Entrevista com Octavio Brandão

Entrevista com Octavio Brandão[1]

Trecho da terceira parte de uma série de três entrevistas com Octavio Brandão, antigo dirigente do PCB, conduzidas por Maria Cecília Velasco e Cruz e Renato Lessa entre 15/01/1977 e 10/02/1977.

Transcrição por Ian Cartaxo.


3ª Entrevista: 10.02.1977. Influência da Internacional na fundação do PC; reorganização dos sindicatos; órgãos do PC; trabalho junto aos camponeses; vereador em 1946; organização interna do PC; interferência da Internacional na linha do partido; atividades nos sindicatos; diferenças entre anarquismo e comunismo; o PC e as leis trabalhistas; proposta de frente cínica entre o PC e os anarquistas; tentativa de ligações com a Coluna Prestes; adesão ao comunismo; II Congresso do Partido; política reformista burguesa nos anos 20; sistema eleitoral na República Velha; criação e atuação do BOC; atuação como vereador; Revolução de 1930; reunião em Buenos Aires; legislação eleitoral.

R.L: Otávio, o trabalho do partido era feito principalmente em termos de sindicatos, ou vocês faziam trabalho diretamente nas fábricas?

O.B: Bom, eu não era operário, então chamava esses operários na hora do almoço e íamos conversar com os operários ali na calçada. Nesse tempo era boia-fria. Eles comiam o almoço deles na calçada. Trazia a boia de casa. Não havia restaurante, nada. Então íamos conversar na hora do almoço com eles. Quando surgia mais um grupinho, aí íamos fazer comício às quatro da tarde.

R.L: Vocês arrebanharam esses operários para fazer comício?

O.B: É. E também, depois com o Bloco Operário e Camponês, aí eram… mulheres, simples mulheres do povo, como Maria Lopes e a mulher de Joaquim Nepomuceno, a Isaura Nepomuceno. Simples mulheres do povo, mulheres de operários. Preparávamos os discursos, e elas liam os discursos diante dos operários. A princípio os operários ficaram desconfiados: “São as amantes deles, eles trazem para cá.” [riso]. Mas depois elas se impuseram, então era aquele assombro para os operários. E Laura, o retrato dela, virou a cabeça de muitos operários completamente virgem politicamente. Ela falava e virava a cabeça.

R.L:  Então vocês procuraram canalizar esses operários para os sindicatos?

O.B:  Para os sindicatos.

R.L:  Para o partido diretamente?

O.B: Não. Quando eles pediam para aderir ao partido, alegavam: “Eu sou analfabeto ou sou um católico, protestante…” Eu dizia: “Lá dentro você vai compreender tudo isso, poder aderir.” Com os intelectuais não; éramos mais exigentes. Falava-se: “Você é católico. Mas que intelectual você é? Você não leu a Bíblia, você não estudou os livros de Marx, Engels e Lenin, como é que continua católico?” Aí era mais a exigência. E mesmo os intelectuais não queriam aderir de nenhuma forma. Falei com meio mundo, fui procurar meio mundo. Não queriam… Essa coisa de perder o emprego, andar procurando emprego e não encontrar. Depois prisão, ameaça de prisão sempre, quatro anos de estado de sítio. Ninguém queria.

M.C: E internamente no partido, como é que era organizada essa ação? Tinha o comitê de propaganda, como é que era?

O.B: Tinha a CCE, Comissão Central e Executiva, nós chamávamos CCE.

[FINAL DA FITA 4 – A]

O.B: (…) Comissão Central Executiva, e várias comissões: havia o tesoureiro, havia a agitação e propaganda, havia o trabalho sindical e o encarregado respectivo dessas tarefas dentro da CCE. E a CCE, mesmo com estado de sítio, sempre se reunia aqui, ali e acolá. Às vezes lá em casa, quando a Polícia não sabia, na rua do Curvelo 11. Era um casebre ameaçando cair, e, às vezes, a CCE se reuniu lá. Outras vezes na rua General Pedra, perto da Central do Brasil. Sempre nos reuníamos em todo o estado de sítio. E dirigíamos as lutas, traçávamos tarefas, tudo isso.

M.C: Então voltando: além da CCE, quais eram os outros órgãos específicos ou sub-órgãos do partido?

O.B: Bom, havia as futuras células, que, a princípio, eram organizações… Esqueci o nome, futuras… transformadas depois em células de partido aqui, ali e acolá. E nós procurávamos criar células de empresa e não células de bairro.

 R.L: Vocês não faziam trabalho de bairro?

O.B: Não. Pelo seguinte: aquilo não tinha nenhuma coesão. A pessoa se mudava da moradia e pronto: abandonava a célula. Ao passo que com a célula de empresa ficavam sempre ali, naquela empresa…

R.L: Cada fábrica uma célula?

O.B: Isso, exercendo influência naquela empresa. Até ao ponto que houve coisas que hoje seriam impossíveis. Um dos órgãos do governo era o jornal O País, órgão… jornal reacionário desgraçado, de tradição reacionária. E apoiava o governo 100%. Pois um dia os operários do jornal foram à direção e pediram para que o jornal A Classe Operária, que era um jornal de trabalhador, oficialmente fosse editado nas oficinas maravilhosas do País. E a direção olhou, sondou e consentiu. De modo que essa coisa quase impossível, o jornal do Partido Comunista…

R.L: Era o jornal oficial do partido?

O.B: Não era oficial, mas era oficioso, era de fato. Jornal revolucionário pelo seu conteúdo. A forma muito mansa, mas pelo seu conteúdo, jornal revolucionário. Editado nas oficinas do jornal mais reacionário do Brasil, talvez. [riso]. Porque a direção compreendeu que aqueles operários fariam greve, iria dar embrulhada, e era hora da luta armada de Bernardes. Em 1925! Uma coisa hoje impossível, publicar um simples artigo quanto mais editar um jornal. Depois ele foi fechado, mas quando foi fechado já tinha feito grande parte do trabalho.

