Primeiro capítulo do livro “Tudo sobre o amor” de bell hooks, publicado pela Editora Elefante.
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Tradução por Stephanie Borges.
Enquanto sociedade, nos sentimos constrangidos pelo amor. O tratamos como se fosse uma obscenidade. Relutamos em admiti-lo. Apenas dizer a palavra nos faz tropeçar e corar. […] O amor é a coisa mais importante em nossa vida, uma paixão pela qual lutaríamos ou morreríamos, e, contudo, ainda hesitamos em insistir em seu nome. Sem um vocabulário maleável, nem sequer podemos falar ou pensar a seu respeito diretamente.
— Diane Ackerman
Os homens em minha vida sempre foram cautelosos em relação a usar a palavra “amor” levianamente. São precavidos porque acreditam que as mulheres dão importância demais ao amor. E sabem que o que nós pensamos sobre o significado do amor nem sempre é o que eles pensam. Nossa confusão em relação ao que queremos dizer quando usamos a palavra “amor” é a origem de nossa dificuldade de amar. Se nossa sociedade tivesse um entendimento estabelecido quanto ao significado do amor, o ato de amar não seria tão confuso. As definições de amor nos dicionários tendem a enfatizar o amor romântico, definindo-o primeiro e principalmente como “afeição profundamente terna e apaixonada por outra pessoa, especialmente quando há atração sexual”. É claro que outras definições informam o leitor que tais sentimentos podem existir em um contexto não sexual. Entretanto, afeição profunda não descreve de forma realmente adequada o significado do amor.
A grande maioria dos livros sobre o amor se esforça para se esquivar de definições claras. Na introdução de Uma história natural do amor, Diane Ackerman declara: “O amor é o grande intangível”. Algumas linhas depois, ela sugere: “Todo mundo admite que o amor é maravilhoso e necessário, mas ninguém consegue concordar a respeito de sua definição”. Timidamente, acrescenta: “Usamos a palavra amor de um jeito tão desleixado que ela pode significar quase nada ou absolutamente tudo”. Seu livro não traz qualquer definição que ajude alguém que queira aprender a arte de amar. Contudo, ela não é a única a escrever sobre o amor de forma a turvar o entendimento. Quando o próprio significado da palavra é coberto de mistério, não surpreende o fato de que a maioria das pessoas considere difícil definir a que elas se referem quando usam a palavra “amor”.
Imagine quão mais fácil seria aprender como amar se começássemos com uma definição partilhada. A palavra “amor” é um substantivo, mas a maioria dos mais perspicazes teóricos dedicados ao tema reconhece que todos amaríamos melhor se pensássemos o amor como uma ação. [1] Passei anos procurando alguma definição significativa da palavra “amor” e fiquei profundamente aliviada quando encontrei uma no clássico de autoajuda do psiquiatra M. Scott Peck, A trilha menos percorrida: uma nova visão da psicologia sobre o amor, os valores tradicionais e o crescimento espiritual, publicado originalmente em 1978. Reverberando o trabalho de Erich Fromm, ele define o amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. Para desenvolver a explicação, ele continua: “O amor é o que o amor faz. Amar é um ato da vontade — isto é, tanto uma intenção quanto uma ação. A vontade também implica escolha. Nós não temos que amar. Escolhemos amar”. Uma vez que a escolha deve ser feita para alimentar o crescimento, essa definição se opõe à hipótese mais amplamente aceita de que amamos instintivamente.
Todo mundo que tenha testemunhado o processo de crescimento de uma criança desde o nascimento vê claramente que, antes de conhecer a linguagem, antes de reconhecer a identidade dos cuidadores, bebês reagem ao cuidado afetuoso. Em geral, eles respondem com sons e olhares de prazer. Conforme crescem, reagem aos cuidados carinhosos retribuindo afeto, emitindo sons guturais diante da bem-vinda aparição de um cuidador. A afeição é apenas um dos ingredientes do amor. Para amar verdadeiramente, devemos aprender a misturar vários ingredientes — carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta. Aprender definições falhas de amor quando somos bem jovens torna difícil sermos amorosos quando amadurecemos. Começamos comprometidos com o caminho certo, mas seguimos na direção errada. A maioria de nós aprende desde cedo a pensar no amor como um sentimento. Quando nos sentimos profundamente atraídos por alguém, dedicamos energia mental e emocional à pessoa, isto é, a investimos de sentimentos e emoções. Esse processo de investimento em que a pessoa amada se torna importante para nós é chamado “catexia”. Em seu livro, Peck enfatiza corretamente que em geral se “confunde a catexia com o amor”. Todos sabemos que indivíduos que se sentem conectados a alguém pelo processo de catexia frequentemente insistem que amam a outra pessoa, mesmo magoando-a ou negligenciando-a. O que eles sentem é catexia, mas insistem que é amor.
