabalhador sobre o processo de produção: a ferramenta se acopla ao corpo da máquina e não mais ao da pessoa. Por isso, diz Marx, na “manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, ele serve à máquina”. E explica: “não é o trabalhador quem emprega as condições de trabalho, mas, ao contrário, são estas últimas que empregam o trabalhador” [5].
O deslocamento das qualidades humanas para as coisas alcança agora proporções terrivelmente reais. O trabalhador passa a gravitar em torno de coisas que deformam a saúde e a integridade de seu corpo e que se autonomizam a ponto de, no limite, poderem funcionar sozinhas. Marx descreveu a fábrica como um “autômato” [6] muito antes da invenção dos robôs. O processo produtivo torna-se objeto de uma engenharia sofisticada, pois se descola dos limites físicos e mentais da pessoa e serve apenas à necessidade do capital de aumentar a produtividade e o lucro. A ciência natural transforma-se em força produtiva, e a pesquisa científica se legitima por suas possíveis aplicações à tecnologia. Como outras esferas da vida, também a do saber passa a ser medida e julgada em termos de eficácia e utilidade.
Assim, a ilusão de que o capital também cria valor decorre de sua capacidade de organizar e potencializar a capacidade do trabalho de criar valor. Seja pela simples reunião de trabalhadores, seja pela divisão técnica das tarefas entre indivíduos ou grupos de indivíduos, seja, enfim, por sujeitar o trabalhador a lidar com máquinas cada vez mais aperfeiçoadas, o capital eleva o rendimento do trabalho. Essa é a base real sobre a qual assenta sua pretensão de também criar valor e, portanto, de que o mais-valor corresponda àquilo que teria sido sua contribuição no processo de produção. O mais-valor não seria, então, fruto da exploração da força de trabalho, e sim uma remuneração devida ao capital por ter elevado a produtividade do trabalho; aqui, a ilusão surge da confusão entre a mera organização do processo produtivo e a criação propriamente dita de valor.
Além disso, a pretensão fetichista do capital deriva do papel exercido pelas máquinas e demais equipamentos que constituem sua propriedade exclusiva. Parece que esses meios de produção criam valor no produto final, quando, na verdade, seu valor foi criado pelo trabalho que os produziu e é apenas repassado para o produto pelo trabalho que depois os utiliza. Marx explica que o valor dos meios de produção resulta de trabalho pretérito, objetivado e, nesse sentido, “morto”; contraposto a ele no processo de produção apresenta-se o trabalho “vivo”, isto é, o trabalho presente que emprega os meios para produzir uma nova mercadoria. O trabalho “vivo” é o que, ao consumir a materialidade do meio de produção, simultaneamente transfere o valor da parte consumida para o produto. Portanto, de modo algum o capital investido nos meios de produção cria valor novo, ao contrário da aparência fetichista.
Ao estabelecer a diferença entre trabalho morto e trabalho vivo, Marx exibe o mecanismo do fetiche para o qual o trabalho materializado nos meios de produção seria idêntico à atividade presente realizada pelo trabalhador. Contudo, mais do que isso, Marx propõe que essa diferença se apresenta como uma oposição derivada diretamente da oposição entre capital e trabalho. Não se trata de uma simples diferença, na qual ambos os termos são externos e indiferentes um ao outro, e sim do resultado de uma negação recíproca e da subordinação de um dos termos (o trabalho) ao outro (o capital). Marx formula a oposição em uma conhecida metáfora: “O capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo ele suga” [7]. Encarnado nos meios de produção, o capital opõe-se ao trabalho, mas volta à vida pela energia do trabalho vivo, que transfere seu valor para o produto. Essa ressurreição coloca o morto na dependência total do vivo: como um vampiro, ele revive apenas enquanto consegue sugar sangue vivo.
Desse modo, a oposição entre capital e trabalho revela-se contraditória. Por um lado, a subordinação do trabalho permite ao capital autonomizar-se a ponto de pretender que os agentes dessa subordinação, os meios de produção, funcionem como autômatos que dispensam o emprego de mão de obra. Por outro, somente o trabalho cria o valor e o mais-valor de que é composto o próprio capital. Ao excluir do processo de produção o trabalho do qual depende para existir, o capital exclui-se de si mesmo, ameaça aniquilar-se. Quanto mais aperfeiçoa máquinas e instrumentos com os quais substitui a força de trabalho, mais o capital diminui a base sobre a qual repousa o processo de valorização que o constitui. Quanto mais nega necessitar de trabalho vivo, mais o trabalho morto nega sua capacidade de continuar existindo, nega a si mesmo, contradiz-se.
Ao alcançar esse ponto da análise do capitalismo, Marx expõe o caráter claramente dialético desse sistema social, presidido por uma relação social contraditória. Não se trata mais apenas da oposição de um termo ao outro, como valor e valor de uso, dinheiro e mercadoria, capital e trabalho. Trata-se de uma oposição do capital a si próprio, de uma autonegação que aponta, no limite, para seu fim. A passagem da oposição à contradição é o momento central da crítica de Marx ao capitalismo, pois caracteriza essa crítica como expressão da autonegação objetiva do capital. Marx não precisa condenar o sistema, pois o sistema se condena a si mesmo pela força da contradição que o move e, ao mesmo tempo, o corrói e destrói.
Assim, o fetichismo adota uma forma desenvolvida o bastante para explicitar não apenas a inversão entre pessoas e coisas, mas também o fundamento que a determina, a saber, a inversão entre sujeito e objeto executada pelo capital. O trabalho é o verdadeiro sujeito criador de valor, mas é dominado pelo capital e submetido à tirania dos meios de produção, que usurpam sua posição e se apresentam como o sujeito que organiza e comanda o processo. De sujeito, o trabalho passa a objeto, a instrumento vivo, enquanto o objeto passa a sujeito. Contudo, sobre esse novo sujeito pesa uma condenação: sua vida e sua atividade são roubadas do trabalho, mas ele vive só enquanto consegue sugar trabalho vivo. É tentando resolver essa contradição que o capital cria novas estruturas econômicas, novas formas sociais e políticas, novas representações ideais de seus processos efetivos. No entanto, a contradição permanece configurando a sociedade capitalista.
[1] Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 149-50.
[2] Ibidem, p. 149.
[3] Idem, Grundrisse (trad. Mario Duayer e Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 105.
[4] Adam Smith, A riqueza das nações (trad. Luiz João Baraúna, São Paulo, Nova Cultural, 1996), 2 v.
[5] Karl Marx, O capital, Livro I, cit., p. 494-5.
[6] Ibidem, p. 454.
[7] Ibidem, p. 307.