M.C: Esses operários eram ligados ao Sindicato dos Gráficos ou não?

O.B: Eram militantes da União dos Trabalhadores Gráficos e eram membros do partido. Entre eles, por exemplo: João da Ladeia, brasileiro, jovem, muito boa pessoa. João da Ladeia e outros. Coisas que nós conseguimos e que hoje seriam impossíveis.

R.L: Otávio, então tem essas células…

O.B: Esqueci como é que se chamavam, mas na revista Movimento Comunista talvez venha o nome.

R.L: (…) e essas células eram submetidas a quê?

O.B: Bem, havia o comitê regional do Rio de Janeiro. Submetidas diretamente ao comitê regional. Como o comitê regional de São Paulo, de Pernambuco, vários comitês… e subordinados à CCE. E a CCE sempre intervinha aqui, ali e acolá. Naquele tempo não havia o culto à personalidade, felizmente. Os operários tratavam os intelectuais de igual para igual e diziam as coisas. Diziam: “Eu não estou de acordo com a opinião do camarada fulano e tal. Estudou mais do que eu, mas não estou de acordo por isso e aquilo.” E nós prestávamos muita atenção às opiniões dos operários. Porque, primeiro, o operário tinha um instinto de classe. Quando não tinha consciência de classe, tinham, pelo mesmo, o instinto de classe e, depois eles viviam diretamente… não abandonavam a produção… diretamente ligados à produção. Então ouvíamos com muita atenção.

M.C: Como é que você definiria esse instinto de classe?

O.B: Pelo seguinte: um operário, pelas suas condições de vida, e sobretudo de trabalho, queira ou não queira, já tem instinto de classe. Quando nós chegamos com o marxismo, ele compreende rapidamente, sem dúvida, e aceita rapidamente…

R.L: Então como é que você explica, por exemplo, que aqueles políticos, como você falou, demagógicos, como Maurício de Lacerda, tivesse mais penetração…?

O.B: Influência na classe operária. É verdade, mas no Engenho de Dentro havia uma camada de pequeno-burgueses, funcionários, que era a grande base dele. E essa camada arrastava os operários, depois… antes não havia Partido Comunista, e pronto… Os operários tinham instinto de classe, mas não basta, é preciso a consciência de… A nossa luta era transformar esse instinto em consciência de classe e transformar os líderes sindicais operários em militantes políticos, em dirigentes políticos. Era uma batalha tremenda. O operário tem o instinto de classe, mas não basta. Porque pelas condições de vida, eles… Lenin já falou a respeito. Parece que é no O que fazer, 1900 e pouco. Eles só atingem a luta sindical, não atingem a luta política. Então é preciso que a doutrina venha de fora, levada por intelectuais, por pequeno-burgueses ligados diretamente à classe operária. E não é por acaso, por exemplo, que países como a Alemanha, como a Inglaterra, como os Estados Unidos, o proletário se deixou levar pelos seus inimigos de classe. Até hoje na Inglaterra, não é por acaso. E muitos desses dirigentes trabalhistas da Inglaterra são ex-operários corrompidos pela burguesia, que deu tiro, deu dinheiro, deu, inclusive, títulos aristocráticos. Então não basta o instinto de classe. E daí a nossa luta para transformar o instinto de classe em consciência de classe. Agora eles, naquela vida, só têm o braço para vender, não tem mais nada, não tem propriedades, não tem nada. Eles só têm a perder as cadeias, então rapidamente eles procuram apreender o marxismo e, rapidamente, vão lutar por aquilo; ao passo que o intelectual fica numa discussão cheia de dúvidas, uma coisa pavorosa! E às vezes dura anos e anos. Eu digo: “Mas, fulano, eu discuti com você, você pendeu para a esquerda; e agora eu volto e você pendeu para direita. Não é possível.” E era assim, aquele ziguezague desgraçado!

R.L: Agora, Otávio, como é que a gente pode explicar por que o partido não conseguiu, historicamente, transformar o instinto de classe em consciência de classe e, por outro lado, como é que a gente explica, mesmo o partido tentando essa transformação, a predominância de intelectuais dentro do partido?

O.B: Não digo predominância, pode-se dizer influência. Porque os intelectuais liam os livros de Lenin em francês e explicavam aos operários. E os operários… muitos deles eram analfabetos.

Depois, na história do partido há duas etapas. Uma etapa até 30. Veio a revolução soviética imediata, e os operários foram abandonando o partido, não queriam nenhuma revolução soviética. Porque eles sabiam, de antemão, que aquilo era impossível. E depois de 30 veio o culto à personalidade, e acabou-se. “Fulano disse…” Acabou-se.

R.L: Prestismo, é o que você diz?

O.B: Prestismo, o culto à personalidade até o delírio. Até gravar moedas, com efigie de Prestes. Eu digo: “Mas isso lembra Luís XIV, Luís XV, os imperadores romanos.”

M.C: Quem gravava…?

O.B: O partido mandou gravar, fazer finança, moedas assim, a efigie de Prestes.

R.L: Então, quando você fala no seu livro, quer dizer, o partido como o portador da consciência de classe, você se refere à fase…?

O.B: Até 30, até 29, 30. Porque veio a revolução soviética imediata, e a pequena burguesia, prestistas aderiram em massa. Em 45, então, turbilhão em massas. Os prestistas sabiam: “Prestes vai ser o primeiro-ministro, Prestes vai ser o ministro da Guerra, não sei o que…”

R.L: Ministro da Guerra?