Quando entendemos o amor como a vontade de nutrir o nosso crescimento espiritual e o de outra pessoa, fica claro que não podemos dizer que amamos se somos nocivos ou abusivos. Amor e abuso não podem coexistir. Abuso e negligência são, por definição, opostos a cuidado. Ouvimos com frequência sobre homens que batem na esposa e nos filhos e então vão ao bar da esquina proclamar apaixonadamente o quanto os amam. Se você conversar com a esposa num dia bom, ela pode insistir que ele a ama, apesar da violência. A grande maioria de nós vem de famílias disfuncionais nas quais fomos ensinados que não éramos bons, nas quais fomos constrangidos, abusados verbal e/ou fisicamente e negligenciados emocionalmente, mesmo quando nos ensinavam a acreditar que éramos amados. Para a maioria das pessoas, é simplesmente ameaçador demais aceitar uma definição de amor que não nos permitiria mais identificar o amor em nossas famílias. Muitos de nós precisamos nos apegar a uma ideia de amor que torne o abuso aceitável ou que ao menos faça parecer que, independente do que tenha acontecido, não foi tão ruim assim.
Criada numa família em que o constrangimento agressivo e a humilhação verbal coexistiam com muito afeto e cuidado, tive dificuldade para abraçar o termo “disfuncional”. Uma vez que eu ainda me sentia e me sinto apegada aos meus pais e irmãos, orgulhosa de todas as dimensões positivas de nossa vida familiar, não queria nos descrever usando um termo que dava a entender que nossa vida juntos tinha sido completamente negativa ou ruim. Não queria que meus pais pensassem que eu os menosprezava; aprecio todas as coisas boas que eles concederam à família. Com ajuda da terapia, fui capaz de ver o termo “disfuncional” como uma descrição útil, e não como um julgamento totalmente negativo. Minha família de origem me proporcionou, ao longo da infância, um ambiente disfuncional, e essa situação não mudou. Isso não significa que não seja um ambiente no qual a afeição, o prazer e o cuidado também estão presentes.
Em um dia normal na minha família de origem, eu receberia atenção carinhosa, e o fato de eu ser uma menina inteligente seria afirmado e estimulado. Então, horas depois, alguém me diria que era exatamente porque eu me achava tão esperta que provavelmente acabaria louca e internada num hospício onde ninguém iria me visitar. Não é surpreendente que essa estranha mistura de carinho e crueldade não tenha alimentado positivamente o desenvolvimento do meu espírito. Aplicando a definição de amor de Peck à experiência da minha infância no lar em que cresci, honestamente não poderia descrevê-la como amorosa.
Pressionada na terapia a descrever minha família de origem como amorosa ou não, dolorosamente reconheci que não me sentia amada, mas me sentia cuidada. E fora da nossa casa eu me sentia genuinamente amada por algumas pessoas da família, como meu avô. Essa experiência de amor verdadeiro (uma combinação de cuidado, compromisso, confiança, sabedoria, responsabilidade e respeito) nutriu meu espírito ferido e permitiu que eu sobrevivesse a atos de desamor. Sou grata por ter sido criada em uma família que era cuidadosa, e acredito fortemente que, se meus pais tivessem sido bem amados pelos pais deles, eles teriam dado amor aos filhos. Eles deram aquilo que receberam: cuidado. Ressalto que o cuidado é uma dimensão do amor, mas somente cuidar não significa que estamos amando.
Como muitos adultos que foram física e/ou verbalmente abusados quando crianças, passei boa parte da minha vida tentando negar as coisas ruins que haviam acontecido, tentando me apegar apenas às memórias dos momentos bons e deliciosos em que conheci o carinho. No meu caso, quanto mais bem-sucedida eu me tornava, mais queria parar de falar a verdade sobre a minha infância. Frequentemente, críticos da literatura de autoajuda e de programas de reabilitação gostam de fazer parecer que muitos de nós ansiamos por acreditar que nossas famílias de origem foram, são ou continuam disfuncionais, ou que lhes falta amor, mas descobri que, assim como eu, a maioria das pessoas criadas em lares excessivamente violentos ou abusivos evita aceitar qualquer crítica negativa a suas experiências. Em geral, muitos de nós precisam de alguma intervenção terapêutica, seja por meio de leituras que nos ensinam e nos iluminam, seja por meio de sessões de análise, para que sejamos capazes de ao menos começar a examinar criticamente as experiências de nossa infância e de reconhecer as formas pelas quais elas impactam nosso comportamento como adultos.
