bell hooks – Honestidade: seja verdadeira com o amor

Quarto capítulo do livro “Tudo sobre o amor” de bell hooks, publicado pela Editora Elefante.

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Tradução por Stephanie Borges.


Quando nos revelamos aos nossos parceiros e descobrimos que isso traz cura, e não dano, realizamos uma descoberta importante: relacionamentos íntimos podem ser um refúgio num mundo de aparências, um espaço sagrado onde podemos ser nós mesmos, como realmente somos. […] Esse tipo de desvelamento — falar nossa verdade, compartilhar nossas lutas internas e revelar nossas arestas — é uma atividade sagrada, que permite que duas almas se encontrem e se toquem mais profundamente.
— John Welwood

Não é por acaso que, ainda crianças, geralmente aprendemos sobre justiça e jogo limpo num contexto relacionado à questão de falar a verdade. O coração da justiça é dizer a verdade, vermos a nós mesmos e ao mundo como somos, em vez de como gostaríamos que fôssemos. Nos últimos anos, sociólogos e psicólogos têm documentado o fato de que vivemos num país onde as pessoas mentem mais e mais a cada dia. O livro Lying: Moral Choice in Public and Private Life [Mentir: escolha moral na vida pública e privada], da filósofa Sissela Bok, está entre as primeiras obras a chamar a atenção para como a mentira se tornou amplamente aceitável, constituindo um lugar comum em nossas interações diárias. A trilha menos percorrida, de M. Scott Peck, tem uma seção inteira sobre a mentira. Em The Dance of Deception: A Guide to Authenticity and Truth-Telling in Women’s Relationships [A dança da ilusão: um guia sobre autenticidade e verdade nas relações das mulheres], Harriet Lerner, outra psicoterapeuta e autora de livros populares, chama a atenção para a forma como as mulheres são estimuladas pela socialização machista a fingir e manipular, a mentir como forma de agradar. Lerner destaca as várias formas como o fingimento e a mentira constantes alienam as mulheres de seus verdadeiros sentimentos, e como isso leva à depressão e à perda da autoconsciência.

Mentiras são contadas a respeito dos aspectos mais insignificantes de nossa rotina. Diante das perguntas mais básicas, do tipo “Tudo bem?”, muitos de nós mentimos. Muitas mentiras que as pessoas contam no dia a dia são para evitar conflitos ou poupar os sentimentos dos outros. Assim, se alguém te convida para um jantar com a presença de uma pessoa de quem você não gosta, você não diz a verdade nem simplesmente recusa: inventa uma história. Você conta uma mentira. Numa situação como essa, em que admitir o motivo da recusa poderia magoar outra pessoa sem necessidade, seria apropriado simplesmente declinar.

Muitas pessoas aprendem a mentir na infância. De modo geral, começam a mentir para evitar punição ou para não desapontar ou magoar um adulto. Quantos de nós podemos recordar vividamente momentos da infância em que, corajosamente, praticamos a honestidade que nossos pais nos haviam ensinado a valorizar, apenas para descobrir que eles não queriam que disséssemos a verdade desde o princípio. Há muitos e muitos casos de crianças punidas ao responder com honestidade a uma questão apresentada por uma figura de autoridade. Desde cedo fica gravado em sua consciência que dizer a verdade trará dor. E assim elas aprendem que mentir é uma maneira de evitar se ferir e ferir os outros.

Muitas crianças ficam confusas em face da insistência para que, simultaneamente, sejam honestas e aprendam a praticar uma duplicidade conveniente. Conforme crescem, começam a ver com que frequência os adultos mentem. Elas começam a perceber que poucas pessoas a seu redor falam a verdade. Eu fui criada num mundo em que as crianças eram ensinadas a dizer a verdade, mas não levou muito tempo para nos darmos conta de que os adultos não praticavam o que eles diziam. Entre meus irmãos, aqueles que aprenderam a contar mentiras educadas ou a dizer o que os adultos queriam ouvir sempre foram mais populares e mais recompensados do que aqueles entre nós que falavam a verdade.

