O Coração de um Homem Mortal – Kendrick Lamar e a Masculinidade Negra

Texto de Zion McThomas.

Originalmente disponível no site Black Perspectives.

Tradução por Rodrigo Guimarães Queiroz.


Desde o lançamento do seu álbum DAMN, ganhador do prêmio Pulitzer, não temos ouvido nada de Kendrick Lamar (considerando apenas projetos solo) desde 2017. Kendrick nunca foi alguém que se esconde de referenciar eventos e ideias contemporâneas que rondam a cultura, identidade e o povo negro sí. “The heart part 5” critica a ideia de “cultura” (cultura negra especificamente) e suas qualidades constritivas no que se refere aos homens negros. Juntamente com sua ridicularização da manutenção da ‘cultura’, ele reflete sobre a ideia da masculinidade negra e como ela é moldada não apenas pelas convenções da supremacia branca americana, mas também pela sociologia negra. Na música, Kendrick se retrata como OJ Simpson, Kanye West, Jussie Smollett, Will Smith, Kobe Bryant e Nipsey Hussle para questionar a validade da ‘cultura’ e seus efeitos na identidade masculina negra

Kendrick começa seu primeiro verso expressando a violência e a desumanização dos homens negros, tal como é interpretada sendo ‘a cultura’ ou a norma. Ele reconhece a dessensibilização, pois os homens negros são relegados a viver na violência (“Dessensibilizado, eu vandelizei a dor encoberta e camuflada. Acostume-se a ouvir a chuva de artilharia.”) e manter padrões que podem ser vistos como aprisionamento de gênero ou, neste caso, aprisionamento social. O termo “aprisionamento de gênero” foi cunhado pela socióloga Beth Richie em seu livro “Compelled to Crime: The Gender Entrapment of Battered Black Women”. Richie definiu isso como uma condição autodestrutiva na qual mulheres negras recorrem a atos criminosos para serem vistas como uma “boa” mulher (ou seja, a parceira “Ride or Die”). Eu uso esse termo para falar sobre homens negros e masculinidade. Alguns homens negros também são capturados por esse conceito de “Gender Entrapment”, recorrendo a atos criminosos para serem vistos como “autênticos” (por exemplo, iniciações de gangues, não delatar, etc.), mas também há o que eu gosto de chamar de “entrapment societal”, no qual homens negros transformam sua identidade por meio de padrões de linguagem/fala, itens materiais e socialização, a fim de serem reconhecidos por outros negros e, às vezes, por brancos, como sendo suficientemente negros. Ele termina essa seção com um trecho da música clássica de 1976 “I Want You” de Marvin Gaye. O desejo de ser visto e obter humanidade por meio da comunidade e do amor é o tema subjacente para homens negros que exibem características estereotipadas de hiper-violência, hiper-sexualidade, distanciamento emocional e fanfarronice. Isso não se limita apenas ao jovem que se junta a uma gangue; isso também inclui o jovem de classe média-alta suburbano que muda seu vocabulário, compra correntes caras e senta-se na seção VIP todas as noites para imitar o estilo de vida dos rappers; este é o jovem biracial que questiona sua própria proximidade com a negritude e se envergonha de sua própria biologia. Este é o lado da “cultura” que muitas vezes é ignorado.

Usando OJ como primeiro exemplo de representar “a cultura”, Kendrick faz referência a OJ como um exemplo quintessencial da vida que os meninos negros aspiram. Ser um jogador de futebol significava para alguns que eles haviam vencido e os jovens meninos negros do passado e de agora veem os esportes como seu vale refeição para a abundância financeira. Seu rosto se torna o de Kanye quando ele declara: “amigos bipolares, agarram você pelos bolsos”. As ações de Kanye muitas vezes foram celebradas ou odiadas por essa escala de “cultura”. Nos versos “Essa é a cultura, apontar o dedo, promove você; Localização remota, proteção de testemunhas, eles vão te segurar”, Kendrick alude como a “cultura” é uma consciência de insatisfação, imprevisibilidade, hipocrisia e escravidão.

