Ariano Suassuna – Iniciação à Estética [PDF]

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Apresentação

“Para os que só conhecem o nome de Ariano Suassuna como o autor de Auto da compadecida, obra que renovou por dentro a cena brasileira, certamente surpreenderá esta “Iniciação à estética”. São raros os criadores também dotados de fôlego teórico e crítico. Mas em Suassuna, junto com a paixão do teatro reconhecemos o carisma do mestre, do estudioso que sabe transmitir ao leitor a sua vasta cultura humanística elaborada em longos anos de pesquisa e educação. Iniciação à estética é mais do que um manual, como o seu título didático sugere tão modestamente. Trata-se de um percurso que não se esgota no universo da informação. O leitor é convidado e entrar nas grandes teorias clássicas e modernas que há mais de dois milênios se vêm debruçando sobre os conceitos complexos de Beleza e Arte. De Platão e Aristóteles aos escolásticos e a Kant; de Kant a Hegel e a Bérgson, o roteiro pontua as principais correntes filosóficas da Estética. Da história das idéias passa o autor a enfrentar os tópicos centrais da gênese e da diferenciação das artes: escultura, arquitetura, pintura, música, mímica, literatura, teatro (ou, mais amplamente, as artes de espetáculo). Devemos agradecer a este Mestre que logrou o maior dos tentos: ser profundo sem deixar de ser cristalino. Diante de Ariano Suassuna todos nos sentimos discípulos que não cessam jamais de aprender.”

– Alfredo Bosi


Introdução

Devo confessar, de início , que hesitei bastante sobre a forma sob a qual deveria reunir as reflexões realizadas durante todos os anos em que ensinei Estética no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Primeiro, pensei em deixar de lado o aspecto didático, o que me criaria condições de muito maior liberdade, para realizar obra pessoal e criadora. Mas depois refleti que, afinal, no caso, seria talvez melhor que o livro atendesse a duas finalidades, ambas ligadas à vida universitária. Primeiro, seria ele uma espécie de prestação de contas de como desempenhei minha tarefa de professor de Estética de 1956 para cá; mas, por outro lado, na forma que terminei resolvendo adotar, o livro teria, ainda, uma outra vantagem, do ponto de vista didático: é que forma ele uma espécie de arcabouço do curso que anualmente é ministrado aos estudantes de Estética da nossa Universidade. Não conheço bem o que se passa com os demais estudantes de Filosofia nas outras Universidades brasileiras; mas, no Nordeste, o curso de Estética deve ser apenas uma espécie de iniciação ao estudo da disciplina, e o presente livro foi escrito tendo em vista esse fato, a fim de que os estudantes pudessem usá-lo como guia em seus estudos.

A bibliografia nele usada, por exemplo, teve que atender à possibilidade de consulta imediata pelos estudantes, pelo que se procurou cingi-la aos livros que, por qualquer motivo, estavam mais ao alcance deles, durante o curso. Não adianta nada indicar aos nossos alunos uma bibliografia ideal que nunca será por eles compulsada. É mais útil e mais realista fundamentar o curso em livros que os estudantes possam consultar nas bibliotecas da Universidade ou então comprar imediatamente, na vigência das aulas. Mas como nem mesmo isso é sempre possível, procurou-se, aqui, suprir os estudantes da provável falta, citando-se fartamente os autores considerados indispensáveis a uma iniciação aos problemas estéticos. Eu podia ter evitado qualquer citação e feito, assim, um trabalho puramente pessoal: mas seria, isso, um prejuízo para os estudantes, em proveito do escritor. Achei melhor colocar sobre cada assunto o número maior possível de opiniões, a fim de que os alunos pensassem e repensassem cada problema. Para ficar num só exemplo ilustrativo do procedimento didático aqui seguido: no ano em que foi iniciado o curso que deu origem a esta Iniciação à Estética, não havia, em Português, sobre a questão da metodologia, um trabalho ao mesmo tempo claro e bemfundamentado como o de Moritz Geiger. É por isso que ele vai profusamente citado aqui, através de uma tradução argentina. Com isso, ao mesmo tempo indicava-se o livro aos estudantes, forçando-se um pouco sua leitura por parte deles, e colocava-se o fundamental do que ali se encontra ao alcance dos que, por qualquer motivo, não pudessem lê-lo ou obtê-lo. Somente depois, em 1958, foi que uma editora da Bahia prestou aos estudantes brasileiros de Estética o serviço de editar o excelente livro de Moritz Geiger, em português. E para que bem se entenda o espírito com que foi feito o presente manual, esclareço ainda que doei todos os exemplares dos livros aqui citados à Biblioteca do atual Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, a fim de facilitar aos estudantes o acesso à bibliografia empregada no curso.

