Transição e Abolição: Notas sobre o Marxismo e as Políticas Trans

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Das ewig Weibliche II por Hannah Höch

A condição de uma mulher trans na sociedade é completamente contraditória, mesmo assim na existente literatura marxista sobre gênero somos amplamente ausentes.

No presente, as mulheres trans vivem contra muito do peso colocado nelas pela sociedade. Mulheres trans ainda servem como piada pela nossa simples menção na cultura popular. Mesmo assim “mulheres trans são mulheres” não é mais uma mera palavra de ordem, mas uma verdade viva: a aceitação de mulheres trans foi encontrada, como amigas, camaradas, colegas e pessoas que podem amar.

Esse processo tem sido conturbado. Em diversos casos, mulheres trans são obrigadas a viver uma vida com termos de abordagem e escolhas de roupas e persona variáveis de circulo social para circulo social. Uma mulher pode viver com o seu gênero escolhido perto de amigos, mas não junto a sua família, ou pode “sair do armário” com seus amigos e familiares, porém permanecer (na melhor das aparências) como um homem para seus colegas de trabalho. Algumas mulheres são conhecidas por serem transgênero por quase ninguém próximo a elas, incluindo até amigos próximos e todos os amigos de trabalho; com um relativo grau de segurança isso dá um contingente continuo de um segredo mantido, de uma omissão tácita. Outras descrevem elas como algo diferente de uma mulher para seus confidentes, mas simplificando meticulosamente quando estão em público (qualquer desvio de padrão visto por muitas pessoas pode ser inescrutável, deslegitimador). Inevitavelmente, até mesmo a mais ordenada transição adulta requer um momento de separo entre a identificação no seu uso ativo, e uma que será apenas lembrada. A evidente transição pode durar meses ou anos e até um amigo intimo pode saber apenas o que um colega de trabalho ou família sabe.

Enquanto o equivalente ao “armário” já foi bem coberto em textos sobre a cultura gay (um estado que pode ser vivido de modo sufocante ou saído de modo dramático), essa mudança na identificação pode causar ainda mais dissonância. Uma vez que a questão da identidade legal é introduzida as coisas vão ficando ainda mais complicadas: padrões burocráticos conflitantes pela Inglaterra podem significar que uma mulher trans com um passaporte “feminino” e uma conta bancária também possa ser presa em uma cadeia masculina por não se ter um “certificado de reconhecimento de gênero” (um processo em que é necessário que um advogado contratado faça o caso da autentica feminilidade da pessoa na frente de um comitê, entre outras despesas e degradações).

Esse estado conflituoso não pode ser significativamente negado, e ele serve para uma ambígua sociabilidade na qual as mulheres trans são obrigadas a negociar diariamente. Esforços para fabricar um novo “senso comum” ativista sempre irão chegar nos seus limites quando encontrarem de cara com a negação ampla do reconhecimento de mulheres trans pela sua feminilidade. Nem uma visão legalista nem uma visão reformista poderão alcançar a total emancipação trans. O intenso sofrimento enfrentado pelas mulheres trans não encontra suas origens na falta de poder civil ou na “ilegibilidade” social sozinha, mas também em sua própria existência em face das poderosas compreensões convencionais dos corpos sexuados. Dos insultos de recreio mais cruéis aos avanços mais intrincados da psicologia evolucional, existe um firme alicerce de rejeição ideológica as mulheres trans e a aceitação mundana de nós como mulheres. Nossa existência sozinha é inquietante para muitos, e isso é um fato a ser compreendido e trabalhado. Isso nos deixa do lado de fora.

A exclusão sistêmica da moradia e do trabalho, a ameaça de violência sexual e a agressão física em casa e nas ruas continuarão a limitar e interromper a vida das mulheres trans. Essas condições exigem uma resposta política coordenada dos comunistas.

O potencial único do marxismo para apreender e melhorar o lugar das mulheres trans na sociedade é sua disposição para analisar as contradições. As mulheres trans muitas vezes não foram incluídas nas teorizações de gênero marxistas e no materialismo feminista. Mas o benefício mútuo parece claro: sem entender nossa difícil situação, apenas uma visão parcial e rebuscada de gênero é possível. E sem uma visão sistêmica de gênero, as soluções políticas para essa situação serão igualmente limitadas.

Somente através do marxismo e da política comunista, nossas condições atuais podem ser não somente lamentadas ou “criticadas”, mas abolidas. Este ensaio examinará por que o assim chamado “Momento Transgênero” ocorreu, considerando criticamente os desenvolvimentos na consciência, e aponta para o que a teoria comunista – e somente a teoria comunista – pode oferecer àqueles comprometidos com uma política revolucionária de gênero.