Em qualquer grupo de crianças, nunca fica claro por que algumas aprendem rapidamente a fina arte da dissimulação (isto é, assumir qualquer aparência necessária para manipular uma situação), enquanto outras consideram difícil mascarar seus verdadeiros sentimentos. Uma vez que o faz de conta é um aspecto bastante comum nas brincadeiras infantis, trata-se de um contexto perfeito para dominar a arte da dissimulação. Frequentemente, esconder a verdade é uma parte divertida das brincadeiras; no entanto, quando isso se torna uma prática comum, é um prelúdio perigoso para que se minta o tempo todo.

Às vezes as crianças ficam fascinadas pela mentira porque percebem o poder que ela lhes dá sobre os adultos. Imagine: uma menina pequena vai à escola e diz para sua professora que é adotada, sabendo muito bem que isso não é verdade. Ela se regozija com a atenção recebida, com a simpatia e a compreensão oferecidas, e também com a raiva e a frustração dos pais quando a professora lhes telefona para falar sobre essa informação recém-descoberta. Uma amiga minha que mente muito me diz que adora enganar as pessoas, fazendo-as agir de acordo com informações que apenas ela sabe que são falsas; ela tem apenas dez anos.

Quando eu tinha sua idade, tinha medo de mentiras. Elas me confundiam e criavam confusão. Outras crianças implicavam comigo porque eu não era uma boa mentirosa. No que foi o episódio verdadeiramente violento entre minha mãe e meu pai, ele a acusou de mentir para ele. Então, houve a noite em que uma irmã mais velha mentiu dizendo que estava trabalhando como babá, quando, na verdade, tinha ido a um encontro. Enquanto batia nela, nosso pai gritava, repetidamente: “Você não minta para mim!”. Ao passo que a violência de suas reações instilou em nós pavor das consequências de mentir, isso não alterou o fato de que sabíamos que ele nem sempre dizia a verdade. Sua forma preferida de mentir era omitir. Seu bordão era “apenas fique em silêncio” quando lhe fizerem perguntas, assim você não será “pega na mentira”.

Os homens sempre mentiram para evitar confrontos ou ter que assumir suas responsabilidades por comportamentos inadequados. No inovador The Mermaid and the Minotaur: Sexual Arrangements and Human Malaise [A sereia e o Minotauro: arranjos sexuais e mal-estar humano], Dorothy Dinnerstein compartilha o achado de que, no momento em que um menino pequeno aprende que sua poderosa mãe, que controla sua vida, na verdade não tem poder dentro do patriarcado, isso o confunde e o enfurece. Mentir se torna uma das estratégias por meio das quais ele pode “agir” para tornar a mãe impotente. Mentir permite que ele manipule a mãe e até mesmo exponha sua falta de poder. Isso faz com que se sinta mais poderoso. Homens aprendem a mentir como forma de obter poder, e mulheres não apenas fazem o mesmo como também mentem para fingir que não têm poder. Em sua obra, Harriet Lerner observa os modos como o patriarcado estimula o fingimento, encorajando as mulheres a apresentarem aos homens um “eu” falso, e vice-versa. Em 101 mentiras que os homens contam para as mulheres: e por que elas acreditam, Dory Hollander confirma que, ao passo que tanto homens quanto mulheres mentem, seus dados e as descobertas de outros pesquisadores indicam que “homens tendem a mentir mais e com consequências mais devastadoras”. Para muitos homens jovens, a primeira experiência de poder sobre os outros vem da emoção de mentir para adultos mais poderosos e não sofrer consequências. Muitos homens me contaram que era difícil dizer a verdade se percebessem que ela magoaria alguém amado. Não por acaso, as mentiras que muitos meninos aprendem a contar para evitar magoar a mamãe ou seja lá quem for se tornam tão habituais que eles passam a ter dificuldade em distinguir entre mentira e verdade. Esse comportamento os acompanha pela vida adulta.