O que é indispensável, porém, é a leitura cuidadosa e apaixonada, por parte dos estudantes, dos textos fundamentais da Estética, os únicos capazes de despertar, neles, o amor por esse ramo do conhecimento. A iniciação à Estética não se dá sem aquele deslumbramento ante a beleza e a Arte, que não é, senão, uma outra face do deslumbramento ante o mundo que já deve ter despertado, neles, o amor pela Filosofia. Para falar a verdade, qualquer dos quatro ou cinco grandes textos estéticos pode servir para isso, e os estudantes escolherão o seu de acordo com o temperamento e o modo de ver as coisas de cada um. Os que eu recomendo anualmente a meus alunos são: os Diálogos, de Platão, principalmente o “Fedro” e “O Banquete”; a Poética, de Aristóteles; o “Logos VI” da Enéada I, de Plotino; Arte Escolástica e A Intuição Criadora em Arte e Poesia, de Jacques Maritain; a “Crítica do Juízo”; de Kant; e a Estética, de Hegel.

Mas eu digo sempre aos estudantes que é melhor estudar um só livro, qualquer que seja ele, com “raça”, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente. Porque em tais casos, um livro, mesmo menor, examinado e reexaminado em todas as suas implicações, aplaudido aqui e ferozmente negado ali, pode ser, para o jovem que o leia, o que foi, para mim, o “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche, na adolescência: a descoberta da ardente e duradoura alegria do conhecimento.

***

Às vezes, dando aulas, eu descobria que devia reduzir a indicação bibliográfica a um único texto. Em tais casos, costumo suprir, como posso, a leitura de outros com os presentes esboços de aula. Ao mesmo tempo, realizo, em classe, a leitura integral do “Fedro”, a da pequena obra-prima, já referida, de Plotino, e a da Poética, de Aristóteles; e indico para estudo somente a Estética, de Hegel. Apesar de não ser hegeliano, considero essa sua obra a mais monumental que já foi feita no campo da Estética, superior, pela grandeza da concepção e pela variedade das ideias e sugestões, a todas as demais.

De tudo isso, decorre que se encontram citados aqui, lado a lado, autores de pensamentos não só diferentes, mas, às vezes, até apostos. Não vejo por que motivo devamos recusar verdades que foram incorporadas de uma vez para sempre ao entendimento do mundo por obra de pensadores, solitários ou de sistemas, que, tendo uma visão geral talvez diferente da nossa, encontraram aquelas verdades e conseguiram expressá-las de modo definitivo. É o caso, por exemplo — já que estamos aludindo a Hegel —, da colocação do homem, entendido como sujeito e liberdade, diante da necessidade, das forças cegas e brutais do mundo, entendidas como objeto, ideia que foi trabalho e intuição da Filosofia idealista alemã do século XIX, com Schelling e Hegel à frente.

Isso não significa nenhuma profissão de fé ecleticista, de minha parte. Em Filosofia, como em Arte e em Literatura, tomei e tomo posição, é claro que sem exigir que os estudantes me sigam. Acredito, com Gusdorf, que

“a adição de duas teorias incompletas não é suficiente para oferecer uma teoria verdadeira”. (Georges Gusdorf, Mito y Metafísica, tradução argentina de Mythe et Métaphysique, por Nestor Moreno, Buenos Aires, Editorial Nova, 1960, p. 33.)