O.B: É. “Ministro da Guerra, primeiro-ministro, vai ser o dono do Brasil.” Em 45. E aderiu em massa a pequena burguesia. Ao passo que os operários se encolheram. No nosso tempo não, o operário sabia: adere ao partido, daí a pouco está na cadeia, leva surra, leva socos, leva bolos. Houve caso de quarenta bolos. Nós recomendávamos: “Não adianta brigar na Polícia. Nossa briga é cá fora, na Polícia você está sozinho, é surrado e não tem quem defenda.” Mas havia camaradas que eram… queriam dar prova de coragem. A Polícia dava dez bolos, então eles diziam: “Vocês são uns bandidos, vocês são uns infames, vamos lá para a rua que eu vou dar uma surra em cada um de vocês.” E aí levava mais de bolos. E no final tomava quarenta bolos e ficava algumas semanas até a mão desinchar, e aí soltavam. O crime deles: vender o jornal A Classe Operária. Isso foi no tempo de Washington Luís, foi no tempo de Getúlio Vargas.

De modo que os que eram operários iam às portas das fábricas aos bairros operários conversar com as mulheres dos operários. Nós falávamos assim: “A senhora dá licença…” aos sábados e domingos. Ela falava: “Faz favor.” E nós: “Nós somos trabalhadores e viemos conversar com a senhora.” E começávamos a contar coisas que ela pudesse compreender. Naquele meio tempo ela dizia: “Os senhores querem um cafezinho?” E nós: “Oh, minha senhora, para nós é uma honra tomar o cafezinho da senhora.” [riso]. Aí, então, tudo mudava, com o cafezinho. Eu já sabia que tínhamos dobrado o cabo das Tormentas, que era o cabo da Boa Esperança, quando a dona da casa, operária, mulher de operário, oferecia cafezinho. Aí começávamos: Luta… O que é o Estado? O Estado é isso, assim, assim…” “Como é que se sabe?” E nós: “Qualquer greve, logo a Polícia, tropas do Exército intervêm para dar surra, prender os operários. Máquina do Estado. O que é o imperialismo? Por que o Brasil é um país semicolonial? O que quer dizer isso? O que são os monopólios? O que é o capital financeiro? O que é exportação do…” tudo isso em linguagem elementar, as coisas mais simples. Anos e anos, quatro anos de estado de sítio, grupo de quatro, cinco – as visitas às casas dos operários, como na Gávea. Outras vezes, quando fui vereador, íamos com o meu amigo Joaquim Nepomuceno, ferroviário. Andávamos léguas nesses subúrbios, fazendo visitas a famílias de ferroviários. Dia de sábado, dia de domingo. Ele conhecia, era ferroviário. E assim; explicando, explicando… Então precisava ter força de vontade, nervos de aço e vontade de ferro.

M.C: Essa ideia de instinto de classe, você com isso quer dizer que o operário tinha uma noção ou uma sensação de que ele era explorado, por exemplo?

O.B: Elementar. Porque ele só tem o braço para vender, não tem mais nada, não possui mais nada. Trabalha em grandes empresas, trabalha no meio de máquinas, entende? Toda uma série de características e uma vida especial, que não tem o intelectual entre quatro paredes, artesão, individualista até ali, sempre confuso, chega a última coisa… E, quando, às vezes, me perguntavam: “Você já leu Wilhelm Reich?” Eu digo: “Agora eu li, mas antes não tinha lido.” Quando cheguei da Europa me perguntavam: “Você leu Freud?” Eu digo: “Não, eu estudei Lenin e não Freud.” Me perguntavam: “Você estudou aquele russo que escreveu Uma volta ao feudalismo?” É fácil ver o nome dele. [riso]. Volta, queriam que eu voltasse ao feudalismo. Um russo. Eu digo: “Não! Não li não. Eu li Marx, Engels, Lenin.” “Pois vá ler.” Fui à Biblioteca Nacional para ler. Bergson, etc. O intelectual se agarra à última moda. É um dos erros terríveis do intelectual. Última moda – ele vai ler e fica discípulo. Em outro dia, uma discussão tremenda por causa de um livro de Wilhelm Reich. Devolvi. Falei mais de uma hora e disse: “Isso é uma porcaria por isso, isso.” Ele não ficou muito convencido, é natural. Todos intelectuais são assim. Ficam vacilando a vida toda. Vacilando entre o proletariado e a burguesia, vacilando entre o materialismo e o idealismo filosófico, vacilando entre a ciência e a mística. Ao passo que o operário não. Aquelas condições de vida e trabalho impõem uma mentalidade especial. Quando chega ao marxismo, é a sopa no mel.

M.C: Mas se é sopa no mel, por que foi tão difícil transformar esse instinto de classe em consciência de classe?

O.B: Oh! Isso é um processo lento. Precisa cultura, e eles não tinham nem sequer o á-bê-cê. Muitas vezes iam aprender o á-bê-cê dentro do partido. E para ser marxista, é preciso cultura. Às vezes dizem: “Não estou de acordo com suas ideias.” Eu digo: “Quem disse que o senhor poderia estar de acordo? Para adotar as minhas ideias, seria preciso estudar como eu estudei. O senhor não estudou. Como pode adotar as minhas ideias?!” Quando o sujeito, no fim das conversas, vinha me dizer isso, fico zangado e vou dizendo grosserias. Ou então eu dizia: “Quem é que lhe meteu isso na cabeça? Eu sei que não foi o proletariado, não foi o Marx.” E, às vezes, o sujeito no fim diz: “O senhor não me convenceu.” E eu dizia: “E quem lhe disse que eu queria convencê-lo? O senhor está enganado. Nós vamos vencê-lo e não o convencer, que é muito diferente. Vencê-lo pelas armas, entendeu? Proletariado armado.” [riso]. O sujeito ficava danado e ia-se embora.

E houve um caso…

R.L: Com quem você falou isso?

O.B: Pequenos, médios e grandes burgueses.

R.L: Grandes burgueses também?

O.B: Sim, às vezes.

M.C: Você só dizia grosseria para os burgueses?

