Por que você não deveria assistir “O Nascimento de Uma Nação”

E o porque você deveria assisti-lo.

Transcrição do vídeo publicado por Kyle Kallgreen.

Vídeo completo para assistir ao final do texto com legendas em português.

Quantos estudantes de cinema assistiram esse filme?

Desde que chegou aos primeiros cinemas, pouco mais de um século atrás, quantos estudantes foram ensinados a admirar a montagem, admirar a proporção, admirar a perseguição de roer as unhas da cena final onde uma família branca é cercada por todos os lados por soldados negros ferais interpretados por atores brancos em blackface, a serem salvos no último segundo pelos heróis do filme, os Cavaleiros da Klu Klux Klan.

A história contada é que Nascimento de uma Nação também é o nascimento do longa metragem que estabeleceu as normas do fazer cinema de Hollywood e da narrativa de Hollywood para o século seguinte. Esse filme que retrata a América negra como uma ameaça existencial à América branca, onde um homem negro, interpretado por um ator branco, tenta estuprar uma mulher branca a levando ao suicídio, onde este mesmo homem negro é linchado por homens brancos em capuzes brancos que é retratado como algo heroico.

Esse filme que inspirou uma Klu Klux Klan revigorada e levou a inúmeros linchamentos de americanos negros na vida real, este filme é exibição obrigatória.

O épico de três horas de David Wark Griffith paira imensamente sobre a história do cinema, pode parecer que tentar ensinar história sem Nascimento de uma Nação é fútil, mas e se nós tentarmos? É possível reescrever a história do cinema?

Primeiro, um aviso, ao contar a história do cinema é uma falha comum dar credito à popularização ao invés da inovação. Inovação é a verdadeira força motriz do empenho artístico humano e muitas vezes aqueles que clamam inovação, meramente praticam a popularização.

Esse argumento não tem a intenção de apagar o filme ou fingir que nunca existiu, nem que tenha tido o impacto que teve, mas sim atravessar a cortina do hype e da imprensa sobre o primeiro blockbuster e recontextualizá-lo.

Afinal, Nascimento de uma nação não foi apenas uma obra prima do cinema, mas também de divulgação e como ele foi divulgado. Griffith impulsionou o lançamento contratando a Filarmônica de Los Angeles para tocar a música algo inédito naquela época e famosamente foi o primeiro filme a ser exibido na Casa Branca.

Apesar de que certa forma, era apenas natural. O Presidente Woodrow Wilson era amigo da faculdade de Thomas Dixon, que escreveu o livro no qual “Nascimento de uma Nação” é baseado e o filme cita diretamente do livro “História do Povo Americano” de Wilson. Presidente Wilson famosamente descreveu o filme: “É como escrever História com relâmpagos”, uma incrível citação se você quiser divulgar seu filme.

Antes mesmo de “Nascimento” Griffith se mostou um mestre em divulgar suas próprias conquistas, após passar 5 anos na Biograph Company, Griffith pôs um anúncio de si mesmo no New York Dramatic Mirror listando seus vários créditos em filmes e várias inovações de sua autoria:

“Incluídas entre as inovações que ele introduziu e agora são geralmente seguidas pelos mais avançados produtores, estão: as figuras grande ou em close up, visões distantes representado primeiramente em Ramona, o ‘switchback’, o suspense estendido, o ‘fade out’ e a contenção de expressão elevando a atuação de cinema ao plano mais elevado, o qual ganhou reconhecimento como uma verdadeira arte”

Há bastante aqui que foi exagerado, especialmente a parte do close up, é incrivelmente difícil examinar os trabalhos anteriores de Griffith e encontrar um único close up. Edison gravou o que podemos chamar de primeiro close up aqui, mas o crédito do close up realmente deve ir para George Albert Smith, que usou este plano de um gato em contraste com o plano mais aberto em 1903. Sim, nós estivemos fazendo vídeos de gatinhos desde que a tecnologia ficou disponível.

O “switchback” mais conhecido como cross-cutting é normalmente atribuído à Edwin S Porter que experimentou em cortar entre a ação interior dessa cena de resgate para a ação exterior, o restante, do fade out à atuação com nuance, é difícil dizer dada a amplitude do primeiro cinema e quanto disso foi perdido da história.

Mas uma coisa que ele certamente não inventou, foi o longa-metragem, aqui está um da Austrália, datado 1906, aqui um da Itália, datado 1912, e de 1913 da Suécia está esse filme: Ingeborg Holm, com encenação tão ousada e tão cheia de nuance quanto qualquer trabalho de Griffith.

