Entrevista com a jornalista françesa, Josie Fanon, viúva de Frantz Fanon por Christian Filostrat.
Entrevista publicada no livro “The Last Day of Frantz Fanon“.
Originalmente disponível no site Frantz Fanon Speaks.
Tradução por Gustavo F. Costa e Silva.
Após seis anos de atividades revolucionárias em África, Frantz Fanon chegou a Nova York no início de outubro de 1961, sofrendo de um caso avançado de leucemia. Internado no Hospital Naval de Bethesda, faleceu no dia 6 de dezembro. Ele tinha 36 anos.
Nascido na Martinica em 1925, Fanon foi um produto do sistema colonial francês. Em 1944, ele se juntou às Forças Francesas Livres para ajudar a proteger a “verdadeira França” contra os marinheiros franceses racistas estacionados na Martinica durante a guerra – aqueles “marinheiros que o forçaram a se defender e assim descobrir [sua] cor”.
A experiência no exército aguçou sua consciência de mundo onde a segregação e o racismo eram a regra. Sua experiência e um espírito agudo e sensível fizeram dele um dos mais lúcidos observadores das realidades inerentes ao colonialismo.
Até a Revolução Argelina, Fanon aderiu aos princípios da Negritude defendidos por Aimé Césaire, seu professor de liceu. Pele Negra, máscaras brancas é um testemunho no qual Fanon reconhece a negritude ainda que do ponto de vista de sua criação colonial francesa e da adaptação de Césaire sobre o lugar dos afrodescendentes no Império Francês.
Seus esforços intransigentes em nome da Revolução Argelina encurtaram sua vida, ao mesmo tempo em que lhe deram uma visão incomparável e uma admiração pelas libertações e lutas nacionais encontradas em sua escrita. Hoje, falamos de um legado de Fanon.
A esposa de Fanon, Josie, veio para os Estados Unidos e visitou o autor na Howard University. Nesta curta entrevista, ela dá um vislumbre da vida e dos pontos de vista de seu marido, autor de Os condenados da terra.
A entrevista de Mme Josie Fanon ocorreu em 16 de novembro de 1978 no Centro Afro-Americano da Howard University. Josie Fanon cometeu suicídio em El Biar, Argel, dez anos depois. Nascida Marie-Joseph Dublé em Lyon, França, ela tinha 58 anos.
CF: Quais são os motivos da sua visita aos Estados Unidos esse ano?
J. Fanon: Voltei esse ano a convite do Comitê Especial das Nações Unidas Contra o Apartheid, que está organizando ao longo do ano uma série de homenagens e comemorações aos revolucionários negros, notadamente Paul Roberson, Nelson Mandela do A.N.C., Presidente Nkrumah etc. É nesse contexto que o comitê decidiu homenagear Frantz e me convidou.
CF: Como você se sente sobre essa segunda viagem aos Estados Unidos?
J. Fanon: De um ponto de vista pessoal, estou um pouco abalada por estar de volta aos Estados Unidos, porque é onde meu marido morreu. Também estou interessada em observar os movimentos pelos Direitos Civis dos Negros nos Estados Unidos, examinar as novas perspectivas e discutir quais são as esperanças.
CF: Você esteve nos Estados Unidos anteriormente, em 1961. Quando exatamente em 1961 você esteve aqui e quais foram os motivos dessa viagem?
J. Fanon: Eu vim para os Estados Unidos em novembro de 1961 porque meu marido estava hospitalizado no N.I.H Bethesda Hospital. O Governo Provisório da Argélia (APG) o enviou aqui para cuidados médicos. Um ano antes, enquanto representava o governo provisório em Gana, os médicos o diagnosticaram com leucemia. Eles primeiro o enviaram a Moscou para tratamento, mas a doença piorou; e o APG, com a ajuda do governo tunisiano, pediu ajuda aos americanos.
Na época, eles acreditavam que as melhores instalações médicas estavam nos Estados Unidos. Foi nessas circunstâncias que ele veio para os Estados Unidos.
No entanto, você deve observar que ele não veio aqui por conta própria. Na verdade, ele não era a favor dessa solução. Como negro, militante e combatente revolucionário anti-imperialista, não se sentia confortável em ir para os Estados Unidos. Mas, na verdade, ele não tinha escolha. Ele estava muito doente – ele estava de fato morrendo.
CF: Você estava me dizendo quando passamos pelo portão do campus, que seu filho, Olivier, havia passado algum tempo na Howard University em 1961. Você poderia falar mais sobre isso?
J. Fanon: Meu filho era um bebê na época e por eu precisar cuidar do meu marido – eu estava aqui há mais de um mês – eu visitava Frantz todos os dias e passava muitas noites no hospital com ele. Durante esse tempo, matriculamos nosso filho pequeno no jardim de infância da Howard University.
CF: Qual é a sua ocupação hoje?