O.B: Sim. É claro! No fim eles diziam: “O senhor não me convenceu.” Assim, arrogante. E eu: “E quem lhe disse que eu queria convencê-lo? Nós vamos vencê-lo.” E ele: “Como vencê-lo?” E eu: “Sim, com o proletariado armado, assim, assim… aliados aos camponeses, aliados às massas da pequena burguesia urbana. É uma massa invencível: proletariado, camponeses, pequena burguesia urbana. Ninguém poderá vencer esta gente.”

Mas às vezes há coisas cômicas. Encontrei um paulista na Livraria José Olímpio. E o paulista começou a cantar um hino a São Paulo. Que São Paulo é uma locomotiva, vinte vagões vazios… São Paulo produz isso e aquilo. O Brasil não produz nada, não sei o quê, e uma porção de coisas. Então, quando ele acabou, eu rebati: “Mas São Paulo tem favelas, tudo isso foi arranjado por São Paulo, arruinando, empobrecendo todo o Brasil, desgraçando o Brasil, valorização do café, milhões, milhões e bilhões de contos, e o Brasil sustentando essa porcaria dessa valorização em proveito de São Paulo, dos grandes fazendeiros, dos exportadores de café, dos comerciantes de café. São Paulo… São Paulo roubando, saqueando todo o Brasil.” O sujeito foi se zangando comigo e no fim botou o dedo perto do meu nariz e disse: “O senhor sabe com quem está falando?” Eu digo: “Não, o senhor não se apresentou.” Ele disse: “O senhor está falando com um paulista de quatrocentos anos.” Eu olhei, sorri e disse: “Mas que bobagem, paulista de quatrocentos anos… E o senhor sabe com quem está falando? O senhor está falando com caeté de dez mil anos.” [riso]. O sujeito foi-se embora, não quis mais conversa comigo. De fato, os índios há dez mil anos estavam no Brasil – os caetés em Alagoas. O sujeito foi-se embora. Pois bem, às vezes, as coisas eram trágicas e cômicas… Caeté de dez mil anos.

M.C: Otávio, só uma pergunta: nesse período já havia alguma, vamos dizer assim, ação organizada por parte da Igreja no sentido de criar sindicatos católicos?

O.B: Não. A Igreja era reacionária até a medula. A Igreja auxiliou a reação em Alagoas contra mim. Depois, vendo o perigo, a gente penetrando aqui, ali e acolá, ela foi se organizando. Agora talvez em Minas, em algum estado desses, talvez a Igreja tenha feito alguma tentativa. Mas em geral não. Só depois, quando havia perigo.

M.C: Não havia nenhuma tentativa de criar não propriamente sindicatos, mas algo ligado ao cooperativismo?

O.B: Apostolados da Oração. Essas coisas é que havia, viu? Centro da propaganda da Igreja, aquela cota, aquilo tudo por parte, uma máquina. Todo o país cheio desses Apostolados da Oração. Confraria de São Vicente de Paula, essas coisas meramente religiosas.

M.C: E a ideologia cooperativista da Igreja?

O.B: Da Igreja? Não me lembro de nenhuma cooperativa. Só me lembro do Sarandi Raposo em 23.

R.L: Mas não tinha nada a ver com a Igreja?

O.B: Nada, nada.

R.L: Você falou, então, que existiam células, existia o comitê regional e acima dos comitês regionais, a CCE. Como é que era feita, por exemplo, a escolha do comitê regional? Eles eram indicados pelo comitê central ou eram eleitos pela base?

O.B: Eram eleitos pela base. Havia o centralismo democrático. Não só a gente ouvia os intelectuais; ouvia os operários com muita atenção. Às vezes tinha de atendê-los contra a própria vontade, mas eles eram eleitos pela base. Havia o centralismo democrático. Daí a fora do partido naqueles anos: no meio de quatro anos de estado de sítio, desenvolver-se nas priores condições nacionais e internacionais. Porque uma das razões era esta: eles não podiam ler nem em português, quanto mais em francês ou espanhol.

M.C: A base que você está chamando são os operários organizados em células?

O.B: Em células, é a base. Era a base do partido…

R.L: Essas células eram organizadas por fábricas ou por sindicatos?

O.B: Não tinha nada a ver com sindicato. Eram duas coisas: cada operário era membro da célula da sua fábrica respectiva e, ao mesmo tempo, era membro do sindicato.

R.L: Quer dizer que ele atuava em dois lugares: na célula e no sindicato.

O.B: Todo um ambiente que a gente cercava o operário. Cada operário que nos procurava era tratado com uma consideração, como se fosse, assim, o presidente da República. [riso]. Eles se sentiam… E depois havia uma coisa impressionante: havia muito negro naquela época e eles eram tratados de… Ficavam assombrados como eram tratados por nós. Havia aquela fraternidade com os negros, aquilo tudo. Consideração e fraternidade. Então eles se sentiam orgulhosos, assim, no meio de intelectuais e tratados daquela forma. Isso ajudava muito à consciência, ao desenvolvimento do instinto de classe em consciência de classe. Mas, também, coitados, quando eram presos, [riso] eles apanhavam por serem comunistas e apanhavam por serem negros. Apanhavam duas vezes. Era uma desgraça. Apanhavam por ser negro no período de Bernardes, de Washington Luís, de Getúlio Vargas, quer dizer, o sujeito apanhar por ser negro! Diziam: “Isto é um negro sem vergonha… Seu negro… É comunista? Comunismo é chicote. A Princesa Isabel foi a desgraça do Brasil. Acabou com isso; era chicote, entrava na cadeia com chicote.” Ao passo que no nosso meio era assim… Havia, por exemplo, uma reunião, nós encontrávamos um desses militantes do partido ou mulheres, íamos abraçá-los e tudo isso. Causava aquela impressão. Comentavam: “Fulano, dirigente do partido, está abraçando aquele simples operário lá na base.” Isso causava…

M.C: Havia muitos militantes negros?