Mas se você quer mesmo entender a mágica e o melodrama do primeiro cinema, veja os primeiros trabalhos de DW Griffith, não os filmes de ação grandiosos e racistas, os curtas elegantes que Griffith fez para Biograph, esses rápidos melodramas exibem tanta ou até mais inovação que seu mais famoso crime de ódio de três horas.

Claro, há bastante apologia à Guerra Civil lá, mas se está curioso assista The Musketeers of Pig Alley, um protótipo de filme de gângster, ou assista A Corner in Wheat, o qual, como Nascimento de uma Nação, contém ação paralela e narrativa, porém sem unir todas as linhas narrativas no final, ele encerra com um milionário sendo soterrado por trigo, o que é legal.

Foram esses dois filmes que foram exibidos durante minha graduação, é discutível que esse é período da carreira de Griffith que realmente vale a pena ser estudado, esse é ó período em que a narrativa do cinema começa a tomar forma, tudo que Nascimento de uma Nação fez cinematicamente falando foi pegar essas mesmas técnicas e dar a elas um grande orçamento e um elenco de milhares.

Admitidamente, é difícil falar de outros diretores da época simplesmente porque tantas obras daquele tempo foram perdidas as obras de diretores, homens, mulheres, incontáveis filmes feitos fora do sistema de Hollywood simplesmente perdidos da história e até aqueles que sobrevivem são negligenciados.

Então nós perdemos preciosidades como Cabiria ou filmes dessa mulher: Louis Weber. Quão frequente você escuta professores louvarem sua composição de planos? ou seu uso pioneiro do split screen?

Mas não, nós todos tendemos a focar em Griffith e então a obra de Griffith sobrevive e claro, Nascimento de uma Nação sobrevive. Afinal foi uma grande sensação e uma enorme controvérsia. Uma das primeiras encarnações do NAACP lançou um boicote contra o filme, um editor de Boston chamado William Monroe Trotter liderou o movimento, formando um dos primeiros atos de desobediência civil em massa nos EUA contra o filme exigindo ingressos para assisti-lo em áreas onde não seria exibido a um público “não branco”.

Na história do cinema americano, Trotter, muito mais que Griffith, merece ter seu nome celebrado, assim como Oscar Micheaux, o diretor de um dos primeiros ainda preservados filmes por um afro americano Within Our Gates. Em si, uma resposta direta à Nascimento de uma Nação, o primeiro golpe numa longa retaliação artística contra o ódio glorificado, retaliação essa que estamos tentando fazer acontecer a mais de um século.

Nós continuamos exibindo Nascimento de uma Nação mesmo enquanto nós continuamos o condenando, e aqui está o porquê você deve assistir, é fácil esquecer, ou melhor dizer, difícil lembrar que em 1915 a versão da história retratada em Nascimento de uma Nação era aceitada como fato pelos americanos brancos do Norte e do Sul, que o ódio pelos negros americanos queimava tanto, tão abertamente, para muitos.

O que é verdadeiramente chocante sobre o racismo de Griffith é o quão normal era para a época, a verdadeira conquista de Griffith foi capturar em filme cada face hedionda da ideologia da supremacia branca, de sua terrível preocupação psicossexual com a sexualidade do homem negro ao temor pela mistura das raças, à sua representação de negros na esfera política como uma ameaça à democracia mostrando uns como estúpidos demais para compreender a democracia ou astutos o suficiente para tornar a lei à favor de seus apetites sexuais insaciáveis.

Nessa cena deputados negros recém-eleitos olham cobiçadamente para mulheres brancas, enquanto eles aprovam a legislação legalizando o casamento inter-racial. Até mesmo depois da muito louvada cena de perseguição no ato final do filme, onde apenas a visão dos membros do Klan é o suficiente para fazer possíveis eleitores negros fugirem e saber tantas as formas como a direita americana tentou suprimir o direito ao voto de cidadãos americanos e ver aqui praticado tão puro desdém pela democracia e pela humanidade.

É de abrir os olhos, Nascimento de uma Nação deve ser lembrado não como uma grande obra do cinema, mas como um documento de ódio normalizado, como a mais clara expressão da supremacia branca americana no século 20, deve ser lembrado como o trauma nacional que tivemos de passar como a psicose que nós ainda temos de erradicar.

Deve ser lembrado pois gerações de americanos realmente acreditaram em sua mensagem de ódio e em algum nível muitos ainda acreditam, e isso é por mais repulsivo que soe o porquê você deve assistir.

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