J. Fanon: Há algum tempo sou jornalista profissional. Trabalhei desde 1962 — ano da Independência da Argélia — até o ano passado [1977] para a imprensa argelina. Também trabalhei com a Frente de Libertação Nacional da Argélia na seção de informação. Desde 1977, trabalho para uma revista pan-africana, Demain L’afrique (África Amanhã), publicada mensalmente em Paris. Essa é a razão pela qual eu moro em Paris hoje.
CF: Como você conheceu Frantz Fanon?
J. Fanon: Eu o conheci em Lyon (no sudeste da França). Nós dois éramos estudantes. Ele estava na faculdade de Medicina; eu na de Artes Liberais. Nos conhecemos em um teatro. Ele tinha 23 anos; eu tinha 18.
CF: Falando de Lyon, você poderia refazer para nós o curso da vida de Fanon?
J. Fanon: Quando conheci Frantz, ele já estava na França há cerca de quatro anos. Entenda que ele era da Martinica; nascido em uma colônia francesa, havia assimilado todos os valores culturais da França. Esta patologia é comum ao povo das Antilhas de língua francesa. Ainda hoje, essas colônias são os territórios onde o colonialismo francês foi mais enfatizado, mais pérfido e mais nocivo.
Na primeira fase da vida de Frantz, ainda muito jovem, ingressou nas Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra Mundial. Isso significou que, por um tempo, ele se identificou com a França. No entanto, quando foi para a França e enfrentou o racismo da sociedade francesa, começou a compreender e analisar suas experiências pessoais e de seus conterrâneos. O resultado dessa análise está em Pele negra, máscaras brancas, publicado em 1952. Ele tinha 25 anos na época.
Durante esse tempo, ele também era estudante de medicina, com especialização em psiquiatria. Ao terminar seus estudos, queria voltar para as Antilhas ou para a África para procurar trabalho. Por motivos administrativos, não conseguiu emprego em Martinica, Guadalupe ou Senegal; então escolheu a Argélia, que ainda estava na África. Isso foi em 1953, um ano antes do início da luta armada revolucionária argelina. Ele já havia feito contato com nacionalistas argelinos; de modo que quando a Revolução começou, já estava integrado no movimento revolucionário. Não há nada de surpreendente aqui. Muitos se perguntam por que Fanon foi para a Argélia ou que relação poderia ter havido entre um homem da Martinica e a Argélia. A resposta é simples: existe uma fraternidade fundamental entre todos os povos colonizados e entre os povos colonizados pela mesma potência estrangeira. A Revolução Argelina não era estranha a Fanon.
Em 1957, o governo francês nos expulsou da Argélia. Fomos à Tunísia, onde a Frente de Libertação Nacional manteve a sua vertente externa e onde mais tarde criaram o Governo Provisório da Revolução Argelina.
Fanon trabalhou na FNL e no Governo Provisório. Ele também estava interessado na divulgação de notícias. Em 1960, eles o nomearam embaixador do Governo Provisório em Acra.
Podemos refazer o itinerário de Fanon. Desde sua condição de indivíduo sob o domínio francês até sua consciência de homem negro através de sua experiência em uma sociedade colonial – até um nível superior e sua adesão à causa mais ampla da Revolução da Argélia e ainda outro nível, a Revolução Africana em geral.
Mesmo antes de ser embaixador em Acra, Fanon havia participado de várias conferências dos povos africanos, incluindo a primeira realizada em 1958. Durante a conferência, ele fez contatos com outros líderes africanos da época, notadamente Patrice Lumumba, Felix Moumié de Camarões e o presidente Kwame Nkrumah. O campo de sua experiência e atuação se ampliou e resultou na redação de Os condenados da terra.
CF: Você sabe quais eram os planos de Fanon após a publicação de Os condenados da terra?
J. Fanon: É sempre difícil dizer o que um indivíduo como Fanon teria feito se não tivesse morrido quando morreu. Em sua vida, duas coisas trocavam constantemente. Ele certamente teria mantido suas atividades políticas. No entanto, não posso dizer com certeza onde. Sem dúvida, ele teria ficado na Argélia – pelo menos por um tempo. Tanto porque lutou por sua independência e também porque a Argélia era um país muito querido para ele. Isso, em verdade, é o que eu tenho feito. Outro fator importante eram seus interesses científicos. Ele era psiquiatra e nunca havia abandonado suas pesquisas nessa ou em outras áreas médicas. Sempre exerceu a medicina, mesmo quando envolvido na política e na escrita.
CF: Ele não era o que você chamaria de um revolucionário profissional na época.
J. Fanon: Isso mesmo, ele não era um revolucionário profissional. Era um homem muito aberto à realidade. Na verdade, tudo o que ele escreveu foi baseado em suas experiências pessoais e não em teorias abstratas.
CF: No contexto da história africana recente, como você julgaria a obra de Fanon desde sua morte?