A maioria de nós tem dificuldade de aceitar uma definição de amor que afirma que nunca somos amados em contextos nos quais existe abuso. A maioria das crianças abusadas física e/ou psicologicamente foi ensinada pelos adultos responsáveis que amor pode coexistir com abuso. E, em casos extremos, que o abuso é uma expressão de amor. Esse pensamento defeituoso com frequência molda nossas percepções adultas do amor. Então, assim como nos apegamos à ideia de que aqueles que nos machucaram quando éramos crianças nos amavam, tentamos racionalizar o fato de sermos machucados por outros adultos, insistindo que eles nos amam. No meu caso, muitas práticas de humilhação às quais fui submetida na infância continuaram em meus relacionamentos românticos adultos. Inicialmente, eu não queria aceitar uma definição de amor que me obrigaria a encarar a possibilidade de não o ter conhecido nos relacionamentos que eram mais importantes para mim. Anos de terapia e reflexão crítica me permitiram aceitar que não há um estigma associado ao reconhecimento da falta de amor nos relacionamentos mais importantes. E se o objetivo da pessoa é a autorrecuperação, o bem-estar de sua alma, confrontar o desamor de modo honesto e realista é parte do processo de cura. A falta de amor consistente não significa falta de cuidado, afeição ou prazer. Na realidade, meus relacionamentos de longa duração, assim como os laços da minha família, foram tão carregados de cuidado que seria bem fácil ignorar a disfunção emocional em curso.
Para transformar a falta de amor em minhas relações mais importantes, primeiro tive que reaprender o significado do amor e, a partir dali, aprender como ser amorosa. Aceitar uma definição clara de amor foi o primeiro passo do processo. Como muitos que leram A trilha menos percorrida várias vezes, sou grata por ter encontrado uma definição de amor que me ajudou a encarar os lugares em minha vida onde ele estava ausente. Foi por volta dos 25 anos que aprendi a entender o amor como “a vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. Ainda foram necessários anos para que eu me desapegasse de padrões de comportamento aprendidos que anulavam minha capacidade de dar e receber amor. Um padrão que tornava a prática do amor especialmente difícil era com frequência escolher estar com homens emocionalmente feridos, que não estavam tão interessados em ser amorosos, embora desejassem ser amados.
Eu queria conhecer o amor, mas estava com medo de me entregar e confiar em outra pessoa. Tinha medo da intimidade. Ao escolher homens que não estavam interessados em ser amorosos, eu era capaz de praticar o ato de dar amor, mas sempre num contexto insatisfatório. Naturalmente, minha necessidade de receber amor não era saciada. Recebia o que estava acostumada a receber — carinho e afeição, geralmente misturados com algum grau de grosseria, negligência e, em algumas ocasiões, franca crueldade. Às vezes eu era dura. Levei muito tempo para reconhecer que, embora quisesse conhecer o amor, tinha medo de ter intimidade de fato. Muitos de nós escolhemos relacionamentos de afeição e carinho que nunca se tornarão amorosos porque eles parecem mais seguros. As demandas não são tão intensas quanto as do amor. O risco não é tão grande.
Muitos de nós desejamos amor, mas nos falta coragem para correr riscos. Embora sejamos obcecados com a ideia do amor, a verdade é que a maioria de nós leva uma vida decente, relativamente satisfatória, ainda que sintamos a falta de amor. Nesses relacionamentos, compartilhamos afeição e/ou carinho verdadeiro. Para a maioria de nós, parece ser suficiente, porque geralmente é muito mais do que recebemos de nossa família de origem. Sem sombra de dúvida, muitos de nós se sentem mais confortáveis com a ideia de que o amor pode significar qualquer coisa para qualquer um precisamente porque, quando o definimos com precisão e clareza, isso nos deixa cara a cara com o que nos falta — com uma alienação terrível. A verdade é que, em nossa cultura, muitas pessoas não sabem o que é o amor. E esse desconhecimento parece um segredo horrível, uma ausência que precisamos esconder.
