Jornal Lampião da Esquina: Leci Brandão e a MPE (Música Popular Entendida)

Entrevista publicada no Jornal Lampião da Esquina, nº 6, de novembro de 1978.

Digitalização pelo Grupo Dignidade.

Transcrição para o TraduAgindo por Andrey Santiago.

Foi utilizado o artigo de Caio Faiada para referências históricas sobre a contextualização da vida e obra de Leci Brandão, encontradas após a entrevista a seguir.

O termo “guei” utilizado na década de 70 foi modificado para a ortografia comumente utilizada hoje em dia, ou seja, será utilizado o termo “gay”.


A música popular entendida de Leci Brandão

“O sistema descobriu uma coisa: gay agora vende, dá bom lucro”

De três anos para cá, além de indiscutível substância artística, a compositora Leci Brandão ganhou também a fama de ser um dos porta-vozes musicais daquilo que ela mesma chama de “povo gay brasileiro”. No LP “Coisas do Meu Pessoal”, a música ligada ao tema era “Ombro Amigo”; no seguinte “Questão de Gosto” os homossexuais foram homenageados com “As Pessoas e Eles”. Em seu novo disco, a sair em breve, intitulado “Metades, é ainda mais clara, ao responder, na letra de “Chantagem”, aos que a criticaram por fazer músicas para Eles & Eles e Elas & Elas: “Pensar que vou me incomodar/ Só por dizer que vai contar / Por resolver que vai me estragar/ Eu sei de mim e sei de mais / Saiba que as coisas anormais / Estão presentes no seu modo de pensar”. Mas será que ela não se incomoda mesmo de falar e ser indagada, livremente, sobre um assunto ainda polêmico, participar de um debate tão novo enquanto discussão aberta? Mais: que tipo de elo é esse existente entre Brandão e as hostes gay: platônico, militante? Entrevista por José Fernando Bastos, Antônio Chrysóstomo e pelo fotógrafo Maurício Domingues, ela acabou por entregar tudo, sem meias palavras.

Nas duas páginas seguintes o leitor poderá sentir o peso da sinceridade dessa artista que não hesita em conversar abertamente sobre a sua tríplice — e nem sempre fácil — condição de mulher, negra e homossexual.

Chrysóstomo – Você foi a primeira mulher a integrar uma Ala dos Compositores de Escola de Samba, não é?

Leci – É. Em 1971 eu já tinha amizade com alguns compositores da Mangueira. O Zé Branco – como diz o nome, um cara branco, branquinho, pois em samba não há separação entre negro e branco –, que conhecia um pouco o meu trabalho, teve a ideia de me levar para lá. Fui com ele, tinha mais ou menos uns quarenta compositores reunidos, só homens. Levaram um susto, né?

José Fernando – Como primeira mulher no meio da macharia você chegou a sofrer alguma discriminação?

Leci – No princípio não foi um problema de discriminação, foi de surpresa. Porque eu, que não nasci nem fui criada no morro, querer me enturmar com eles, deu uma desconfiança, né? Aí o presidente da Ala, na época o José Brogogério, pediu que eu escrevesse uma carta, solicitando minha entrada oficial. Escrevi e disse que queria ir pra lá a fim de adquirir a cultura deles, saber o que era exatamente um partido-alto, um samba de roda, as estruturas melódicas, rimas e métricas.

Chrysóstomo – Você já compunha samba?

Leci – Samba do meu jeito, sem o conhecimento específico que só se adquire num reduto de cultura popular como a Mangueira.

Maurício – Demorou muito ser aceita?

Leci – Fizeram um teste, um período de adaptação de mais ou menos um ano. Já em 72 eu desfilava com a Escola, primeira mulher a entrar na Avenida no meio dos compositores, com o emblema da Mangueira bordado no bolsinho do terno da Ala. Primeira mulher a envergar o terno da Ala de Compositores.

Chrysóstomo – Quer dizer que a Mangueira só ajudou a sua afirmação pessoal?