O.B: Muitos negros. E muitos amigos íntimos, comunistas, eram negros. Como Joaquim Nepomuceno, como o… Bem, só vendo, depois os nomes deles aqui.

R.L: Quer dizer, vocês estavam mais preocupados em criar uma vanguarda operária?

O.B: Operária. Uma das nossas falhas… Nós não podíamos compreender toda a teoria leninista sobre os camponeses. Então não demos aos camponeses a devida atenção. Uma das grandes falhas do partido. Mas fizemos este esforço; meter Lenin na cabeça de simples operários.

R.L: Vocês não desenvolveram nenhuma tentativa nessa época com relação aos camponeses?

O.B: Bem, alguns documentos meus.

R.L: Mas em termos do trabalho político?

O.B: Houve o seguinte… Eu me esqueci; Laura é que sabia. Aí no estado do Rio, numa zona, ela sempre ia bater lá – levava não sei quantas horas de viagem –, falar com aqueles camponeses. E houve em Sertãozinho, Ribeirão Preto, naquela zona toda, um camarada, Teotônio de Souza Lima. Uma maravilha. Era um fogueteiro, fabricava foguetes. O homem era [de] uma dedicação extraordinária. Ele leu, por acaso, o jornal A Classe Operária, em 25, e aderiu ao partido. Então ele, fogueteiro, tinha um sindicato em Sertãozinho, estado de São Paulo e organizou esta coisa extraordinária: marcha de verdadeiros camponeses, colonos das fazendas de café, em direção à cidade de Sertãozinho para fraternizar com os operários. Uma coisa extraordinária.

A outra coisa foi em Juiz de Fora. Reuni um grupo de operários e fomos aos arredores de Juiz de Fora, uma zona de fazenda de café. Penetramos lá. Fizemos comícios dentro da fazenda de café, e aqueles colonos assinaram um abaixo-assinado ao ministro da Justiça, protestando contra o fechamento do nosso jornal A Classe Operária. Em 1925. Mas essas tentativas tiveram a falha de não serem sistemáticas, metódicas, planificadas. Apenas em Sertãozinho.

M.C: E em Campos, no estado do Rio?

O.B: Bem, Campos… Aí não são camponeses, são operários agrícolas das usinas. Penetramos nas usinas, viu? Eu mesmo penetrei e levei os amigos, os companheiros de Campos, José Marcílio e outros. Fomos lá dentro das usinas. Mas eles eram trabalhadores urbanos, não fizeram trabalho no meio dos camponeses. Uma subestimação da importância do camponês. De modo que foi um trabalho não sistemático, não metódico.

R.L: E o partido, inclusive, não tinha um programa para os camponeses?

O.B: Não tinha. Até hoje não tem programa agrário. E não é fácil, que para isto eu propus, ficou no papel. Levei dez anos propondo mandar jornalistas aos estabelecimentos agrícolas. Não iriam fazer propaganda nenhuma. Iriam apenas estudar as condições de vida e trabalho. O que é o seringal? Ele responderia. O que é a zona da castanha do Pará? O que é a zona do babaçu? O que é a zona da cana-de-açúcar? Os sertões do Nordeste, as fazendas de cacau, as fazendas de café de São Paulo, de Minas e do Paraná. O que é a estância do Rio Grande do Sul? O que são as fazendas de gado de Mato Grosso? Daria o quadro das condições de vida e trabalho. Publicaria esses materiais no jornal do partido, Imprensa Popular. Travaríamos a discussão sobre a base desses materiais e prepararíamos o programa agrário. Levei dez anos pregando isso inutilmente.

M.C: Isso em que época?

O.B: De 46 a 56. Dez anos assim. Porque eu sou teimoso, cabeçudo, insistindo, insistindo.

R.L: E o partido sempre combatendo isso, refutando?

O.B: Não, indiferente.

R.L: Você, quando foi vereador em 46, defendia esses princípios de que você está falando?

O.B: Vários, vários deles defendi. Eu não defendi mais porque fui proibido de fazer discursos.

R.L: Como é que você situaria a diferença da sua atuação como vereador em 29 com sua atuação em 46?

O.B: Um abismo. Em 29 eu tinha plena liberdade do partido. Carlos Lacerda disse ao Dulles e o Dulles publicou – todos os meus materiais eram lidos porque estavam sob controle do partido. Primeiro, o partido controlava antes de eu ler – mentira. Nunca o partido leu um só dos meus discursos! Eu fiz por conta própria. Escrevia para poder…

M.C: Isso em 29?

R.L: Em 29.

O.B: (…) escrevi para poder melhorar o estilo, a forma, tudo isso, concentrar os dados. Mas nunca o partido controlou um único dos meus discursos. Mentira de Carlos Lacerda [riso]. Mas esse era sem-vergonha… Pois bem…

R.L: Em 46…

O.B: Em 46 fui proibido de falar. Não podia fazer nenhum, nenhum discurso. Todos os discursos que fiz em 46, fiz violando a disciplina.

R.L: Você tinha que submeter os discursos…

O.B: Não podia! Não, não submetia nada.

R.L: Você não podia falar?

O.B: Nada! Só para votar e bater palma. Cansei de dizer: “Eu não me presto para votar e bater palma.” Minha tarefa… Eu fui eleito pelos operários. Não houve…

R.L: Mas todos os 18 vereadores do partido?

O.B: Não. Havia a direção que controlava. E a ordem era essa.

R.L: Quais eram os vereadores que podiam falar?

O.B: A totalidade dos outros.

R.L: Menos você?

O.B: Menos eu. Eu digo: “Eu não presto para isso.” Cansei…

R.L: E por que essa discriminação com você?

