Sobre a metodologia filosófica de Marx no Grundrisse

Há um considerável debate sobre o valor dos escritos do Marx mais jovem em relação ao seu período mais maturo, quando estava escrevendo os três volumes do Capital. Alguns acreditam que esses escritos tem uma grande importância para entender Marx, enquanto outros como Althusser acreditam que os trabalhos mais antigos eram uma mera preparação para a apresentar a total ciência da história e filosofia do materialismo dialético nos grandes trabalhos. Eu encaixo perfeitamente no primeiro campo. Enquanto O Capital é sem dúvidas a obra-prima de Marx, há uma grande parte nele que continua ambígua e não é sempre mostrada.

Isso é particularmente verdadeiro para a metodologia filosófica de Marx. O Capital é a grande obra do materialismo dialético, e mesmo assim há pouco escrito sobre ele nas páginas do livro. Parte disso vem provavelmente do fato de como os três volumes foram escritos e publicados. Como se sabe, apenas o Volume I foi publicado com o Marx ainda vivo, enquanto o Volume II e III foram mais tarde editados e publicados por Engels. É possível que Marx, se tivesse mais tempo, talvez teria mostrado suas posições com mais detalhe. Mas também suspeito que Marx simplesmente perdeu interesse em andar pelo caminho que ele já tinha feito. Quando ele escreveu O Capital, o ponto do materialismo dialético era mudar o mundo ao apresentar uma crítica da política econômica capitalista. Com isso, Marx provavelmente tinha pouco interesse em escrever sobre seu método interpretativo para interpretar o mundo.

Há um grande discussão hoje em dia sobre o método filosófico de Marx, e ate onde há uma relação com Hegelianismo. Algumas figuras, notavelmente Zizek, acreditam que Marx se desvia muito de Hegel e muitas vezes a um custo considerável. Eu suspeito que parte da razão que há uma chamada para voltarmos a Hegel é, como mencionado, a falta do método filosófico de Marx que não é mostrada nos seus trabalhos mais famosos. A pessoa tem que fazer várias inferências interpretativas para ter uma ideia do método filosófico das densas páginas de O Capital e suas figuras e analises históricas.

É por isso que olhar para os primeiros escritos se torna necessário para desenvolver um entendimento mais rico da filosofia e método filosófico de Marx. É no seu mais antigo e não publicado Grundrisse, não O Capital, que Marx mais detalha claramente e sistematicamente o seu método teórico de análise. Suas posterior obra-prima é uma grande tentativa de analisar e criticar o desenvolvimento histórico do moderno capitalismo industrial. Mas eu acredito que ela é dependente das posições teóricas desenvolvidas no Grundrisse, onde suas primeiras e mais espalhadas ideias teóricas e conceitos estava integrados e refinados em uma madura teoria do materialismo dialético. Isso mostra que um olhar cuidadoso nos primeiros trabalhos de Marx é essencial para entendermos seu pensamento.  Penso que se isso ocorrer cuidadosamente, nós poderemos ver como o método filosófico de Marx é rico o bastante para comparar favoravelmente a seus competidores, incluindo Hegel.

Abaixo há uma citação exemplar da Introdução ao Grundrisse:

“No entanto, todas as épocas da produção têm certas características em comum, determinações em comum. A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o elemento comum, poupando-nos assim da repetição. Entretanto, esse Universal, ou o comum isolado por comparação, é ele próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferentes determinações. Algumas determinações pertencem a todas as épocas; outras são comuns apenas a algumas. [Certas] determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem elas; todavia, se as línguas mais desenvolvidas têm leis e determinações em comum com as menos desenvolvidas, a diferença desse universal e comum é precisamente o que constitui seu desenvolvimento. As determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas de maneira que, além da unidade – decorrente do fato de que o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza, são os mesmos –, não seja esquecida a diferença essencial. Em tal esquecimento repousa, por exemplo, toda a sabedoria dos economistas modernos que demonstram a eternidade e a harmonia das relações sociais existentes.”

Nesse parágrafo, Marx explicita numa linguagem clara grande parte de sua abordagem metodológica. Entendendo essa abordagem apresentada no Grundrisse pode nos informar tanto como as primeiras ideias de Marx amadureceram, tanto como entender sua metodologia teórica aplicada no Capital.

Os três passos para o método filosófico de Marx

No Grundrisse, Marx argumenta que se alguém quer entender algo como “produção”, essa pessoa tem que se abstrair das particularidades históricas em ordem para capturar o caráter geral da coisa. Mas como fazer isso? Para simplificar um pouco, como é comum com explicação de métodos nas ciências duras, nós podemos caracterizar Marx num método de três passos. Mesmo que Marx nunca o caracterizou assim, acredito que é o jeito mais fácil de entender sobre o que ele está falando. É interessante notar o caráter dialético do seu método. Isso é típico de Marx, como também era de Hegel, até no método de três partes. A dialética é ao mesmo tempo um método de análise e um caminho para falar sobre as relações sociais que existem no mundo material.