Leci – Ajudou muito. Mas em 74, no concurso para a escolha do samba-enredo para o carnaval de 75 eu fui discriminada, por ser mulher e também por não ser do morro. Eu concorria em pé de igualdade com os homens, meu samba era dado como vencer, cantado por todo mundo. Chegou na hora, foi aquela história: “essa menina chegou ontem pra cá. Tá muito cedo, não vai ganhar”. Não ganhei mesmo.

Chrysóstomo – Já foram feitas acusações de que você teria se aproveitado da Ala de Compositores da Mangueira para se lançar no mercado.

Leci – As pessoas que falam isso não sabem de mim. Antes de ingressar na Ala eu já participava dos ensaios, era sócia efetiva da Escola. Desde menina frequento a Mangueira, embora não tenha sido criada no morro. Minha família é de lá, minha avó foi da Ala das Bainas, minha mãe foi pastora. Tem muita gente boa por aí – Evaldo Gouvei e Jair Amorim, Luís Ayrão, vários deles – que viraram sambeiros depois que o Zuzuca faturou trezentos milhões com “pega no Ganzê”. Antes disso, antes mesmo do Lacerca (N.R.: o ex-governador Carlos Lacerda) fazer arquibancada e fechar o desfile pro povo, eu já assistia escola de samba no carnaval. Ia pra lá, pra beirada da calçada, segurar corda e levar beijo de cavalo da PM, borrachada dos homens, pra ver a Mangueira.

Chrysóstomo – Mangueira à parte, quem foi que te deu força no inicio dos trabalhos?

Leci – o Sérgio Cabral foi a primeira pessoa que, em 72/73, fez força para gravar, produzir disco comigo. Então o seu Jorge Coutinho, quando fala por aí que eu sou mau-caráter porque não gravo disco produzido por ele, está redondamente enganado. Quando eu me apresentava nas Noitadas de Samba do Teatro Opinião, produzidas por ele, já que tinha um compromisso com o Sérgio Cabral. E quando tenho um compromisso com as pessoas costumo cumprir, mesmo que não esteja assinado. O Sérgio foi o meu primeiro produtor.

José Fernando – Mas você aceitou o rótulo de sambista para ser lançada. É ou não é?

Leci – (Indignada e incisva) Eu nunca usei a Mangueira pra me promover! Sou apenas fiel ao que a Escola me deu de bom.

Chrysóstomo – Vamos explicar essa coisa de ser ou não sambista de uma vez por todas?

Leci – Os aproveitadores, fazedores de Sambas-enredos pra ganhar dinheiro, esses tipos de que já falei, nunca foram de qualquer Ala dos Compositores de qualquer escola, grande ou pequena. Eu, quando comecei a compor, procurei logo a minha escola, a Mangueira, para aprender. Depois de “Pega no Ganzê”, depois que viram que samba-enredo faturava, eles começaram a confeccionar sambinha de refrão fácil, que cai bem no ouvido do povo e pode ser repetido nos bailes, nas ruas, fora do desfile. Isso empobreceu as Escolas. Quando se fazem mais sambas como “Chica da Silva”, “Monteiro Lobato”, “Casa e Senzala”? O negócio virou faturamente, entrou arrecadação, tutu grosso. Associação das Escolas de Samba no meio. Isso eu nunca fiz nem vou fazer. De outro lado, no meu primeiro disco você já encontra uma canção, na quarta-faixa, lado A, chamada “Pensando em Donga”, em homenagem ao Donga, mas que não tem nada a ver com a estrutura tradicional do samba. Tinha um arranjo incrível do maestro Ivan Paulo que o senhor Tinhorão taxou de “coisa modernosa”. Em compensação, escreveu também que a letra podia ser assinada, sem susto por Chico Buarque ou Aldir Blanc. Já viu a confusão do cara, né? Então eu já procurava me transformar, criar por mim mesma, mas sem negar as minhas origens mangueirenses. Não sou sambista (sambista é quem diz samba no pé, e eu não sou passista, tá entendido?). Sou compositora de música popular. E como compositora estou livre para fazer meus sambas, minhas canções, minhas letras líricas ou minhas reportagens sobre a realidade social, para criar o que quiser, sem rótulo de sambista nem bolereira.

José Fernando – Suas influências quais são?