I. O “momento” e seus limites

Esta década já assistiu a uma vertiginosa série de mudanças na vida das mulheres trans, com um notável aumento tanto da aceitação generalizada quanto do retrocesso assassino.

O tão alardeado “momento transgênero” é um avanço cultural significativo, por qualquer medida. As mulheres trans estão desfrutando de uma nova popularidade, capazes de falar com nossa própria voz como nunca antes. Duas das pessoas trans com maior perfil nos Estados Unidos – Laverne Cox e Janet Mock – são mulheres negras que falaram e escreveram de maneira convincente sobre suas experiências de transição e políticas de solidariedade. Cada uma delas está em alta demanda por programas de entrevistas, citações de textos, discussões em painéis com pensadores populares, aberturas de eventos oficiais e mais. No entanto, uma marcha progressiva de aceitação trans não pode ser assumida com segurança: mulheres trans negras e de cor nos EUA estão sendo assassinadas em números cada vez maiores.

Violência desse tipo acontece por todo os EUA, e é frequentemente ad hoc: muitas vezes focando em trabalhadoras de rua, ou dentro de relações interpessoais. Evidências de países onde a transição se tornou mais popularmente conhecida não é encorajadora. Todo ano os nomes lidos no internacional “Dia da visibilidade trans” são dominados por mulheres brasileiras, com 144 sendo mortas em 2016. (Assim como mulheres cis, as prostitutas estão em um risco maior). Neste maio, imagens especialmente chocantes de tortura e assassinato de uma mulher trans de 42 anos foram carregadas e amplamente vistas nas redes sociais. [1]. O mesmo se aplica fora das Américas. À medida que a política trans floresceu em todo o mundo, muitas vezes muitas represálias violentas vieram em seguida. Menos de um ano após a vitória de Conchita Wurst no programa Eurovision, um refugiado transgênero foi encontrado assassinado em Viena. (Eu me mudei para a cidade alguns meses depois). [2] Em agosto do ano passado, uma mulher trans turca que ficou famosa por ser envolver num ato de resistência contra os esforços de policiais para acabarem com a marcha gay de Instabul, Hande Kader, foi encontrada morta e queimada em uma floresta.

Rawyn Connel, uma das primeiras mulheres trans a ter uma carreira de sucesso na academia, se referiu a sociedade com uma criação histórica de uma “ordem de gênero”. O aumento da consciência que pessoas trans existem já mexeu com essa ordem, sendo os numerosos assassinatos uma resposta aqueles que investiram nisso.

Enquanto aqueles que já enfrentam a pobreza, o racismo e as deficiências estão em maior risco devido a essas represálias de gênero, todas as mulheres trans vivem vidas ameaçadas e têm uma condição compartilhada de opressão. Nenhuma de nós viveu vidas livres do medo do perigo imediato dos homens que encontramos, para não mencionar a privação e a incompreensão da sociedade como um todo. Transições em qualquer lugar do mundo são acompanhadas de altos índices de graves problemas de saúde mental, com o risco de rejeição pela família e colegas, perda de trabalho e isolamento social. O suicídio é um lugar comum para as mulheres trans em todo o mundo. As mulheres de transexuais têm 49 vezes mais chances de contrair o HIV do que a população geral dos EUA, enquanto o apoio específico ou a prevenção para as mulheres trans permanece raro. [3] Em resumo, as mulheres trans em todo o mundo enfrentam um estigma compartilhado onde nem sempre sobrevivemos.

Embora talvez chocantes para algumas percepções, esses desenvolvimentos sombrios foram recitados muitas vezes para aqueles que estão familiarizados com a tendência política conhecida como “ativismo trans”. A repetição dessas terríveis condições raramente é acompanhada por qualquer solução proposta. Como tal, tanto as nossas perspectivas de emancipação, como os meios que tal movimento exigiria, permanecem bastante incertos.

A direita, em contraste, tem uma visão clara e uma estratégia de como manter o ódio as mulheres trans em sua intensidade atual. Nos últimos anos, esses atos contínuos de violência disciplinar, a firme agitação da negação “estrutural” e da devastação psicológica (que normalmente ocorre em particular para essas pessoas), fez com que a organização política de direita contra a emancipação das mulheres trans tornasse um foco sério.