Assim, nesta Iniciação à Estética, por mais simplesmente expositiva e informativa que seja ela, estão mais ou menos definidas as posições do autor. Vou, mesmo, mais longe: se outras fossem as condições em que nos chegam os estudantes de Estética, eu nem me ocuparia em organizar este manual. Partiria para escrever, logo, um trabalho com o qual sonho há muito tempo, uma “Introdução Brasileira à Filosofia da Arte”. Mas para dar as aulas ligadas a esse trabalho, seria preciso contar com estudantes que já tivessem bons conhecimentos de Arte e de Literatura, assim como dos problemas iniciais da Estética, o que, como já disse, não é o caso das Universidades nordestinas.

Eu, se aceito verdades parciais, trazidas ao entendimento do mundo, da Beleza e da Arte, pelos pensadores mais diversos, é para incorporá-las ao patrimônio da Filosofia, cuja importância e cuja grandeza não me envergonho de afirmar, num tempo em que todo mundo — sociólogos, psicólogos etc. — parece envergonhar-se da Filosofia em nome da deificação da Ciência. O que, aliás, não parece ter mais muito sentido, quando alguns dos maiores cientistas do século XX proclamam a importância da intuição e do transracional para o conhecimento, sabendo, como sabem, que tanto as grandes criações da Arte e da Literatura, quanto as da Filosofia e da Ciência, partem de um núcleo só, a noite criadora da “vida pré-consciente do intelecto”, para usar uma expressão de Maritain. Assim, o conhecimento é um só, e a Filosofia também é uma só — e é por isso que acho que todos os que trabalham em seu campo têm de deixar de lado o orgulho. Temos de perder a mania de inovar a qualquer preço, de sistematicamente discordar dos pensadores que antecederam o nosso século somente pelo temor de nada dizer de novo. Se Aristóteles fixou bem as fronteiras do trágico, por exemplo, não vamos desprezar sua contribuição à verdade nesse campo, somente para dizer algo diferente do que ele disse — atitude que me parece muito frequente entre os filósofos, do século XIX para os dias de hoje.

***

É claro que isso não significa, nem que o pensamento se deva esclerosar em repetições, nem que sua tarefa esteja encerrada:

“Se existe uma Filosofia eterna, philosophia perennis” — diz um grande esteta contemporâneo — “ela não existe historicamente senão através de filosofias atuais; e isto porque as exigências permanentes do pensamento, se manifestam no interior de situações concretas que favorecem, mais ou menos, seu desenvolvimento.” (Henri Gouhier, “Situación Contemporonea del Mal”, em El Mal está entre nosotros, tradução espanhola de Le Mal est parmi nous, por Francisco Sabaté, Valencia, Fomento de Cultura Ediciones, 1959, p. 14.)

Com efeito, mesmo que a realidade não fosse inesgotável, bastaria a necessidade que tem cada geração — e mesmo cada um de nós — de resolver, por si só, cada problema, em nossa própria linguagem, para tornar o conhecimento aquilo que ele é por natureza — a tentativa, incessantemente renovada, de explicar o homem e o mundo. Talvez seja mais exato dizer, aliás, que o importante é tornar a linguagem comum em carne, e sangue, e ossos, para cada pessoa em particular; e esta é a tarefa que cada pensamento particular, cada geração, cada pessoa, têm de realizar, ao serem chamados a repensar o mundo. O próprio Gouhier, falando de historiador, diz algumas palavras que podem se aplicar a cada filósofo que, de cada vez, retoma e reaprende o terrível e luminoso caminho do conhecimento:

“Não lhe basta, já, escutar certas respostas… Ele não conclui, por isso, que essas respostas sejam falsas. Constata um fato: uma certa situação espiritual exige que a questão seja reexaminada completamente. Se velhas soluções são boas, encontrar-se-ão de novo necessariamente, mas numa linguagem que não parecerá nem morta nem estrangeira.” (Ob. cit., p. 19.)