Com frequência, homens que nunca pensariam em mentir no ambiente de trabalho mentem constantemente em relacionamentos íntimos. Esse parece ser o caso, em particular, de homens heterossexuais que consideram as mulheres ingênuas. Muitos homens confessam que mentem porque conseguem se safar; suas mentiras são perdoadas. Para compreender por que as mentiras masculinas são mais aceitas em nossa vida, precisamos compreender a forma como o poder e o privilégio são concedidos aos homens simplesmente por serem homens, dentro de uma cultura patriarcal. O próprio conceito de “ser homem”, ser “homem de verdade”, deixa sempre subentendido que, quando necessário, homens podem cometer ações que quebrem as regras, que estejam acima da lei. O patriarcado nos diz diariamente, nos filmes, na televisão e nas revistas, que homens poderosos podem fazer o que bem entendem, que é essa liberdade que os torna homens. A mensagem dirigida aos homens é de que ser honesto é ser “mole”. A habilidade de ser desonesto e indiferente às consequências da desonestidade torna um homem “durão”, separa os homens dos meninos.

No livro The End of Manhood: A Book for Men of Conscience [O fim da masculinidade: um livro para os homens com consciência], John Stoltenberg analisa em que medida a identidade masculina oferecida aos homens como ideal na cultura patriarcal demanda que todos os homens inventem e mantenham um “eu” falso. A partir do momento em que meninos pequenos são ensinados que não devem chorar nem expressar mágoa, solidão ou dor, que devem ser duros, eles aprendem a mascarar seus sentimentos verdadeiros. Na pior das hipóteses, aprendem a nunca sentir nada. Essas lições muitas vezes são ensinadas a meninos por outros homens e por mães machistas. Mesmo meninos criados nos lares mais progressistas e amorosos, cujos pais os encorajam a expressar emoções, aprendem uma concepção diferente de masculinidade e de sentimentos no parquinho, na sala de aula, praticando esportes ou assistindo à televisão. Eles podem acabar escolhendo a masculinidade patriarcal para serem aceitos por outros meninos e ratificados por figuras de autoridade masculinas.

Em sua importante obra Rediscovering Masculinity: Reason, Language and Sexuality [Redescobrindo a masculinidade: razão, linguagem e sexualidade], Victor Seidler destaca:

Quando aprendemos a usar a linguagem, ainda meninos, aprendemos muito rapidamente como nos esconder por meio dela. Aprendemos a “dominar” a linguagem para que possamos controlar o mundo à nossa volta […] Embora aprendamos a culpar os outros por nossa infelicidade e sofrimento nos relacionamentos, também sabemos, em algum nível não dito, como nossa masculinidade tem sido limitada e ferida, conforme entramos em contato com a dor e a mágoa de percebermos o quanto parecemos sentir tão pouco em relação a qualquer coisa […].

O distanciamento dos sentimentos torna mais fácil para os homens mentir porque eles geralmente estão em um estado de transe, utilizando as estratégias de sobrevivência voltadas para a afirmação da masculinidade que aprenderam quando crianças. Essa inabilidade para se conectar com os outros carrega consigo uma inabilidade para assumir responsabilidade por causar dor. A negação é mais evidente em casos nos quais os homens tentam justificar a extrema violência contra quem tem menos poder, em geral mulheres, sugerindo que são eles as verdadeiras vítimas.

Independentemente da intensidade da dissimulação masculina, muitos homens, em seu íntimo, se veem como as vítimas do desamor. Como todo mundo, eles aprenderam na infância a acreditar que o amor estaria presente em sua vida. Ainda que tantos meninos sejam ensinados a se comportar como se o amor não importasse, em seu coração, anseiam por ele. Esse anseio não se dissipa simplesmente porque eles se tornam homens. Mentir, como uma forma de encenação, é um dos modos como articulam a raiva constante diante da promessa não cumprida de amor. Ao abraçarem o patriarcado, precisam abandonar ativamente o desejo de amar.

