Luiz Gama – Neste país não é permitido ao negro se divertir

Trecho do livro “Liberdade” de Luiz Gama, parte das Obras Completas de Luiz Gama lançado pela editora Hedra em 2021. Compre o livro aqui.

Publicado em Gazeta do Povo (SP), Publicações Pedidas, 2 de junho de 1881, p. 2.

Comentário: O artigo de Spartacus (pseudônimo de Luiz Gama) é avassalador. Num estilo que combina fúria e indignação com uma sobriedade própria ao mais experiente dos advogados, Spartacus dirige uma carta pública ao chefe de polícia de São Paulo. O texto é estruturado como uma espécie de petição judicial —endereçamento, qualificação das partes, descrição do fato criminoso e reclamação de direitos — somado, é claro, à linguagem enérgica de um denunciante na imprensa. O caso é fortíssimo e trata da violência policial branca contra negros africanos em São Paulo. Vale notar as minúcias da narrativa, a exemplo da existência de uma licença firmada pelo subdelegado, o horário da invasão policial e o estatuto jurídico dos ofendidos. É evidente que a “pessoa que isto escreve está de tudo bem informada”, dizia Spartacus, acrescentando uma expressão exata que Gama utilizou em uma de suas cartas a Ferreira de Menezes, que “neste país clássico da liberdade não é permitido ao negro divertir-se, em sua casa, sem licença da polícia!”


A sua Excla. o Ilmo. Sr. Dr. chefe de policial

O africano livre [2] Joaquim Antonio, morador ao marco da Meia Légua, [3] obteve, a 21, licença do digno sr. capitão Almeida Cabral, subdelegado do distrito, licença para dar um divertimento.

Já não é pouco; neste país clássico da liberdade não é permitido ao negro divertir-se, em sua casa, sem licença da polícia!

Divertia-se Joaquim Antonio, cidadão português do estado de Moçambique, [4] homem infeliz, que não tem por si o válido patriotismo luso do distinto sr. Abílio Marques, [5] que é só para os brancos, quando foi intimado por uma patrulha policial para não continuar.

Joaquim Antonio fechou a sua porta e continuou a divertir-se, com outros seus amigos negros.

A patrulha arrombou a porta, penetrou na casa (era meia-noite!), saqueou-a, mediante rigorosa busca, prendeu o africano livre Joaquim Tito, que reclamara contra o ato e, em seguida, arrombou mais duas casas de africanos, sem fundamento nem razão!

A pessoa que isto escreve está de tudo bem informada; e já instruiu aos pretos que, em análogas circunstâncias, repilam a agressão a ferro e à bala.

O exmo. sr. dr. chefe de polícia tem meios de impedir desaforos desta ordem.

Sabemos, pelo seu nobre caráter, que é incapaz de autorizar tropelias tais.

Spartacus

Notas de Rodapé

2. Gama usa a categoria africanos livres de diversas maneiras, com variações caso a caso. Nesse contexto, é evidente que utiliza como categoria ampla, que engloba não só os africanos desembarcados posteriormente à proibição do tráfico de escravos, firmada taxativamente por lei nacional em 1831.

3. Os marcos de meia légua demarcavam a distância de 3,3 km de cada ponto cardeal com a praça da Sé, marco zero da cidade. Embora não se saiba exatamente qual o marco de légua citado, pode-se sugerir que seja aquele localizado nas cercanias do Brás e da Mooca, periferia leste da antiga São Paulo, onde se via grande expansão de núcleos de habitação na década de 1880 e onde, também, Gama e sua família moravam.

4. Aqui o autor joga com as minúcias do discurso jurídico para conferir maior legitimidade jurídica ao demandante. Joaquim Antonio tem, por um lado, seu estatuto de estrangeiro no Brasil lançado ao seu favor e, por outro lado, a reivindicação criativa da cidadania portuguesa, o que, por vir do território ultramarino de Moçambique, aqui alçado a estado, era uma condição de fato e de direito.

5. Abílio Aurélio da Silva Marques (1851-1891), nascido em Amarante, Portugal, e radicado em São Paulo (SP), foi redator, editor, fundador de periódicos e empresário. Participou da fundação de A Província de São Paulo (1875), foi proprietário da Livraria Civilização e atuante na vida cultural de São Paulo nas décadas de 1870 e 1880.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto:
search previous next tag category expand menu location phone mail time cart zoom edit close