O.B: Era desde o primeiro momento que cheguei. Eu notei logo a discriminação. Há um artigo meu que se intitula “A política de quadros” – publicado na Imprensa Popular, quando o partido abriu discussão em 56 – em que eu denuncio tudo isso, mostrando o absurdo disso. Não queriam que eu fizesse nenhum, nenhum discurso.

M.C: E como é que surgiu a sua candidatura?

O.B: Contra a vontade deles. Porque aquela massa toda, que tinha votado em mim em 28, estava garantida. Mas a direção do partido achava que só os velhos operários é que iriam votar em mim. Foi um escândalo quando…

R.L: Quem era: o Arruda, Prestes?

O.B: Todos, todos, toda a direção. Não escapava ninguém.

M.C: Mas de que forma, como é que eles acabaram permitindo que você se candidatasse?

O.B: Contra a vontade. A pressão das massas. Perguntavam: “Por que Otávio não é candidato?” Primeiro, Prestes disse que ele ia ser candidato a senador, mas depois tramaram e escolheram João Amazonas. Depois para vereador. A massa fez pressão. Todo mundo perguntava; “por que ele não é candidato?” Contra a vontade. E foi uma surpresa desagradável para a direção, quando eu vim em terceiro lugar numa chapa majoritária. Foi um escândalo! Porque achavam que só aquela gente antiga é que ia votar em mim.

M.C: E nessa época o Arruda era muito importante?

O.B: Oh! Parecia um capataz de fazenda de café. Gritava com todo mundo. Dava gritos assim. Eu cheguei de lá…, mas trabalhei sob a direção de verdadeiros gigantes da história como Dimitrov. Dimitrov é hoje considerado um gigante da história universal. O homem que trava uma batalha no tribunal nazista de Leipzig e ganha a batalha sozinho. Nem os outros, dois búlgaros… Pois bem, trabalhei sob a direção de gigantes da história, e eles sempre me trataram de igual para igual. Cheguei aqui, vi aquilo! Arruda dando gritos. Parecia um capataz de fazenda de café. Pro diabo!

M.C: E como é que o Arruda conseguia se manter assim na…?

O.B: Isso é uma história… para não ser gravada.

R.L: Você não quer gravar essa história?

O.B: Não. Isso dá em briga.

R.L: Dá em briga?

O.B: Dá em briga. E depois eles aproveitaram para me expulsar como traidor. Por denunciar um segredo do partido.

M.C: Mas isso aí as pessoas já escrevem.

R.L: Por exemplo o Basbaum chega a falar.

O.B: Basbaum escreveu em parte, mas ele pactuou com tudo isso, e eu não pactuei. Vivi brigando.

R.L: O Basbaum pactuou com isso?

O.B: Pactuou!

R.L: O grupo baiano?

O.B: Sim, pactuou! No fim é que veio a sabedoria. Ele recebeu a ordem: “Vá lá à reunião do comitê de repatriação de Laura Brandão e proponha a liquidação do comitê e da propaganda toda.” E ele foi e propôs, prestou-se a isso. Eu não me presto, nunca me prestei a essas coisas. Brigava e dizia: “Eu não vou.” Quando Ademar de Barros foi visitar a Imprensa Popular, meio mundo correu, e falaram: “Vamos tirar fotografia ao lado de Ademar, vamos também.” Eu disse: “Eu não vou, não sei quem é Ademar de Barros.” E digo: “O que eu sei, não recomendo.” E não fui.

R.L: Você falou na Imprensa Popular. Você conheceu Aydeho Couto?

O.B: Demais. Não era nada.

M.C: Ele não era uma pessoa importante?

O.B: Era importante pelo cargo, mas não estudou nada, não sabia nada. Desses jornalistas pequeno-burgueses.

Pois eu digo: “Eu não vou.” Quantas vezes na hora do expurgo de Stalin – uma coisa terrível, quatro anos –, e eu na Internacional sustentando: “Não há nenhuma condição para nenhuma insurreição armada no Brasil.” Poderia ter sido liquidado. E sustentei, em 35, até o último momento sustentei.

R.L: Você estava informado que ia eclodir o movimento aqui?

O.B: Sabia. Via, por exemplo, os apelos do secretário do partido no jornal A Classe Operária, apelos à revolução, apelos à insurreição, às armas, tudo isso. Eu digo: “Isso é uma provocação.” Sustentei. Podia ter sido liquidado na hora do expurgo e queriam me liquidar naquela hora. Brasileiros infames. Um dia contarei tudo isso. Iriam aproveitar o expurgo de Stalin para me liquidar.

R.L: Já que você não quer contar essa história para a gente…

O.B: É, isso depois.

M.C: Depois você conta a história do Arruda, porque essa história é difícil de a gente entender.

R.L: Com o gravador desligado você conta.

O.B: No correr de uma semana o sujeira passa…Você não é ninguém e passa a ser o dono do partido. É uma história desesperadora. Houve gente que se suicidou, não aguentou. Eu aguentei.

R.L: Eu queria saber, voltando então para 22, como é que começa a se consolidar a organização interna do partido, como é que ele começa a constituir células…

O.B: Bem, ele vai penetrando nos sindicatos, reorganizando os sindicatos, conquistando bons militantes sindicais. Ele vai penetrando nas fábricas, nos bairros operários, na Gávea. Nas Laranjeiras tinha uma fábrica de tecidos importante naquele tempo – foi liquidada. Lá no Engenho de Dentro, no cais do porto, entre os marinheiros e remadores. Penetrando aqui, ali e acolá. E criando camaradas que aderiram ao partido, sabendo que não iam ser vereadores nem deputados, sabendo que iam pegar cadeia, que levariam surras na cadeia. Então, aquela dedicação total e absoluta. Trabalhavam de dia. De quatro horas da tarde até de manhã, iam trabalhar para o partido, ou então até meia-noite. Uma dedicação total. E ficavam firmes até o fim, até a morte. Os que morreram ficaram firmes até a morte. Porque nós não íamos enganar: “Vote em nós, apoie e você será vereador, deputado.” Nada disso; é cadeia, é cadeia, fome e desemprego.