Leci – Simples: Waldir Azevedo, Jacob de Bandolim, Carmen Costa, Jamelão, Ademilde Fonseca, Alaide Costa e Bienvenido Granda, aquele cubano bigodudo de quem meu pai, que era da Marinha, trouxe um disco pra casa, numa de suas viagens internacionais.

Chrysóstomo – Num LP você gravou “Ombro Amigo, em outro “As Pessoas e Eles”, suas músicas dedicadas ao povo gay, seus problemas, etc… Falar de homossexual vende jornal e discos, populariza artistas. Com você, o que aconteceu?

Leci – Eu não sei se vende ou populariza. No momento em que fiz essas músicas o registro era todo de sensibilidade, pureza, honestidade. As pessoas do meio em que eu vivo atualmente, pessoas gays, me dizem muita coisa, para mim são pessoas importantíssimas. Compus pensando nesses amigos.

Chrysóstomo – Deu certo, não foi?

Leci – Minha gravadora morreu de medo do disco ser aberto, primeira faixa, lado A, com “Ombro Amigo”. Alegram que tinha de abrir com um samba. No fundo tinham mesmo era medo da música, abertamente dedicada ao povo gay. Só que aconteceu exatamente o contrário: ninguém pixou, proibiu. Lancei o disco numa festança no Café Concerto Rival, cheio de gente da Mangueira, baianas tradicionais ao lado de travestis, pessoal do morro confraternizando com homossexuais da zona sul do Rio. Então, como deu certo, todo mundo diz “a Leci apelou”.

Maurício – A arte não é uma coisa etérea, sem sexo?

Chrysóstomo – Cruzes! Demorou, mas a arte etérea baixou no LAMPIÃO!

(Os companheiros da entrevista e dos entrevistadores promoveram grande alarido em torno de sexto e arte etérea. Leci mantém a compostura de entrevistada)

Leci – Eu não pensei, “não porque agora eu vou atingir as bichas”. Foi uma coisa de amor, numa noite em que eu fiquei numa boate até o final e sai dali deprimida e no dia seguinte pintaram a letra e a música na minha cabeça.

Chrysóstomo – O seu relacionamento com o homossexual, entendido, povo gay, como se queira chamar, é platônico ou participante?

Leci – Platônico e participante.

Chrysóstomo – Em que sentido.

Leci – Quer ver? o fato de eu ser homossexual é uma coisa que não me incomoda, não me apavora, porque eu não devo nada a ninguém. As coisas todas que eu fiz foi com muito sacrifício, tudo que eu consegui veio através de uma batalha de muito tempo. Tenho dignidade, nunca fui venal, nunca paguei a ninguém para tocar os meus discos nas rádios. Esse é o meu lado participante. Se sou peito aberto com os outros porque não vou ser consigo mesma? E platônica eu sou, porque desde o momento em que conheci o lado gay, conheci pessoas maravilhosas, que me amam como eu sou, não por causa da fama, essas bobagens. A gente conversa, a gente é franco um com o outro, não precisa estar deturpando ou armando jogadas, nada disso. É por isso que eu transo o meu povo homossexual.

Chrysóstomo – Sem problemas?

Leci – A gente já é marginalizado, de cara, pela sociedade. Então a gente se une, se junta, dá às mãos. E um ama o outro, sem medo nem preconceito. É um negócio maravilhoso, que eu estou sentindo de cabeça, realmente. É o mais produtivo mergulho que eu já dei em mim mesma e na vida!

(A plateia queda, estuporada, por segundos. Há finalmente, um rumor de frases, de perguntas atravessadas no ar.)

José Fernando – Você aceitaria algum título desses que tem por aí, de Rainha do Povo Gay, por exemplo?

Não, eu não aceitaria esse título e vou explicar porque Rainha de Gay já passa a ser um coisa badalativa, uma coisa turística, vista de fora pra dentro. Aí eu já estaria usando o meu lado gay para me promover e não estou a fim disso. Eu trabalho, componho, vou às rádios, tudo isso, profissionalmente. Vou a tudo quanto é show de travesti. Amo travesti, mas sempre num respeito por mim mesma e pelos outros, muito grande, extremos. Minha transação com meus iguais é de pessoa pra pessoa. É até engraçado. Como é que eu ia reinar sobre os meus semelhantes?