A masculinidade patriarcal exige que meninos e homens não só se vejam como mais poderosos e superiores às mulheres, mas que façam o que for preciso para manter sua posição de controle. Esse é um dos motivos pelos quais homens, bem mais do que mulheres, usam a mentira como modo de ganhar poder nos relacionamentos. Uma suposição bem aceita em uma cultura patriarcal é de que o amor pode estar presente em uma situação na qual um grupo ou indivíduo domina outro. Muitas pessoas acreditam que homens podem dominar mulheres e crianças, e ainda assim serem amorosos. O psicanalista Carl Jung enfatizou com perspicácia o truísmo segundo o qual “onde o desejo de poder é primordial, o amor estará ausente”. Fale com qualquer grupo de mulheres a respeito de seus relacionamentos com homens, independentemente de raça ou classe, e você ouvirá histórias sobre desejo de poder, sobre o modo como homens se valem da mentira, o que inclui omitir informações, como forma de controlar e subordinar.

***

Não por acaso, a aceitação cultural mais ampla da mentira em nossa sociedade coincidiu com a conquista de maior equidade social pelas mulheres. Nos primórdios do movimento feminista, as mulheres insistiam que os homens tinham vantagens porque geralmente controlavam as finanças. Agora que mais mulheres têm alcançado o poder (embora não em quantidade equivalente aos homens) e se tornado mais independentes economicamente, homens que querem manter seu domínio precisam empregar estratégias mais sutis para colonizar as mulheres e minar seu poder. Até mesmo a profissional mais bem-sucedida pode ser “derrubada” por estar em um relacionamento no qual deseja ser amada, mas é constantemente enganada. Na medida em que ela confia em seu companheiro, a mentira e outras formas de traição provavelmente despedaçarão sua autoconfiança e sua autoestima.

A obediência à dominação masculina exige que os homens que adotam esse pensamento (e muitos, se não a maioria, fazem isso) mantenham o domínio sobre as mulheres “a qualquer preço”. Embora se dê muita atenção à violência doméstica e praticamente todo mundo concorde que é errado que os homens agridam as mulheres como forma de nos subordinar, a maioria dos homens usa terrorismo psicológico para subjugar mulheres. Trata-se de uma forma de coerção socialmente aceita. E mentir é uma das armas mais poderosas nesse arsenal. Quando os homens mentem para as mulheres, apresentando um “eu” falso, o terrível preço que pagam para manter o “poder” sobre nós é a perda de sua capacidade de dar e receber amor. A confiança é o fundamento da intimidade. Quando as mentiras erodem a confiança, conexões verdadeiras não podem se estabelecer. Ao passo que homens que dominam os outros podem experimentar e experimentam carinho, eles colocam uma barreira entre si e a experiência do amor.

Todos os pensadores visionários que questionam a dominação masculina insistem que os homens só podem voltar ao amor repudiando o desejo de dominar. Em The End of Manhood, Stoltenberg enfatiza continuamente que os homens só podem honrar sua identidade por meio de uma justiça amorosa. Ele afirma: “A justiça entre as pessoas talvez seja a conexão humana mais importante que se possa ter”. Justiça amorosa para si e para os demais permite que os homens escapem do estrangulamento da masculinidade patriarcal. No capítulo “How We Can Have Better Relationships With The Women In Our Lives” [Como podemos ter relacionamentos melhores com as mulheres de nossa vida], Stoltenberg observa:

A justiça amorosa entre um homem e uma mulher não tem qualquer chance quando a masculinidade é mais importante. Quando um homem decide amar mais a masculinidade que a justiça, há consequências previsíveis em todos os seus relacionamentos com mulheres […]. Aprender a viver como um homem consciente significa decidir que sua lealdade às pessoas que você ama é sempre mais importante que qualquer inclinação de lealdade que você possa eventualmente sentir em relação ao julgamento de outros homens quanto a sua masculinidade.