A maior parte da seção em que o rosto de Kendrick é o de Jussie Smollett fala sobre o verão de 2020 e a “nova revolução” que surgiu com os assassinatos de Ahmaud Aubrey, Breonna Taylor e George Floyd. Kendrick critica aqueles que pediram que ele fosse mais ativo nos protestos e na discussão social da época. Somente na última linha “Se reconcilie, então encontre um negro com a mesma pele para fazê-lo”, Kendrick faz uma crítica a Jussie por contratar dois homens negros para atacá-lo em 2019, mas também critica a cultura das gangues e seu uso de homens negros para matar outros homens negros por situações banais.

Kendrick volta ao seu próprio rosto enquanto reitera sobre os perigos da “cultura”. Para ele, o ciclo continua à medida que os homens negros imitam seu ambiente e se dissociam de suas próprias necessidades e desejos emocionais. Esse conceito de manter uma ideia monolítica de negritude é destrutivo. Ao terminar esta seção com Will Smith, ele referencia o famoso tapa com a linha “na terra onde pessoas feridas ferem mais pessoas”. No entanto, isso é mais profundo do que o tapa, pois Will/Kendrick abraçam-se e cantam o sample de Marvin Gaye, ele está reconhecendo a dor interna da dessensibilização e desumanização do homem negro. A escolha habitual que os homens negros fazem para serem menos humanos e se rebaixarem a arquétipos de trauma, dor e ignorância. No final, essa exibição de cultura é realmente um apelo à conscientização e aceitação.

Kendrick recentra-se e fala sobre as provações da vida de um ponto de vista em que ele não está mais vivo. Quando seu rosto se transforma no de Kobe, ele reconhece a perseverança e os sacrifícios que Kobe fez para se tornar a lenda que lembramos. Kendrick volta a ser ele mesmo, e ainda está falando no verbo passado. Ele se torna Nipsey Hustle. Como Nipsey, ele garante àqueles que o amaram e o ouviram que sua alma está em paz. Nipsey volta a ser Kendrick, mas ainda fala como se fosse Nipsey. Ele não guarda nenhum rancor contra o homem que o matou e solicita que sua memória seja honrada através do respeito e da comunidade. Enquanto Kendrick retorna como Nipsey e termina a música, Nipsey espera que seu legado cresça através das vidas de seus filhos e do trabalho daqueles que conheceram sua visão. Ele transmite a poderosa mensagem de que “você não pode ajudar o mundo até ajudar a si mesmo” e vê sua morte como a fagulha para a libertação de sua comunidade e de seu povo. A presença de Kobe e Nipsey é a antítese dos anteriores, pois eles não estão mais aqui, mas todos esses homens que Kendrick retratou anseiam por serem desejados. Apesar das provações e tribulações da vida e das ideias sobre o que um homem negro deve ser, esses homens são humanos.

A estudiosa feminista bell hooks em seu livro “We Real Cool: Black Men and Masculinity” argumenta que a aceitação das ideias da mídia de massa e da cultura negra não devem ser as únicas representações da masculinidade negra. Ela reconhece as ramificações sociais e políticas da cultura americana e sua ideia do que a masculinidade negra representa, mas não vê isso como a única forma pela qual os homens negros devem ser retratados. hooks aborda a masculinidade negra como uma representação da narrativa patriarcal da maioria branca, em vez de ser reconstruída como uma forma de libertação masculina. Ela pede que não se aceite as normas patriarcais de falta de inteligência emocional, violência, agressão sexual às mulheres e síndrome de trabalho como a imagem definitiva de masculinidade, mas sim busca uma masculinidade alternativa baseada em amor, aceitação, humanidade e responsabilidade. A teoria das múltiplas masculinidades de R.W. Connell sugere que “existem mais de um tipo de masculinidade e o que é considerado “masculino” difere por raça, classe, etnia, sexualidade e gênero”. No entanto, esses marcadores de diferença não são colocados na vizinhança da masculinidade negra, mas sim apenas têm a chance de prosperar dentro da masculinidade hegemônica (branca). Usando um espectro e aplicando a teoria das múltiplas masculinidades de Connell, elimina-se as etiquetas e ideais que sujeitaram os homens negros à desumanidade. Isso cria uma identidade livre de forma de masculinidade que não descreve os homens negros como caricaturas, mas sim como indivíduos de sua própria criação. Através de “The Heart Part 5”, Kendrick está convocando os homens negros a se elevarem acima das prescrições da masculinidade negra e a defender uma verdade que fala à humanidade, não à conformidade.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto:
search previous next tag category expand menu location phone mail time cart zoom edit close