M.C: Otávio, nessa época, havia dentro do partido, alguma dissidência, alguma oposição a esse tipo de trabalho?

O.B: Não. Só em 28, mais ou menos, o Joaquim Barbosa.

R.L: Até 28 não houve nenhuma briga…?

O.B: Nada, nada. Havia, assim, discussões, incompreensões, mais nada.

R.L: E até essa época nunca houve prática de expurgo dentro do partido?

O.B: Não, não. Houve uma vez: o secretário da Federação dos Trabalhadores. Porque ele roubou e foi expulso. Coisas assim.

R.L: Mas expurgo ideológico?

O.B: Nenhum expurgo ideológico. Isso não houve.

R.L: Isso só em 30?

O.B: Só expurgo… Joaquim Barbosa. Mas eles desertaram, eram 48 que desertaram. Eles mesmos desertaram. Mandaram abaixo-assinado dizendo: “Desde esse momento consideramo-nos desligados do Partido Comunista.” Foram eles que desertaram. Expurgo em 30 com o estado soviete. Era um ambiente muito… muita luta, coragem, bravura…

M.C: E, nessa época, Otávio, o Partido era muito ligado a órgãos comunistas internacionais ou ele…?

O.B: Recebíamos materiais da Internacional Comunista.

M.C: Mas não havia uma interferência muito grande em termos de linha?

O.B: Não, isso começou em 30.

R.L: Em 30?

O.B: Em 30. Interferência começou em 30, quando a Internacional criou o Bureau Sul-Americano em Buenos Aires.

R.L: Que tipo de material era?

O.B: Bom, eram documentos da Internacional Comunista. Artigos diversos sobre a situação internacional, discussões a respeito do problema colonial, e havia a revista La Correspondance Internationale de Paris, em francês. Uma pena ela ter desaparecido. Era uma revista oficiosa da Internacional, oficialmente não era nada, não tinha nada, nada, mas ela conseguiu uma coisa excepcional, porque os comunistas de cada país escreviam sobre seu país. Um mês, dois meses depois, a gente sabia. Tal acontecimento na Índia ou na China, na Indochina. Ho Chi Minh. Li muito artigo de Ho Chi Minh. Naquele tempo ele assinava Nguyên Ao Quoc. E, assim, eu aprendi muitas coisas sobre a Indochina aqui no Rio de Janeiro. Então, árabes escreviam sobre os países árabes, e franceses, ingleses, alemães. Era uma revista maravilhosa. Nunca vi uma revista tão importante assim. Não era, por exemplo, um russo que escrevesse sobre a China ou sobre a Índia. Eram chineses sobre China, hindus sobre a Índia e assim por diante.

M.C: Eu só não consigo entender uma coisa: se nesse período não havia praticamente nenhuma, vamos dizer assim, oposição ideológica dentro do partido no Brasil e ele definia uma linha de ação mais ou menos independente – uma linha de ação que tinha surgido de uma discussão interna de vocês, brasileiros, em relação ao Brasil – como que, de repente, em 30, quando a Internacional começa a ditar uma política diferente, há uma mudança tão abruta? Quer dizer… se havia tanta coesão antes…

R.L: O que houve com essa coesão?

O.B: Bem, em 29 houve uma reunião em Niterói, e Leôncio Basbaum não conta a história direito. O Basbaum tornou-se o crítico esquerdista entre aspas, e o partido começou a escorregar para a esquerda entre aspas. Bom, a Internacional viu que o prestismo ia tomando conta do partido. Então, achou que isto era oportunismo de direita e resolveu combater o prestismo como inimigo principal. E toda aquela luta que nós travamos antes contra o imperialismo, tudo isso foi considerado como oportunismo de direita. Eu fui condenado como oportunista de direita na luta contra o imperialismo, na luta contra tudo isso.

R.L: Quer dizer, oportunismo de direita era basicamente a tática do Bloco Operário e Camponês?

O.B: É. De modo que a direção do partido foi liquidada em cinco minutos por ordem do Bureau Sul-Americano.

R.L: Isso foi em 29 ou 30?

O.B: Em 30. Começou o esquerdismo entre aspas em 29. A direção do partido foi liquidada em cinco minutos numa reunião em Niterói. O Bloco Operário e Camponês, organização de massas, foi liquidado, e o partido ficou sem direção, sem nada. Então, os aventureiros foram penetrando no partido. Já não era mais o verdadeiro partido, e muitos operários abandonaram o partido. José Cazzine disse: “Não estou de acordo com os sovietes.” Foi embora. Era militante, operário e metalúrgico, muito devotado.

R.L: E que explicação o partido deu às suas bases, quando liquidou o Bloco Operário?

O.B: Não deu nenhuma explicação; explicação era a revolução imediata. Era um documento da Internacional Comunista e do Bureau Sul-Americano. Eu aguentei 16 discursos me condenando porque fui um obstáculo à vitória da revolução soviética imediata no Brasil. O próprio Dulles diz lá, e é verdade, que eu tive que fazer a autocrítica dos erros reais e dos erros imaginários. [riso].

R.L: Essa reunião dos partidos comunistas em Buenos Aires foi a que você sofreu esses 16 discursos?

O.B: Dezesseis discursos, atacando, atacando…

R.L: Nessa mesma reunião, não houve um problema com Mariátegui, peruano?

O.B: Não sei.

R.L: Parece que as teses dele foram condenadas também.

O.B: Sei que a linha do partido foi condenada como oportunista de direita. Meu livro Agrarismo e industrialismo foi condenado, e eu acusado de ter impedido a vitória da revolução soviética imediata.

M.C: Mas na virada de estratégia do partido, não houve nenhuma oposição por parte das células, dos comitês regionais, o partido e outras áreas?