Quando homens e mulheres são leais consigo mesmos e uns com os outros, quando amamos a justiça, compreendemos totalmente a miríade de formas pelas quais mentir reduz e desgasta a possibilidade de conexões significativas e carinhosas, o que levanta uma barreira ao amor.

Uma vez que, em nossa cultura, os valores e os comportamentos dos homens geralmente são padrões pelo quais todos determinam o que é aceitável, é importante compreender que tolerar a mentira é um componente essencial do pensamento patriarcal para todo mundo. De forma alguma os homens são o único grupo que usa mentiras como forma de ganhar poder sobre os outros. Na verdade, se a masculinidade patriarcal distancia os homens de sua identidade, é igualmente verdadeiro que as mulheres que aderem à feminilidade patriarcal — que insiste que as mulheres deveriam agir como se fossem fracas, incapazes de pensamento racional, burras, tolas — também são socializadas para usar uma máscara, para mentir. Esse é um dos temas principais de Lerner em The Dance of Deception. Com formulações astutas, ela convida as mulheres a prestarem conta de nossa participação em estruturas de fingimento e mentira — especialmente na vida familiar. As mulheres geralmente se sentem confortáveis mentindo para os homens com o intuito de manipulá-los, de modo que nos deem coisas que sentimos que queremos ou merecemos. Podemos mentir para reforçar a autoestima masculina. Essas mentiras podem se expressar como o ato de fingir sentir emoções que não sentimos ou de simular níveis de vulnerabilidade e necessidade emocional que são falsos.

Mulheres heterossexuais geralmente recebem lições de outras mulheres sobre a arte de mentir para os homens como uma forma de manipular. Muitos exemplos do apoio que as mulheres recebem para mentir se relacionam ao desejo de estabelecer um parceiro e de ter filhos. Quando eu desejava ter um bebê e meu companheiro na época não estava pronto, fiquei chocada com o número de mulheres que me encorajavam a desconsiderar os sentimentos dele e ir adiante sem lhe dizer. Elas achavam que não havia problema em negar a uma criança o direito de ser desejada tanto pela mãe quanto pelo pai biológico. (Não há enganação envolvida quando uma mulher tem um filho com um doador de esperma, pois nesse caso não há um pai visível para rejeitar ou punir uma criança indesejada.) Fiquei perturbada com o fato de mulheres que eu respeitava não levarem a sério a necessidade da paternidade ou não acreditarem que o desejo do homem de ter filhos fosse tão importante quanto o da mulher. Queiramos ou não, ainda vivemos num mundo onde as crianças querem saber quem são seus pais e, quando podem, vão em busca desses pais ausentes. Eu não poderia imaginar trazer uma criança a este mundo com um pai que pudesse rejeitá-la porque, para começo de conversa, não queria ser pai.

Mulheres criadas nos anos 1950, antes que houvesse métodos anticoncepcionais adequados, eram extremamente conscientes da maneira como a gravidez indesejada poderia alterar o rumo da vida de uma jovem. No entanto, era claro que havia garotas que torciam por uma gravidez para se ligarem emocionalmente para sempre a um homem em particular. Eu pensava que esses tempos já tinham acabado havia muito. Contudo, mesmo em uma era de equidade entre os sexos, ouço histórias de mulheres que decidem engravidar quando um relacionamento está ruim como forma de forçar o homem a permanecer em sua vida, ou na esperança de pressionar por casamento. Mais do que possamos imaginar, muitos homens se sentem extremamente ligados a uma mulher quando ela dá à luz um filho seu. O fato de homens sucumbirem à mentira e à manipulação quando a questão é a paternidade biológica não torna isso correto ou justo. Homens que aceitam a manipulação ou as mentiras que lhes são contadas não estão apenas abdicando de seu poder, mas criando uma situação na qual podem “culpar” as mulheres ou justificar o ódio a elas.