Nos Estados Unidos, a ala de direita do capital, representada pelo Partido Republicano, e uma série de ONGs “pró-família”, voltaram seu foco para as mulheres trans, agora que suas esperanças anteriores de proibir o casamento gay foram anuladas pela decisão do Supremo Tribunal de 2015. No processo da criminalização em si, as campanhas da mídia moldam as mulheres trans como predadoras sexuais, aproveitando uma riqueza de estereótipos culturais relacionados. Nos Estados Unidos, as “leis do banheiro” que banem indivíduos transgêneros de usarem banheiros públicos do gênero apropriado estão se espalhando estado a estado, até agora promulgadas apenas na Carolina do Norte. (O projeto de lei ofensivo, HBII, também restringiu os municípios de introduzirem regulamentações como salários mínimos ou restrições ao trabalho infantil, tornando-se uma espécie de peste reacionária.) No ano passado, uma medida proposta no Tennessee foi derrotada depois que uma carta de executivos foi enviada para legisladores, onde avisaram que a medida seria “ruim para nossos funcionários e ruim para os negócios” [4]. De forma contundente, o vice-presidente Mike Pence formulou tacitamente as “situações do banheiro” como uma questão de direitos dos estados. Enquanto isso, em toda a Europa, grupos tradicionalistas estão organizando esforços variados sob o pretexto de oposição à “ideologia de gênero” [5] A oposição à “ideologia de gênero” inclui esforços para manter o casamento gay banido (como no referendo constitucional fracassado de 2015, ou os grandes protestos organizado pelo grupo neofascista francês Génération Identitaire), ao mesmo tempo que procura a deslegitimação de pessoas trans.

II. Comunidades de mulheres trans e reprodução social

E, no entanto, apesar da violência, mais e mais mulheres trans estão encontrando aceitação e reconhecimento por aqueles que as rodeiam. Como isso aconteceu, em face do descrédito e da opressão generalizadas? Embora aparentemente espontânea para as comunidades trans externas, uma proliferação de dedicada organização e trabalho de base se destinou ao sucesso esporádico das mulheres trans em sobreviver e viver abertamente.

Sob o “momento”, há uma agitação de atividades de visibilidade, em grande parte invisível para aqueles que não são da causa, mas que contribuem ativamente para a progressiva conscientização trans.

As mulheres trans tem sido encorajadas a viver suas feminilidades abertamente por meio de redes de suporte mútuo e de solidariedade, que tiveram se expandindo e se fortificando significativamente nos últimos anos. Essas redes podem ser constituídas tanto online ou na vida real. Esses desenvolvimentos formam a base para a atual onda de “visibilidade”, mas atingem seu limite, pois servem apenas para suplantar o trabalho usualmente feito pela família heterossexual, e não para substituí-lo. A operação bem-sucedida dessas redes, em grande parte não reconhecidas, é a base para um número incontável de mulheres trans que alcançam o estado necessário de educação, confiança e consciência para viver abertamente. Esse desenvolvimento cada vez mais comum (uma trajetória de confusão que leva à clareza e, depois, à ação) tem como consequência secundária os níveis surpreendentes de violência em reação contra ela.

Os desenvolvimentos tecnológicos também contribuíram para essas mudanças. Muitos dos tratamentos hormonais agora disponíveis para mulheres trans, têm sido usados por mulheres cis por décadas como controle de fertilidade. O estrogênio artificial é usado tanto no controle de natalidade artificial quanto na chamada transição “Macho para Fêmea” (MtF). A progesterona, usada em contraceptivos para imitar o estado de gestação, também é usada pelas mulheres trans pelo seu impacto desejável na distribuição de gordura, prevenindo a perda de cabelo e da maciez da pele. Naturalmente, a relação da pesquisa biológica com objetivos emancipatórios nunca é automática. A evolução científica por si só não produzirá um avanço político. Enquanto algum movimento em direção à emancipação trans está claramente em andamento, ele é feito com base nos esforços ativos das mulheres trans para se beneficiarem subjetivamente através de avanços objetivos, da teoria endócrina à internet.

Não é sem um tom de ironia que a mesma base científica natural amplamente atribuída à definição do feminismo da Segunda Onda deve ser entendida como uma das fundações subjacentes ao feminismo trans contemporâneo (embora, é claro, muitas mulheres trans individuais não tenham acesso ao tratamento hormonal, ou opte por não fazer por qualquer motivo). A maioria dos opositores de mulheres que usam pílulas de controle de natalidade são igualmente hostis às mulheres trans que se tratam com estrogênio (ou, de fato, de existirem como um todo). A descoberta do sistema endócrino (e suas práticas decorrentes) implicitamente ameaçava a naturalização do sexo, de uma forma que os reacionários veem como exigindo uma resposta política: contenção ou reversão.

Desenvolvimentos recentes nas perspectivas e na “visibilidade” das mulheres trans ocorreram através de um trabalho circular que utilizou dos recursos e conhecimentos existentes sobre a condição das pessoas trans. Estes foram construídos ao longo de décadas através de arranjos que vão desde centros sociais LGBT, a redes de trabalhadoras sexuais (tanto grupos informais múltiplos e organizações políticas como as Travestis pela Ação Revolucionária de Nova York), grupos de jovens, grupos de apoio, e os “hotéis da rainha” de Tenderloin, San Francisco. [6]

Em outras palavras, organização de vários tipos tem sido necessárias para o apoio mútuo e proteção de pessoas trans com intenção de sobrevivência. Essa atividade formou a base de várias gerações de pessoas trans (mais uma vez, provavelmente, podem chamar-se de travestis ou drag queens, agora cada vez mais, embora não exclusivamente mulheres trans), que agora se tornaram o foco cultural do chamado “momento transgênero”.