***

Aceito, dessa maneira, este arcabouço ortodoxo, ortodoxamente filosófico, podemos incorporar a ele contribuições captadas ao desconhecido pelos pensamentos mais heterodoxos. Como já disse, sei que está mais ou menos fora de moda considerar valioso e firme o conhecimento filosófico. Mas não importa: a Filosofia continua a ser o que sempre foi, um realismo, uma vocação de realismo — assim como existe uma forma de conhecimento na Arte e na Poesia, mesmo em suas obras consideradas mais “gratuitas”, “mágicas” ou “idealistas”. A Verdade é, como a Beleza, fruto da captação intuitiva do mundo, reformulada, no caso da Verdade, pelo pensamento, o qual só tem uma fonte de aferição e retificação — o comércio fecundo e contínuo com a luz do real. Esta valorização do real está presente até mesmo no pensamento de filósofos acusados de idealismo por ideologias cientifistas e antifilosóficas. Um daqueles filósofos, opondo-se ao ponto de partida idealístico em Filosofia, afirma:

“O idealista, pelo fato mesmo de partir do pensamento para as coisas, não pode saber se aquilo que ele toma como ponto de partida corresponde, ou não, a um objeto. Quando perguntam ao realista como chegar ao objeto partindo do pensamento, o realista deve responder imediatamente que isso é impossível, e que, precisamente aí está a razão principal de não ser, ele mesmo, idealista. Porque o realismo parte do conhecimento, isto é, de um ato do entendimento que consiste essencialmente em captar um objeto.” (Etienne Gilson, El Realismo Metódico, tradução espanhola de Le Réalisme Méthodique, por Valentin Garcia Yebra, Madri, Ediciones Rialp, 1952, p. 150.)

O outro tipo de ataque desfechado contra a Filosofia assim como entendida aqui, parte não de “cientifistas” que distorcem a verdadeira Ciência, mas sim, contraditoriamente, de filósofos e pensadores ferozmente individualistas, do tipo hoje transitoriamente representado pelos existencialistas. Investindo, com razão, contra o racionalismo logicista e meio petrificado de Hegel — a quem, no entanto, o existencialismo deve tanto — terminam acusando a própria Filosofia de dogmatismo, de rigidez, e confundindo as filosofias sistemáticas com as orgânicas.

Na verdade, como ficou dito atrás, a Filosofia não se opõe a uma abertura, tanto mais largas são suas vistas quanto mais firmes suas bases. Centra-se no ser, o que significa que não deixa o homem de lado. Pelo contrário. Precisamente por isso, o homem tem reconhecido, na Filosofia, sua dignidade e sua primazia. O que ela tenta, é, nada mais, nada menos, do que resolver o problema do mundo para os homens, para cada homem em particular. E seria, de nossa parte, uma covardia muito grande abandoná-la, com o que ela tem de majestoso, de impotente e de desesperado também, de ardente, de vigoroso, de sólido, de amor pelo mundo, pela vida e pelo homem, abandoná-la somente por medo ou por um estéril espírito de novidade.

***

Por motivos semelhantes, adoto, agora já no campo propriamente estético — e, é claro, deixando, como disse antes, aos estudantes, inteira liberdade de pensamento — os primeiros princípios de uma Estética filosófica. Acredito que somente religando a Estética à Filosofia obtêm-se os fundamentos capazes de firmar o conhecimento ante as variações do gosto e a chamada “relatividade do juízo estético”. Deste fato, tratarei adiante com mais vagar. Mas não quero entrar propriamente no corpo desta Iniciação à Estética sem dizer que, consciente da modéstia de seus propósitos e de minhas próprias limitações no campo do pensamento puro, devo a visão geral seguida nele a muita gente. Alguns dos pensadores que me ajudaram a ver o mundo com meus olhos — coisa depois da qual nunca mais ele me pareceu frio e inerte — são astros sagrados de primeira grandeza na Filosofia de todos os tempos. Às vezes, tenho o atrevimento de discordar das suas ideias: para glosar as palavras de Malebranche em relação a Descartes, quando o faço é com o respeito e a grata consciência de que devo principalmente a eles a visão do mundo que me permite fazê-lo.

– Ariano Suassuna

2 comentários em “Ariano Suassuna – Iniciação à Estética [PDF]

  1. obrigado

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  2. Muito, muito obrigada por compartilhar esse material.

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