Esse é outro caso em que a mentira é usada para ganhar poder sobre alguém, para segurá-lo contra a sua vontade. Harriet Lerner relembra as leitoras e os leitores que a honestidade é apenas um aspecto do ato de falar a verdade — equiparada à “excelência moral: uma ausência de farsa ou fraude”. A máscara da “feminilidade” patriarcal frequentemente torna o fingimento das mulheres aceitável. Entretanto, quando as mulheres mentem, damos credibilidade a velhos estereótipos machistas que insinuam que mulheres são inerentemente menos capazes de falar a verdade em virtude de serem do sexo feminino. As origens desse estereótipo machista remontam às antigas histórias sobre Adão e Eva, sobre a disposição de Eva de mentir até para Deus.

Frequentemente, quando informações são retidas por mulheres e homens, a justificativa é proteger a privacidade. Em nossa cultura, privacidade é muitas vezes confundida com segredo. Pessoas honestas, abertas e que falam a verdade valorizam a privacidade. Todos nós precisamos de espaços onde possamos ficar sozinhos com nossos pensamentos e sentimentos — onde possamos experimentar autonomia psicológica saudável e decidir compartilhar quando quisermos. Manter segredos comumente se relaciona ao poder, a esconder e reter informação. É por isso que vários programas de reabilitação destacam que “você está tão doente quanto os seus segredos”. Quando a irmã de um ex-namorado me contou um segredo de família muito bem guardado envolvendo incesto, sobre o qual ele não sabia, respondi pedindo que ela contasse a ele. Se ela não contasse, eu contaria. Senti que manter aquele segredo violaria o compromisso que havíamos feito de sermos um casal franco e honesto um com o outro. Ao esconder essa informação dele, me unindo à sua mãe e às suas irmãs, eu teria participado da dinâmica disfuncional de sua família. Falar com ele afirmava minha lealdade e respeito por sua capacidade de lidar com a realidade.

Ao passo que a privacidade fortalece todos os nossos laços, o segredo enfraquece e prejudica a conexão. Lerner destaca que geralmente “não sabemos o custo emocional de mantermos um segredo” até que a verdade seja revelada. Comumente, manter segredo envolve mentir. E a mentira sempre é um ambiente em potencial para traição e violação de confiança.

A aceitação generalizada da mentira é uma das principais razões pelas quais muitos de nós nunca conheceremos o amor. É impossível alimentar o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa quando o centro da identidade está envolto em segredos e mentiras. Confiar que outra pessoa sempre queira o seu bem, ter uma base sólida de prática amorosa, não pode acontecer num contexto de ilusão. É esse truísmo que torna todos os atos de retenção sensata de informações dilemas morais de primeira ordem. Mais do que nunca, enquanto sociedade, precisamos renovar o compromisso de dizer a verdade. Esse compromisso se torna difícil quando mentir é considerado mais aceitável que dizer a verdade. Mentir se tornou tão aceitável como norma que as pessoas mentem mesmo quando seria mais simples dizer a verdade.

Praticamente todos os profissionais de saúde mental, dos psicanalistas mais eruditos aos gurus de autoajuda menos treinados, nos dizem que é infinitamente mais compensador e que todos seríamos mais saudáveis se disséssemos a verdade, mas a maioria de nós não está com muita pressa para integrar o rol dos que o fazem. De fato, como alguém comprometida em ser honesta no meu dia a dia, experimento a irritação constante de ser vista como uma “anormal” por dizer a verdade, mesmo quando falo de maneira verdadeira sobre temas simples. Se um amigo me der um presente e me perguntar se gostei ou não, responderei de forma honesta e criteriosa, o que significa que falarei a verdade de uma maneira positiva, carinhosa. No entanto, mesmo nessa situação, a pessoa que pede honestidade frequentemente demonstrará irritação ao receber uma resposta sincera.