Assim como o trabalho desses grupos anteriores é necessário para compreender o contexto em torno de eventos históricos como o protesto anti-polícia que aconteceu numa cafeteria do Compton em 1966 e o protestos de ​​Stonewall em 1969, o ressurgimento aparentemente espontâneo da política trans na década de 2010 decorre de um incessante trabalho reprodutivo social, as mulheres trans se comprometeram a estabelecer sua própria nova ordem de gênero. Mulheres trans, como drag queens e travestis antes delas, não vieram do nada. De fato, uma enorme quantidade de trabalho é necessária para nos trazer à existência e nos manter vivas. Apreciar este trabalho em curso é vital para a compreensão da origem das atuais mudanças históricas em andamento e para a compreensão de suas potencialidades. A reprodução social trans não é revolucionária em si mesma, mas assegura que haja pessoas vivas que devem isso a redes de solidariedade e apoio, em vez da ordem convencional de gênero. É por essa razão que as mulheres trans sempre desempenharam e continuarão desempenhando um papel tão proeminente na liderança das lutas LGBT. Quaisquer que sejam os limites implícitos na política de sobrevivência, a própria sobrevivência é um predicado da ação revolucionária.

O acesso em massa a comunicação pela internet avançou rapidamente as perspectivas para as mulheres trans, pondo fim a um isolamento anterior que havia negado diversos acessos às informações e comunidades que elas precisavam para uma transição segura. Esses grupos autônomos de pessoas trans se desenvolveram rapidamente nos últimos anos, desenvolvendo um considerável corpo de piadas internas também.

Esta é apenas uma expressão da cena cada vez mais articulada da produção cultural trans, em que a pesquisa, a ficção e os jogos foram adicionados à autobiografia como meios plenamente elaborados para a expressão cultural e o desenvolvimento mútuo por parte das mulheres trans. Tomemos por exemplo o relato de Cristin Williams sobre o movimento de mulheres para o TransAdvocate (enfatizando o papel das mulheres trans no feminismo da “Segunda Onda”), ou o podcast “One From the Vaults” de Morgan M. Page, que explora a evidência histórica de vidas trans norte americanas (e da Nova Zelândia) por todo o século XX. A mídia de esquerda autônoma com um enfoque queer, como Novara Media, ofereceu plataformas teóricas para muitas mulheres trans. O Projeto de História Oral Trans de Nova York, atualmente dirigido pela ativista trans Michelle O’Brien, busca recuperar e apresentar a história daquela cidade cheia de histórias.

Nos textos de ficção, esse ethos de “faça você mesmo” floresceu particularmente em face do aparente fracasso continuado de mídia trans-temática ainda mais conhecida (a série “Transparent”, o filme “A Garota Dinamarquesa”, o livro “eu sou Caitlyn”, et al) para fornecer mais interesse ou relevância para entender as mulheres trans. A literatura escrita por e para mulheres trans está se tornando um campo próspero e parece provável que continue assim. A Topside Press, uma pequena editora voltada para a publicação de escritores transgêneros de todas as identificações, realizou seu primeiro Workshop de Escrita Mulheres Trans no ano passado. Os sites de crowdfunding estão permitindo que a produção de vídeos com uso intensivo de tempo, como a série Análise de Gênero, seja produzida sem apoio institucional. Estrelas do YouTube como Kat Blaque compartilham conselhos práticos e desenvolvem perspectivas políticas para os inscritos (e um número incontável de vloggers menos conhecidos compartilham os relatórios de progresso da transição). A expressão cultural e a memória coletiva através da história provavelmente continuarão com essa rápida expansão no próximo período.

Antigamente, um “menino” ou um “homem” que experienciava impulsos incontáveis em busca de uma feminilidade teriam que viajar para outra cidade, ou pelo menos, conseguir ter a coragem para ir em grupo de suporte mutuo, e escutar explicitamente: “Você não está sozinho”. Não mais.