José Fernando – Mas você comparece a festas gays públicas, em sua homenagem…

Leci – Quando tem muita badalação às vezes eu evito ir. Eu quero que as pessoas enxerguem esse meu lado homossexual como uma coisa séria, que haja respeito. Tanto que dentro da boate Gaivota, no dia 7 de setembro do ano passado, quando houve homenagem lá pelo lançamento do meu disco “Coisas do Meu Pessoal’’, cheguei no microfone e disse “Toma cuidado com os forasteiro, minha gente!’’ Porque nós temos de ter cuidado com os “curiosos” entre aspas, porque eles estão sabendo que a questão homossexual vende revista, disco, jornal. O sistema descobriu que gay lá dá lucro. Todo mundo vai ler, compra; todo mundo quer descobrir endereço de boate entendida. Depois essas pessoas chegam na boates, pegam o homossexual, que está lá as vezes encucadíssimo, num fim de caso, usam e abusam da figura. Transa, entrevista, etc… e depois cai fora. Mas cai fora porque a cuca do “curioso” não está preparada para um lance daqueles, de verdade verdadeira. É por isso que um monte de gente por aí está fu e mal paga: porque se meteu com a pessoa errada, com um desses turistas do homossexualismo.

José Fernando – É, gente. Agora estou entendendo porque a Leci Brandão foi tão votada no concurso Gay do Ano do “Correio de Copacabana”. A Glorinha Pereira lançou o tal concurso, que recebeu, em três meses, um total de quase sete mil votos. E Leci ficou na quarta colocação, com uns oitocentos votos, acima de cantoras que estão na batalha a muito mais tempo, como Gal Costa, Maria Bethania. Ganhou até da Simone, novo ídolo gay da praça.

Chrysóstomo – Quem lançou as candidaturas? Foi voto direto?

José Fernando – Foi voto direto. Ninguém apresentou candidatura de ninguém. Cada leitor ou eleitor votou em quem quis. Teve gente que não entendeu a ideia de Personalidade Gay e votou em Fernanda Montenegro, Tonia Carrero, por aí.

Chrysóstomo – Se foi voto direto sou a favor. Cada um tem a eleição que merece.

(Leci ri e também se declara a favor de eleições diretas)

Maurício – Quem foram os outros eleitos?

José Fernando – Em primeiro lugar o Toni Ferreira, seguido na ordem de votação por Ney Latorraca, Ney Matogrosso e Leci Brandão. E quinto ficou o João Paulo Adour.

Chrysóstomo – Ué. Ney Latorraca e João Paulo Adour são personalidades gays? Pensei que eram atores de novelas da Globo.

José Fernando – O que me surpreendeu mesmo foi a primeira colocação de Toni Ferreira e a quarta de Leci. Os dois, vamos usar a palavrinha chata, são assumidos. Então nesse jogo de esconde-esconde da maioria dos artistas, era pra eles não serem nem lembrados.

Chrysóstomo – Surprese! A verdade rende voto! Isso contraria todas as regras do jogo. Você é uma uma espécie de porta-goz gay; aceita esse papel?

Leci – Porque não? Desde que se encare o gay como uma pessoa, um estilo de vida tão digno e sério como outro qualquer, posso ser porta-voz da situação do meu pessoal. Mas olha lá. Nada de gay tratando ou agindo como coisa jocosa, que não se dá ao respeito. Aquele estilo do aaaiii, cheguei! Só serve a quem é contra nós, de forma declarada ou disfarçada.

José Fernando – Qual seria o comportamento certo?

Leci – O negócio é bem diferente. Por exemplo, jornalistas de nome se unem e fazem um jornal como o LAMPIÃO, a que se pode dar crédito. Artistas se unem e fazem um espetáculo gay, de consistência. De minha parte faço minha música e meu canto. Quero continuar cantando livremente todas as minhas preferências, inclusive as sexuais. Sempre falando e cantando de uma forma nova, bonita. A gente pode falar de cama e sexo de uma forma limpa e criativa, pois o sexo também pode ser limpo e criativo. Uma coisa de classe.