No mundo de hoje, somos ensinados a temer a verdade, a acreditar que ela sempre dói. Somos encorajados a ver pessoas honestas como ingênuas, como perdedores em potencial. Bombardeados por propaganda cultural pronta para nos instilar a ideia de que mentiras são mais importantes, de que a verdade não conta, todos nós somos vítimas em potencial. A cultura do consumo, em particular, encoraja a mentira. A publicidade é um dos meios culturais que mais a sanciona. Manter as pessoas num estado constante de falta, em desejo perpétuo, fortalece a economia de mercado. O desamor é uma bênção para o consumismo. E as mentiras fortalecem o mundo da publicidade predatória. Nossa aceitação passiva das mentiras na vida pública, particularmente através dos meios de comunicação de massa, encoraja e perpetua a mentira em nossa vida privada. No plano público, os tabloides não teriam nada para expor se vivêssemos nossa vida abertamente, comprometidos a dizer a verdade. O compromisso de conhecer o amor pode nos proteger, mantendo-nos empenhados em levar uma vida de verdade, dispostos a compartilhar quem somos aberta e completamente tanto na vida pública como na privada.

Para conhecer o amor, temos que dizer a verdade para nós mesmos e para os outros. Criar um “eu” falso para mascarar os medos e as inseguranças se tornou tão comum que muitos de nós esquecemos quem somos e o que sentimos sob o fingimento. Romper com essa negação é sempre o primeiro passo para descobrir nosso desejo de sermos honestos e claros. Mentiras e segredos nos sobrecarregam e nos estressam. Se um indivíduo sempre mentiu, ele não tem consciência de que dizer a verdade pode livrá-lo desse fardo pesado. Para saber disso, é necessário abandonar as mentiras.

Quando o feminismo começou, as mulheres falavam abertamente sobre nossa vontade de conhecer melhor os homens, de amá-los pelo que eles realmente são. Falávamos de nosso desejo de sermos amadas pelo que realmente somos (isto é, sermos aceitas como os seres físicos e espirituais que somos, em vez de sentir que precisamos nos transformar em seres de fantasia para nos tornarmos objeto do desejo masculino). E instamos os homens a serem verdadeiros com eles mesmos, a se expressarem. Então, quando os homens começaram a compartilhar seus pensamentos e sentimentos, algumas mulheres não conseguiram lidar com isso. Elas queriam as velhas mentiras e fingimentos de volta. Nos anos 1970, um popular cartão de aniversário mostrava uma mulher sentada diante de uma vidente encarando uma bola de cristal. A legenda na frente do cartão dizia: “Ele nunca fala sobre os sentimentos dele”. Do lado de dentro, a resposta era: “Ano que vem, às 14 horas, os homens começarão a falar dos seus sentimentos. E, às 14h05, as mulheres de todo o país se lamentarão”. Quando ouvimos os pensamentos, os sentimentos e as crenças de outras pessoas, é mais difícil projetar nelas nossas percepções sobre quem são. É mais difícil ser manipulador. As vezes as mulheres acham difícil ouvir o que muitos homens têm a dizer quando o que eles nos falam não está de acordo com nossas fantasias de quem são e de quem gostaríamos que fossem.

A criança ferida dentro de muitos homens é um menino que, da primeira vez que falou suas verdades, foi silenciado pelo sadismo paterno, por um mundo patriarcal que não queria que ele reivindicasse seus reais sentimentos. A criança ferida dentro de muitas mulheres é uma menina que foi ensinada desde os primórdios da infância que deveria se tornar outra coisa que não ela mesma e negar seus verdadeiros sentimentos, para atrair e agradar os outros. Quando homens e mulheres punem uns aos outros por dizer a verdade, reforçamos a ideia de que o melhor é mentir. Para sermos amorosos, precisamos estar dispostos a ouvir as verdades uns dos outros e, o mais importante, reafirmar o valor de dizer a verdade. As mentiras podem fazer as pessoas se sentirem melhor, mas não nos ajudam a conhecer o amor.

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