A cidade, a saúde trans e outros projetos de pesquisa

As mulheres trans muitas vezes precisam de apoio para sair de regiões onde a hostilidade generalizada em relação à transição é predominante, e as comunidades “offline” continuam fracas. A emancipação das mulheres trans parece concentrada em torno de um punhado de áreas metropolitanas, com pouca esperança de qualquer emancipação mais generalizada imaginada. Essa divisão entre as províncias e a metrópole não permite qualquer política direta de fuga, no entanto: o isolamento e a insegurança em torno do emprego e da moradia são comuns até mesmo para muitas mulheres trans que vivem nas maiores cidades do mundo. A prisão em prisões masculinas e a violência policial são um risco para as mulheres trans onde quer que vivamos. [7]

A saúde é um campo de grande importância, aqui. Considerando que a ignorância generalizada e os diferentes padrões arbitrários dentro da indústria médica deixam os médicos ocupando posições variadas de um lugar para outro, o acesso on-line está agora disponível para uma ampla gama de experiências e as pesquisas mais recentes. As comunidades on-line permitem tudo, desde referências para profissionais confiáveis, até conselhos sobre opções para tratamentos hormonais e navegações burocráticas precisas. Embora, claro, ainda seja acessado principalmente através da profissão médica, cada vez mais os hormônios são obtidos e pesquisados ​​fora de seus limites, pelas próprias mulheres trans. A saúde mental é uma preocupação especialmente cara para as mulheres trans, que foram forçadas a enfrentar suspeitas e, muitas vezes, hostilidade e maus tratos de ambos os estabelecimentos psiquiátricos e psicológicos. Isto provou ser um trabalho que ninguém mais (incluindo ONGs e a face “carinhosa” do estado) poderia ser consistentemente confiado para fazer. Apoiar psicologicamente outras mulheres trans é um lugar-comum para membros ativos das comunidades trans, desde o estabelecimento de redes de apoio para recém-chegadas a cidades estrangeiras, até números de emergência para ideações suicidas organizados ad hoc entre amigos.

Assim como um corpo substancial de pesquisas sobre o HIV durante os primeiros anos da crise da AIDS foi realizado por ativistas envolvidos no ACT-UP e no Treatment Action Group, as mulheres trans foram frequentemente forçadas a elaborar seus próprios conhecimentos práticos sobre as questões científicas e sociais que afetam as diretamente. [8] Repositórios extensos que coletam informações relevantes de artigos de pesquisa de hormônios, conselhos sobre notícias de última hora a parceiros e familiares, a introduções de cirurgia facial, estão disponíveis gratuitamente on-line. Tais tutoriais estão em uso desde pelo menos o século 19, mas hoje proliferaram em uma forma recém-acessível.

À medida que as comunidades materiais que apoiam as pessoas trans continuarem a se fortalecer, mais e mais mulheres trans poderão afirmar-se abertamente como mulheres. Essas redes se assemelham àquelas que apoiam as mulheres que procuram abortos na Irlanda e em outros países que proíbem o procedimento: tanto as informações quanto os recursos são compartilhados com aqueles que precisam de apoio velado.

O desenvolvimento subjacente à mudança cultural em direção à “aceitabilidade trans” continuará amplamente despercebido, apesar de ocorrer cada vez mais em sites de acesso público ou semipúblico. A incapacidade de compreender essas organizações levará a uma perspectiva unilateral do desenvolvimento histórico em torno das questões de gênero (que observa reação sem apreciação pelo progresso que a inspira).

Este empreendimento quase inteiramente não remunerado, o trabalho social cotidiano / salvador de vidas que ocupa inúmeras comunidades trans, apoiará a concretização da feminilidade trans nas próximas gerações. De fato, essa atividade parece envolver números crescentes de pessoas. A distribuição de informações e apoio desse tipo pode ser vista como um empreendimento político (a “política de sobrevivência” comumente referida por ativistas feministas contemporâneas), mas talvez seja melhor vista como uma fonte substituta da reprodução social. Em muitos casos, incapazes de perceberem-se como mulheres através de suas famílias e grupos convencionais, as mulheres trans adotaram outros meios para ensinar-se tudo, desde informações médicas necessárias até influências culturais sexuadas, como cosméticos, maneirismos esperados, entonação, dialeto e assim por diante.

Junto, esse coletivo corpo de conhecimento pode salvar vidas, ou fazer com que elas possam valer a pena pela primeira vez. O sucesso que mulheres trans estão vendo crescer é baseado numa grande solidariedade e suporte que poucos sem a necessidade disso iriam perceber, um trabalho que funciona sem descanso (mesmo que imperfeitamente) para fazer deixar aqueles que estão contra a cultura prevalente vivos, e se possível, ajuda-los a prosperar.