Chrysóstomo – Classe? Igual ao IBOPE., Classe A, B, C?

Leci – Acontece, por exemplo, que eu tenho minha mãe, Leci Conceição Brandão, uma mulher que nasceu em 1922, tem um padrão de vida completamente diferente, tem outra cabeça, mas é uma pessoa que eu respeito – não tenho pai há muitos anos -, e sei que ela não aceita certas coisas. Como ela merece respeito penso duas vezes antes de tomar qualquer atitude. Classe é isso. Fazer as coisas sem violentar os outros.

Chrysóstomo – Apesar de já levar certa vantagem, por ser famosa, você é negra, homossexual e mulher. Todos nós sabemos que negro, homossexual e mulher são algumas das espécies mais discriminadas. Você não tem medo de se expor, de enfrentar a barra dos preconceitos?

Leci – Peraí. Você falou como?

Chrysóstomo – Você não tem medo das pessoas te olharem diferente porque é negra, mulher e homossexual declarada?

Leci – Eu teria medo dos outros se não fosse nada disso e estivesse fazendo um trabalho supérfluo, alguma coisa simulada, se estivesse mentindo para vender disco. Mas como eu estou fazendo dessas três condições, acho que fica tudo bem. Assumo minha cor e minha condição feminina porque nasci assim e nunca usei isso como argumento, como “me ajuda que sou preta, mulher e fraca”; para pedir favor aos outros. Que nada! Por ser preta e mulher é que trabalho muito, desde pequena. Agora assumo também a minha condição de gostar de outra mulher. Isso pintou na minha vida, porque tinha que pintar. Ninguém obrigou, induziu, nada disso. Como eu estou fazendo tudo de verdade, de cabeça, não tenho medo do preconceito das pessoas. Quando alguém tem consciência do que faz só tem a ganhar. Quando você acredita em você – e sabe porque está acreditando – não existe motivo para medo nenhum.

Maurício – Você não acha que a imprensa também é culpada por isso, pelo preconceito contra os homossexuais? (Início de tumulto. Leci responde, alhei ao barulho dos litigantes)

Leci – Não sei não. Pode ser que a imprensa tenha uma parte pequena de responsabilidade.

Maurício – Pequena como, com essa mania de turistizar o sapatão e a bicha?

Leci – A mania não é só da imprensa, não é?

Chrysóstomo – Como jornalista gostaria de esclarecer que uma parte da imprensa, a imprensa machista, tem responsabilidade sobre esse problema sim. Mas me admiro você Maurício, repórter fotográfico, colocar o problema de jeito tão simplista. Virou moda, moda perigosa, alienante, culpar a imprensa por tudo o que acontece. Não foi a imprensa que inventou a bicha nem o sapatão. Tudo vai depender do jornalista ou do veículo que publicar a matéria.

Leci – É muito isso. Mas o preconceito existe.

Chrysóstomo – O machão que redige uma nota mal escrita, toda deformada, sobre uma bicha assassinada por um michê, apenas reflete o problema da formação. Ele já tinha o preconceito é mais antigo. Presumivelmente existe desde a Idade da Pedra Lascada, quando o homem matava o mais fraco, quem sabe o afrescalhado da época, porque o cara representava uma ameaça à procriação, à ocupação física do mundo animal mais forte, o homem primitivo. O problema mesmo é a preservação da espécie. Tá na cuca de todo mundo, da bicha mais doida. Só quero ver agora, com o bebê de proveta como e que vai ficar.

Maurício – Bebê de proveta não vem ao caso.

José Fernando – Por falar em bebê de proveta, o Nelson Ned disse no programa Flávio Calvacante que o artista, para fazer sucesso no Brasil, tem de ser esquerdista, homossexual ou toxicômano. O que você acha disso? (Todo mundo ri)

Leci – (Cara de espanto, olho arregalado) Eu nunca conversei com Nelson Ned. Que coisa! Será que ele disse mesmo isso!

José Fernando – Disse, disse! Foi na TV. Eu vi. E tem mais: acho que se ele afirmou uma coisa dessas é porque muita gente pensa assim. O anãozinho foi a voz da chamada maioria silenciosa.