Se tivessem me dado uma definição clara de amor mais cedo em minha vida, não teria levado tanto tempo para me tornar uma pessoa amorosa. Se eu tivesse compartilhado com outros uma compreensão comum do que significa amar, teria sido mais fácil cultivar o amor. É particularmente angustiante que tantos livros recentes a respeito do tema continuem insistindo que definições de amor são desnecessárias e sem importância. Ou pior, os autores sugerem que o amor deveria significar algo diferente para homens e para mulheres — que os sexos devem respeitar e se adaptar à nossa inabilidade de comunicação, uma vez que não partilhamos a mesma linguagem. Esse tipo de literatura é popular porque não exige mudanças nas formas estabelecidas de pensar papéis de gênero, cultura ou amor. Em vez de compartilhar estratégias que nos ajudariam a nos tornar mais amorosos, ela na verdade encoraja todo mundo a se adaptar às circunstâncias em que falta amor.
As mulheres, mais do que os homens, se apressam em consumir essas leituras. Fazemos isso porque coletivamente nos preocupamos com o desamor. Uma vez que muitas mulheres acreditam que nunca conhecerão um amor completo, elas estão dispostas a se acomodar a estratégias que ajudem a amenizar a dor e aumentar a paz, o prazer e a diversão nos relacionamentos existentes, especialmente nos românticos. Em nossa cultura, não existem canais para os leitores responderem aos autores desses livros. E nós não sabemos se eles têm sido realmente úteis, se promovem mudanças construtivas. O fato de que mulheres, mais do que homens, comprem livros de autoajuda, usando nossos recursos de consumidoras para manter obras específicas na lista de mais vendidas, não é um indício de que elas nos ajudem efetivamente a transformar nossa vivência. Comprei toneladas de livros de autoajuda. Somente alguns realmente fizeram diferença em minha vida. Isso acontece com muitos leitores.
A ausência de debate público e de políticas públicas relacionadas à prática do amor em nossa cultura significa que ainda precisamos nos voltar para os livros como uma fonte primária de sentido e orientação. Um grande número de leitores aceita a definição de amor de Peck, aplicando-a em sua vida de formas úteis e transformadoras. Podemos espalhar a ideia evocando essa definição em conversas no dia a dia, não apenas quando falamos com outros adultos, mas também em nossos diálogos com crianças e adolescentes. Quando interferimos nas suposições confusas de que o amor não pode ser definido, oferecendo delimitações práticas, úteis, já estamos criando um contexto em que o amor pode começar a florescer.
Algumas pessoas têm dificuldade com a definição de amor de Peck porque ele usa a palavra “espiritual”. Ele se refere àquela dimensão de nossa realidade mais íntima em que a mente, o corpo e o espírito são um só. O indivíduo não precisa ser praticante de uma religião para abraçar a ideia de que existe um princípio que anima o self — uma força vital (alguns de nós a chamamos de alma) que, quando alimentada, aumenta nossa capacidade de sermos inteiramente autorrealizados e aptos a nos relacionarmos em comunhão com o mundo ao nosso redor.
Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento. Somos com frequência ensinados que não temos controle sobre nossos “sentimentos”. Contudo, a maioria de nós aceita que escolhemos nossas ações, que a intenção e o desejo influenciam o que fazemos. Também aceitamos que nossas ações têm consequências. Pensar que as ações moldam os sentimentos é uma forma de nos livrarmos de suposições aceitas convencionalmente, como a de que pais amam seus filhos, de que alguém simplesmente “cai” de amores sem exercer desejo ou escolha, de que existe algo chamado “crime passional”, isto é, a ideia de que ele a matou porque a amava demais. Se nos lembrássemos constantemente de que o amor é o que o amor faz, não usaríamos a palavra de um jeito que desvaloriza e degrada o seu significado. Quando amamos, expressamos cuidado, afeição, responsabilidade, respeito, compromisso e confiança.
Definições são pontos de partida fundamentais para a imaginação. O que não podemos imaginar não pode vir a ser. Uma boa definição marca nosso ponto de partida e nos permite saber aonde queremos chegar. Conforme nos movemos em direção ao destino desejado, exploramos o caminho, criando um mapa. Precisamos de um mapa para nos guiar em nossa jornada até o amor — partindo de um lugar em que sabemos a que nos referimos quando falamos de amor.
Nota de Rodapé
[1] Em inglês, a distinção entre o substantivo love (amor) e o verbo to love (amar) é indicada apenas por uma partícula. É impossível transpor o significado original da frase, pois o português distingue o verbo do substantivo pela vogal temática e pela desinência. [n.t.]
Um comentário em “bell hooks – Clareza: pôr o amor em palavras”