No entanto, essa reprodução social das mulheres trans nem sempre pode coexistir confortavelmente ao lado da variedade mais convencional oferecida pela família. Rejeição pelas famílias de mulheres trans tem sido relatada em todas as posições de classe, níveis de educação e afiliações religiosas. O número crescente de mulheres informadas e encorajadas irá, consequentemente, produzir mais rejeição de famílias transfóbicas e grupos de conhecidos. Em muitos casos, o dinheiro para arrecadação de fundos é focado na fuga de parentes violentos. Muitas são confrontadas com uma escolha entre a “família escolhida” de outras mulheres trans e queers, e a sua convencional. Não há indicação de que isso acabará com o tempo apenas por meio do “progresso” do ambiente, ou que os desenvolvimentos se mostrarão lineares, como demonstram recentes esforços políticos de retaguarda dos governos estaduais. Os apelos morais para que os pais cumpram suas obrigações mandatadas culturalmente de modo adequado ou para que os empregadores discriminem menos contra empregados ou contratados em potencial só conseguirão mudanças por incrementos dentro do sistema existente de poder desigual e exploração econômica.

Desse modo, uma solução “positiva” ao dano continuamente infligido às pessoas trans que tentam ter suas vidas como convém a seu gênero não pode existir sozinha. O apoio aos que sofrem sob as condições existentes deve incluir a eliminação do gênero como distribuição coerciva da violência. As mulheres trans, em particular, colocam a necessidade dessa estratégia política em primeiro plano, à medida que vivemos nossos gêneros como um estado mais abertamente contraditório do que a maioria das pessoas gostaria de ter.

III. Origens Trans, Serano e o Psicologismo Trans

Uma precondição para formular uma estratégia apropriada para a libertação trans na nossa era irá passar por um sóbio conhecimento do atual estado das políticas trans. Este trabalho de limpeza do solo pode nos ajudar a compreender os impasses que correm ao longo da teoria feminista trans contemporânea e demonstrar o potencial para uma resolução marxista.

Embora o ativismo trans tenha se mostrado politicamente diversificado e tenha encontrado representação em uma variedade de tendências de esquerda diferentes, uma pensadora em particular parece ter moldado significativamente sua linguagem e seus contornos entre os ativistas transgêneros. O pensamento de Julia Serano raramente recebe atenção fora dos círculos ativistas, e permanece em grande parte inédito na teorização marxista. No entanto, a influência de Serano no ativismo de gênero contemporâneo e, especialmente, no que se refere às mulheres trans, não deve ser subestimada. [9] Graduada em biologia, Serano não pertence à academia nem à esquerda estabelecida. Mas isso não inibiu seu sucesso como pensadora ou ativista.

Whipping Girl: Uma mulher transexual sobre o feminismo e o bode expiatório da feminilidade, publicado em 2007, pretendia dar conta tanto da maior intensidade do preconceito contra as mulheres trans quanto do fracasso das comunidades criadas para os desviantes de gênero acomodá-las. Para este fim, Serano inventou o termo “transmisoginia” para identificar uma forma de transfobia específica para mulheres trans. [10] Transmisoginia equivale a uma mistura de ambas as categorias de Serano como “sexismo tradicional” – a valorização do homem sobre a mulher – e o “sexismo de oposição” – definindo homens e mulheres uns contra os outros em categorias rigidamente discretas. Ao aparentemente abdicar do seu potencial como homens, as mulheres trans são ao mesmo tempo desconfortáveis em sua conduta de ruptura de fronteiras, aparentemente degeneradas.

Embora o progresso deste ponto em diante tenha sido desigual, a década desde a publicação de Whipping Girl tem sido marcante, e suas ideias parecem ter desempenhado um papel influente nas mulheres trans, superando nosso isolamento e afirmando nós mesmas.

E, no entanto, o relato da feminilidade trans (e cis) dado no livro ainda fornece um obstáculo para a compreensão sistêmica da opressão de gênero, devido à sua posição sobre as origens das identidades transgêneras. Por conta de Serano, a identificação sexual forma uma camada de base do eu inato:

Sexo subconsciente, expressão de gênero, e orientação sexual representam inclinações de gênero separadas que são determinadas de grande modo independente uma da outra… Essas inclinações de gênero, são de alguma forma, intrínsecas a nossa pessoa… e geralmente continuam intactas apesar de influencias sociais e tentativas conscientes de indivíduos para expulsar, reprimir ou ignorar elas.

Serano propõe uma variação sociologicamente identificável: “cada uma dessas inclinações correlaciona-se aproximadamente com o conjunto físico, resultando em um padrão de distribuição bimodal (ou seja, duas curvas sinuosas sobrepostas) semelhante ao observado para outras diferenças de gênero, como altura”. Um pode ter corpo esperado de um homem em uma variedade de maneiras, sem de fato possuir a disposição inata para se identificar como tal. A personificação trans pode ser vista como mulheres ocupando formas atípicas, em vez de distinguir ontologicamente “mulheres trans” de “mulheres natais”.