J. Fanon: Tudo o que aconteceu na África desde a independência em 1960-62 demonstra a precisão dos pontos de vista de Fanon. Os povos oprimidos e colonizados não podem libertar-se senão através da luta armada. Foi o caso das colônias portuguesas e o caso do que se passa agora na África do Sul. Como pode haver uma solução negociada para o governo da maioria lá? Os conflitos dos últimos anos no Zimbábue, África do Sul e Namíbia demonstram isso. Fingir que os negros podem alcançar a regra da maioria por meio de uma solução negociada é uma ilusão e um truque. Os africanos daquela parte do continente terão que travar uma luta armada muito longa e prolongada. Além disso, não acredito que possam ter sucesso sem a solidariedade do povo negro americano.
CF: Voltando ao local de nascimento de Fanon – as Antilhas de língua francesa. Qual é a situação colonial lá?
J. Fanon: Quando Fanon deixou a Martinica, as condições não eram tão claramente definidas como são hoje. Ele nunca deixou de pensar na Martinica. Acho que ele estaria mais preocupado hoje, porque por baixo de seu status departamental, Martinica, Guadalupe e Guiana são apenas colônias francesas com outro nome. Acredito que ele colocaria toda sua energia a serviço de seu país (Martinica) e da região do Caribe em geral.
CF: Poderia dizer algumas palavras sobre a relação de Fanon com os poetas da Negritude, Aimé Césaire e Leon Damas?
J. Fanon: Fanon foi aluno de Césaire na Martinica. Para ele, Césaire, Damas e outros como eles foram muito importantes em sua evolução intelectual no que diz respeito à consciência de sua própria negritude. Ele admirava muito Césaire e Damas. No entanto, já havia entendido que, politicamente, Césaire poderia ter feito muito mais pela independência da Martinica. A independência é condição sine qua non da liberdade política. Mesmo que o neocolonialismo esteja ativo em um país, é preferível ao colonialismo e à dependência total. A libertação nacional é um primeiro passo; sem ela, muito pouco pode ser feito. Sem independência, a construção da nação não pode começar.
CF: Quando Os condenados da terra foi publicado, Jean Paul Sartre o prefaciou. Nas edições posteriores, o prefácio de Sartre foi removido. Por que?
J. Fanon: Foi por minha iniciativa que o prefácio de Sartre para Os condenados da terra foi removido. Digamos que, do ponto de vista ocidental, é um bom prefácio. Sartre entendeu o assunto em Os condenados da terra.
Mas em junho de 1967, quando Israel declarou guerra aos países árabes, houve um grande movimento pró-sionista a favor de Israel entre os intelectuais ocidentais (franceses). Sartre participou desse movimento. Ele assinou petições a favor de Israel. Senti que suas atitudes pró-sionistas eram incompatíveis com a obra de Fanon.
Qualquer que tenha sido a contribuição de Sartre no passado, o fato de ele não entender o problema palestino reverteu suas posições políticas anteriores.
CF: Muito já foi escrito sobre Fanon. Se você acompanhou o que foi escrito, qual é a sua reação?
J. Fanon: Na verdade, vários intelectuais ocidentais escreveram sobre Fanon. Na minha opinião, eles não entenderam completamente suas obras. Ainda há muito mais a ser escrito. Acho, porém, que é na África e aqui nos Estados Unidos, na comunidade afro-americana, que trabalhos válidos sobre Fanon serão realizados.
CF: O que você acha das traduções para o inglês das obras de Fanon?
J. Fanon: Eu não acho – e pessoas experientes me disseram – que Os Condenados da Terra seja perfeito; existem algumas lacunas e erros de tradução. Em geral, o texto em inglês não reproduz a amplitude, o dinamismo ou o fluxo do original em francês.
CF: Alguns críticos dizem que há uma contradição fundamental entre as obras de Fanon, o que ele representava e o fato de ele ter se casado com uma francesa branca. Como você responde a esses críticos?
J. Fanon: É minha opinião, e creio que também foi dele — caso contrário não teria contraído nem permanecido neste casamento inter-racial — que não houve contradição. Em suas obras, ele afirma claramente que é por meio de um processo revolucionário que podemos entender e resolver os problemas raciais. Caso contrário, nos encontraremos em situações sem saída que são impossíveis de resolver – do tipo que nunca podemos resolver. Por exemplo, os críticos podem reprovar um americano negro por se casar com uma mulher árabe porque a pele dela é mais clara que a dele e assim por diante.
Em uma certa fase da luta, tal posição pode ter por um tempo um efeito unificador positivo e benéfico. No entanto, continua sendo uma limitação. Não vamos nos limitar à cor um dos outros! Caso contrário, onde está a revolução?
Podemos traçar um paralelo entre tais problemas pessoais e o conceito de Negritude, que Fanon analisou. Em sua opinião – e isso se provou mais tarde – a Negritude era apenas uma etapa no processo dialético da luta do homem negro pela libertação.