Chrysóstomo – A mesma maioria que o Nixon dizia que falava por ele nos Estados Unidos?

Leci – Eu acho que as pessoas atacam gente conhecida porque elas têm um recalque incrível, uma frustração de não serem elas que estão no palco, na televisão, escrevendo, assinando coluna, essas coisas.

José Fernando – Vai ver você tem razão. Já pensou o Nelson Ned de travesti? Ou escrevendo panfletos contra o governo ou doido de fumo por aí?

Leci – (Engasga de rir. Desengasga e continua) É realmente um absurdo. Eu, por exemplo, nunca usei tóxico para coisa alguma, muito menos para compor ou cantar. Tomo umas biritas de vez em quando, um conhaquezinho para clarear a voz. Agora não tenho nada com a vida dos outros. Se o Nelson Ned queima fumo é problema dele e não meu. Ah, não vou falar sério sobre isso não. Só sei que artista, jornalista, esse pessoal todo, trabalham muito. Nós mesmos estamos aqui, ás dez da noite, fazendo entrevista, trabalhando.

José Fernando – Ah, outra coisa. O que você acha dessa história de artista bicha posando para reportagem da revista “Amiga” com noiva emprestada de lado?

Leci – É um problema de insegurança. A pessoa que se garante não vai se preocupar de mostrar noiva, noivo, sei lá o que.

José Fernando – Você posaria com um noivo arranjado para capa de uma revista?

Leci – Claro que não, porque seria ridículo. Depois eu não ia ter nem coragem de me olhar no espalho.

Maurício – Isso não é porque você vende bem sendo como é?

Leci – E no princípio, quando não vendia nada, quando comecei? Teria arrumado um noivo para dar entrevista do lado, não é?

Maurício – Mas você é uma pessoa forte.

Leci – É o que eu estou dizendo! Ninguém precisa tapar o sol com a peneira pra fazer sucesso. Esses rapazes, essas bichas que nós conhecemos tão bem, dentro do meio, fazem papel ridículo por insegurança. Fala-se muito nos atores da Globo que fingem machismo para conquistar as fãs. Mas o Toni Ferreira, por exemplo, que conheço bem, já posou para alguma capa de revista com namoradinha do lado? Não, porque ele se preza, tem respeito por ele mesmo.

Chrysóstomo – Esse pessoal não seria vitima do tal Sistema de que tanto se fala?

Leci – Espera aí, ô Chrysóstomo. Esse negócio de imagem, de consumo, não dá, sabe? Eu falei isso pro senhor Roberto Livi (N.R. – Atual empresário e produtor dos discos e da imagem de Sidney Magal), dentro da sala dele, na Phonogram. Ele quis se meter no meu disco do ano passado, dizendo que não tinha entendido esse negócio de “Ombro Amigo”. “Vamos ao Teatro”, não tinha entendido nada, né? Ele era coordenador da Polydor e me disse com aquele sotaque, “Mas yo quero que usted venda 400 mil discos!” Eu disse: “Bicho, mas eu não estou preocupada em vender quatrocentos mil discos. Você é argentino, um cara que não tem competência para discutir sobre o meu trabalho. Prefiro vender três mil, mas três mil honestos, dando o meu recado”.

Chrysóstomo – Quanto você vende afinal?

Leci – Cada LP meu chega às 20 mil cópias, por aí. Quero assim, que as vendas aumentem gradativamente, ou que venda pouco, mas só à medida que as pessoas forem conhecendo e aceitando o meu trabalho como ele realmente é. Nada de imagem mentirosa, noivo do lado, bugigangas e poses para enganar o público. Se tem artista que gosta de emperequetar, melhor para ele. Eu não faço essa linha. Eu acho que seria muito ruim para mim, Leci Brandão da Silva, mulata brasileira, chegada a um samba, a um bolero, a uma verdade muito minha, vender uma quantidade enorme de discos. Já pensou? Gravar uma musiquinha qualquer, o público comprar só porque é comercial e amanhã, depois de ter alcançado o primeiro lugar nas paradas, ninguém mais se lembrar do meu nome, do meu trabalho? A qualidade, pra mim, é mais importante do que quantidade.

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