Serano, portanto, afirma uma diferenciação entre um “sexo central” e o gênero como expressão, adicionando-os à orientação sexual (já amplamente aceita como indiferente às “terapias de conversão” e outros métodos conscientes de alteração). Para Serano, cada um desses campos distintos permanece invariável: uma pessoa pode-se ser uma lésbica “caminhoneira” que está vivendo a negação por se apresentar parecida com um homem heterossexual efeminado, mas apenas às custas de uma série de mecanismos repressivos e de  negação de seu eu central.

É importante ressaltar que Serano nesta fase expõe sua confiança em uma explicação psicológica da experiência de gênero. Muito trabalho é feito neste modelo pelos conceitos de “repressão” e “negação”, uma ponderação que certamente provou ser muito útil em seu amplo estabelecimento como um “senso comum” ativista. Como o pensamento contemporâneo inclina-se para o freudismo vulgar reflexivo, ambos ativistas trans e aqueles com quem falam acham essa fonte satisfatória. (É claro que a confiança em Freud também não estava ausente do discurso dos abolicionistas de gênero dos anos de 1970.)

Serano tenta se colocar numa posição de mediação entre o construcionismo social e o essencialismo de gênero. [11] Contrastando-a em relação ao último, ela escreve:

Entre os adeptos do essencialismo de gênero, é geralmente aceito que diferenças genéticas (e subsequentes diferenças anatômicas e hormonais) entre gêmeas e machos são a real fonte para essas diferenças de comportamento. Apesar de sua insistência, ligações tão diretas entre genes específicos e comportamentos de gêneros distintos entre humanos continua a ser indescritível. [12]

Embora agnóstica nessa frente, Whipping Girl está claramente comprometida com alguma identificação central trans como uma característica imutável. Para Serano, a tendência de determinadas crianças em relação a comportamentos variantes de gênero, refuta o que ela vê como as reivindicações do construcionismo social:

… Um modelo estritamente construcionista social também não explica facilmente a expressão excepcional de gênero. Muitas meninas que são masculinas e meninos que são femininos mostram sinais de tal comportamento em uma idade muito precoce (muitas vezes antes que essas crianças tenham sido totalmente socializadas em relação às normas de gênero), e geralmente continuam a expressar tal comportamento na idade adulta (apesar da extrema quantidade da pressão social que colocamos nos indivíduos para reproduzir a expressão de gênero apropriada para o sexo que lhes foi atribuído). Isso sugere fortemente que certas expressões de feminilidade e masculinidade representam inclinações profundas e subconscientes de uma maneira similar àquelas da orientação sexual e do sexo subconsciente. (Eu uso a palavra “inclinação” aqui como uma frase genérica para descrever qualquer desejo persistente, afinidade ou desejo que nos predisponha a expressões e experiências sexuais específicas de gênero.) [13]

Por meio desse apelo à biologia e à psicologia, Serano tenta estender a identificação de gênero central ao domínio dos “fatos físicos”. O resultado é que a identificação central de gênero é efetivamente despolitizada. Existe, como uma verdade inata, que as sociedades ou com sucesso criam espaço cultural para a percepção como uma subjetividade significativa, ou então fracassam. A resolução para a qual a análise de Serano aponta é uma questão de reconhecimento suficientemente simples. A transfobia aqui existe como um defeito social, especialmente prevalente em sociedades que não possuem uma categoria organizadora representacional de “terceiro” gênero. A situação das mulheres trans no Ocidente é viver em sociedades onde seus esforços permanecem politicamente contestados e culturalmente menosprezados.

A partir dessa posição, os preconceitos enfrentados pelas mulheres trans podem ser simplesmente lançados como mero sexismo: a opressão das mulheres trans é, em última análise, indistinta nas origens daquelas de qualquer outra mulher. Embora certamente subversivo, esse argumento promove a rejeição de abordagens abolicionistas ao gênero.

Nessa perspectiva, a abolição do gênero é um objetivo que pode ser considerado equivalente à abolição das sardas. O gênero surge como uma variação inata, que cada sociedade deve garantir que se adapte. A violência que as mulheres trans enfrentam tem o seu fim apropriado através do combate aos preconceitos contra elas e do estabelecimento de uma identidade segura de feminilidade trans. Essa visão provou ser atraente para um número considerável de ativistas trans, e chegou a formar um “senso comum” fundamental, com um sucesso bastante notável, dado que seu livro tem menos de uma década.

Serano contra Butler

A oposição de Serano à construção social se transforma em um ataque mal concebido a um dos mais famosos proponentes da tese, Judith Butler. Serano explicitamente avança sua tese biologicamente informada com o intuito de desacreditar a perspectiva de Butler, que ela caracterizou erroneamente como sendo o gênero, simplesmente “performance”.