O primeiro passo é examinar o verdadeiro jeito que especificas pessoas num dado tempo histórico produzem bens. Quando você tiver um número de casos estudados, será possível separar as generalidades das particularidades. Este processo de peneiração é necessário, ou então, conceber um processo geral como “produção” seria impossível. Nós só conheceríamos as técnicas específicas e contingentes pelas quais diferentes grupos produzem bens. O segundo passo é desenvolver uma teoria abstrata, mas universal, de uma concepção – como a produção – no pensamento. Este método de abstração envolve a montagem das características gerais de um determinado fenômeno como “produção” e integração delas para formar um conceito teórico abstrato. Os conceitos teóricos que se desenvolvem devem, idealmente, ser aplicáveis em qualquer lugar que um determinado fenômeno exista. Finalmente, devemos dar o terceiro e último passo, do pensamento conceitual para o “mundo real”. Isso envolve a aplicação dos conceitos teóricos que se desenvolveu aos fenômenos históricos reais, de modo que se possa compreendê-los concretamente. Isso é conhecido como entender o concreto-em-pensamento.

O que torna o “concreto-em-pensamento” de uma mera observação histórica é que agora podemos entender a lógica interna de um fenômeno em vez de apenas sua aparência externa. Aqui está um exemplo. Se alguém estivesse observando o mundo e tentando entender a produção, pode-se ver como a forma como as pessoas fazem bens. Isso só nos levaria ao primeiro passo. Ou pode-se dar o passo de muitos economistas modernos e entender a produção ao longo de um conjunto de relações matemáticas. Isso ocorre porque, para um economista moderno, o que é importante não é realmente como as pessoas fazem bens, mas os valores expressos neles. Isso nos levaria ao passo dois. Mas onde Marx vai muito mais longe é obrigando-nos a ver como esses próprios valores são dependentes das relações sociais que tornam certos bens valiosos no lugar certo no momento certo. Em outras palavras, Marx quer analisar as relações sociais que tornam valiosas as “mercadorias” [4] com valor de troca. Isso nos dá um entendimento maior e mais rico do mundo social das relações materiais. Ou como Marx coloca no Grundrisse:

“Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico”

Este passo final é fundamental e, em minha mente, mostra o poder e o rigor do método filosófico de Marx. Vale ressaltar que cada passo corresponde a um estado de espírito ideológico. Marx espera orientar-nos gradualmente para um nível de autoconsciência maior e consciência do mundo real em que vivemos. Claro, isso se destina a ter implicações revolucionárias, uma vez que uma maior consciência do mundo leva a um senso de como estamos sendo explorados. O método de três passos nos inicia ao nível do mero empirismo, que corresponde aos limites ideológicos do senso comum. Este é o mundo percebido imediatamente, onde se vai ao trabalho e produz mercadorias para receber o pagamento. Não há nada de reflexivo sobre isso. No segundo passo, a pessoa se move para um nível mais reflexivo. Ela desenvolve um conceito do que está acontecendo em termos do valor das mercadorias produzidas. Isso corresponde aos limites ideológicos da economia vulgar. Ela vê o mundo como uma coleção de valores, sem nunca questionar como e por que eles emergiram nesta forma histórica que eles têm. O terceiro passo nos leva ao materialismo dialético completo. O conceito de valor é aplicado de volta ao mundo, tal como existe historicamente. Quando isso ocorre, reconhecemos que as mercadorias têm valor por causa do sistema econômico explorador em que vivemos. Por exemplo, percebemos que a única razão pela qual os produtos básicos têm um certo valor é porque eles são fetichizados dentro da nossa sociedade. Aqui vemos a importância do método filosófico de Marx para os propósitos do pensamento da esquerda. Passar pelas três etapas não apenas fornece um conjunto rico de ferramentas interpretativas. Pretende-se sensibilizar para a forma específica de exploração exclusiva da nossa sociedade histórica.

Essa rápida e suja apresentação do método filosófico de Marx como é mostrada no Grundrisse obviamente nao pode fazer justiça a riqueza do pensamento dele. Mais, como Marx sabia, é na sua aplicação que um método filosófico mostra seu verdadeiro valor. Mas eu espero ter esclarecido algumas das características do método em si, e ter dado um destaque do porque ainda vale dar uma olhada pelos pensadores de esquerda críticos. Pensar através do método ainda pode nos ajudar a entender melhor o sistema econômico em que vivemos e as ideologias governamentais que nos impedem de reconhecer a verdade de seu poder.


Texto original de Matthew McManus para o site Critical Legal Thinking, disponível abaixo:
http://criticallegalthinking.com/2017/09/26/marxs-philosophical-methodology-grundrisse/

Tradução por Andrey Santiago

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