O.B: (…) estava esfacelado.

R.L e M.C: Por quê?

O.B: A Aliança Liberal foi arrastando elementos de toda parte: prestistas, pequeno-burgueses, intelectuais, meio mundo. Eu tentei resistir na conferência de Buenos Aires. E, por isto, o fogo todo foi concentrado contra mim. Aguentar 16 discursos…, mas quando eu olhei, eu estava sozinho. Astrojildo capitulou em cinco minutos.

R.L: Quer dizer, antes da Internacional mandar as ordens, o partido já estava esfacelado?

O.B: É.

R.L: Quer dizer que o esquerdismo começou antes das ordens da Internacional?

O.B: Começou em 29. E Leôncio é um dos responsáveis.

R.L: Quer dizer que não foi a partir da Internacional? Veio de dentro do partido?

O.B: O esquerdismo. Mas aquilo tudo muito confuso. Agora, em 30, vi: eram documentos especiais me atacando e condenando toda aquela linha. Achava que o Bloco Operário e Camponês era um outro partido comunista, que havia um perigo extraordinário de transformar-se em partido comunista. Liquidaram o verdadeiro Partido Comunista.

M.C: E quem representava ou quem sustentava essa linha esquerdista dentro do partido?

O.B: Leôncio Basbaum, antes; depois veio o Fernando Lacerda, meteu-se a teórico, uma desgraça.

R.L: Que depois atacou o Leôncio Basbaum?

O.B: É. Depois brigaram os dois… Está lá no livro, Uma coisa vergonhosa o que Fernando Lacerda fez em São Paulo: tirava simples operários da base para votar no comitê central.

M.C: Sim. Então Basbaum, Fernando Lacerda. Quem mais?

O.B: Astrojildo foi um joguete nas mãos dessa linha toda.

M.C: Mas você está falando só de pessoas da cúpula do partido?

O.B: É.

M.C: E nas bases?

O.B: A base não fez nada. A base foi-se esfacelando. E Fernando dizia: “É assim mesmo, é assim mesmo… nova linha revolucionária, vamos criar sovietes.” Quê! Criar sovietes… Quando olhei na conferência, ele já tinha lido o documento me atacando em nome da Internacional. Eu tentei reagir, mas, quando olhei, estava sozinho. E eles ameaçaram de me expulsar imediatamente como traidor. Eu vi a coisa tão preta, que então, declarei que eu, por disciplina, aceitava a nova linha e queria defender a nova linha. Por disciplina.

M.C: Agora, Otávio, e fora do Rio de Janeiro, onde mais que o…?

O.B: Souza Barros de Pernambuco foi contra. Escreveu um trabalho contra. O Josias Leão, também era do partido, escreveu, assinou o documento. Foram expulsos imediatamente. Quem se opôs à nova linha foi expulso imediatamente.

M.C: Não, não. Mas não era bem isso que eu ia perguntar, não. Fora do Rio de Janeiro, onde mais que o partido tinha conseguido criar bases?

O.B: Pernambuco, um pouquinho São Paulo, interior de São Paulo, Campos, Niterói. O partido foi-se esfacelando, os operários foram abandonando. Os pequeno-burgueses trataram de se arranjar na vida. Josias Leão foi ser cônsul. José Jobim, que era secretário do jornal A Classe Operária, foi ser cônsul também. Danton Jobim também. Meio mundo foi abandonado.

R.L: Danton Jobim é o mesmo de hoje?

O.B: É o mesmo de hoje. Cada um queria fazer carreira, então foram abandonando o partido. E outros se encolheram, outros se encolheram.

M.C: Mas você fala que eles foram abandonando já depois da virada, depois de 30?

O.B: É, depois da linha de sovietes.

M.C: Quer dizer que, na verdade, a linha anterior do partido ainda não estava inteiramente consolidada? Tanto que ela foi muito facilmente esfacelada.

O.B: Você sabe, a gente tinha… uma espécie de mística da Internacional Comunista, viu? [riso]. A Internacional Comunista dizia, e a gente cumpria. Isto teve um lado positivo, porque, de outra forma, não teria havido nada no mundo – sem essa disciplina. Mas tem o lado negativo; o culto à personalidade da Internacional, o respeito rigoroso à Internacional em vez de discutir com ela. [riso]. Agora, os que discutiram foram expulsos como traidores, de modo que era muito difícil. A gente era metido numa tal embrulhada, que não tinha solução e tome derrotas, tome derrotas. Daí as derrotas, quantas derrotas da Internacional… Por que Hitler subiu? Não era obrigatório Hitler subir. Derrotas… A Internacional dizia, e nós cumpríamos.

R.L: Otávio, nessa época aí, o Prestes aparece com aquela liga de ação revolucionária.

O.B: É uma coisa maluca, sem pé nem cabeça. Ele mesmo, depois, renegou-a. Nós criticamos severamente Prestes. Há entrevistas minhas a O Jornal, de Chateaubriand, mais um ou duas entrevistas e há um outra que saiu no livro do Basbaum, segundo volume. Você conhece? História do Brasil.

M.C: A História Sincera da República?

O.B: É. No segundo volume, ele transcreve. O Jornal não quis, então foi publicado em manifesto. Aí eu mostro que os erros de Prestes com essa liga de ação revolucionária e com a linha dele… Não aceitava o Partido Comunista, não aceitava nada…

[INTERRUPÇÃO DE FITA]


[1] Entrevista realizada no contexto da pesquisa “Trajetória e Desempenho das Elites Políticas Brasileiras”, parte integrante do projeto institucional do Programa de História Oral do CPDOC, em vigência desde sua criação, em 1975. Esta entrevista subsidiou a elaboração da tese de doutorado de Dulce Pandolfi, publicada no livro Camaradas e companheiros: memória e história do PCB (Rio de Janeiro, Relume-Dumará; Fundação Roberto Marinho, 1995).

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