Como essa entrevista com Butler deixa claro, as apostas na discussão de gênero como performativas são bastante distintas da expressão de gênero como mera performance:

É importante distinguir performance de perfomatividade: o primeiro presume o sujeito, mas o último contesta a própria noção de sujeito… Começo com a premissa foucaultiana de que o poder funciona em parte através do discurso e funciona em parte para produzir e desestabilizar os sujeitos. Mas então, quando alguém começa a pensar cuidadosamente sobre como o discurso pode ser dito para produzir um assunto, fica claro que já estamos falando de uma certa figura ou estereótipo de produção. É nesse ponto que é útil voltar-se para a noção de performatividade, e a fala performativa atua em particular – entendida como aqueles atos de fala que criam aquilo que eles nomeiam. [14]

Em vez de afirmar a identidade de gênero como um construto fixo, o interesse de Butler é a construção: o processo narrativo e declarativo por meio do qual o sujeito usa o gênero para si mesmo.

Serano sozinha não pode levar a culpa por não entender bem essa notória passagem cheia de palavras complicadas e que não ajudam de Butler. Inevitavelmente, qualquer pessoa que investiu nas políticas de gênero nas últimas três décadas encontrou ativistas que se descrevem como defensores de Butler que perpetuaram esse mal-entendido. [15] No entanto, uma vez que isso é resolvido, há pouco na conta de Serano que faz muito para prejudicar a posição de gênero de Butler como performativa. De fato, aqueles inspirados pelos esforços de Serano para delinear a identidade trans como uma verdade subjacente psicologicamente fixada, não são mais do que exemplos de uma formação performativa da subjetividade.

Nevada, um romance de 2013 escrito pelo veterano ativista trans Imogen Binnie, que tem desfrutado de sucesso cult dentro da cultura trans, descreve suas experiências de protagonista sardônica com uma transição no local de trabalho. Recontando seu tempo como funcionária de uma livraria em Nova York, Binnie escreve sobre seu protagonista:

Então, quando ela estava trabalhando lá um ano ou dois, ela teve esse tipo de percepção intensa e assustadora que por um tempo muito longo, tão chato e clichê como isso é, mas enquanto ela conseguia se lembrar, ela se sentia toda fodida.

Então ela escreveu sobre isso. Ela organizou e conectou todos esses pontos: às vezes eu quero usar vestidos, eu sou viciada em masturbação, sinto como se tivesse levado um soco no estômago quando eu vi uma menina bonita sem autoconsciência. Eu chorei muito quando era pequena e não acho que chorei desde a puberdade. Muitos outros pontos. Uma constelação de pontos. O homem que eu fico mais fodido do que eu quero dizer, toda vez que eu começo a beber. Eu poderia odiar o ponto de sexo. Então ela descobriu que era transexual, disse às pessoas que estava mudando seu nome, que usava hormônios, que era muito difícil, gratificante e doloroso.

O que seja. Era um episódio muito especial.

O sarcasmo apontado por Binnie indica o quão comum esse processo de “reconstrução autobiográfica” se tornou para as mulheres trans. A autora Casey Platt descreveu o fenômeno como o “romance de gênero”, que reduz os caracteres trans para sua condição de gênero. [16] Plett argumenta que uma pressão generalizada para explicar a identidade transgênero (para resolver o que é atualmente inquietante) inibe a ficção de autores cisgêneros, e cada vez mais obriga os escritores de trans a “contar sua história”, sem nunca serem ouvidos.

Enquanto os autores trans se irritam cada vez mais com os limites desse imperativo em relação ao estilo confessional, parece improvável que ele desapareça. Cada vez mais, esta situação está sendo confrontada através de meios formalmente imaginativos. O livro da escritora e poeta Merritt K. “Internet Murder Revenge Fantasy” apresenta um quadro fenomenológico de estilos variados, com um artista diferente produzindo cada página. Os quadrinhos resultantes mostram incansavelmente a alienação, o isolamento e o pesado uso da internet como lugar comum para muitos adolescentes transexuais. O protagonista de K oscila entre a repressão e a perversidade polimorfa, adotando incessantemente um arranjo abstrativo de disfarces e personas terapêuticas. O livro de memórias adolescente de K não celebra a cultura cibernética passada dos anos 2000, nem elimina seu potencial. A história em quadrinhos termina com um discurso exuberante e vingativo em direção aos trolls do 4Chan que lembram as reclamações do caps lock, muito mais comum em uma internet anterior ainda desatualizada da respeitabilidade coercitiva da era da mídia social. [17]

Em cada um desses relatos, a negação da feminilidade percebida na idade adulta serve como uma revelação pessoal através da qual anos de confusão prévia podem ser sentidos, de forma gradual e dramática. A partir da posição recém-percebida de feminilidade trans (explicitamente e francamente delineada por Binnie, implicitamente mencionada por K), a vida anterior pode ser reavaliada muitas vezes dolorosamente, mas às vezes de forma divertida. Uma reapreciação pós-fato da vida anterior à transição ocupa a mente de muitas mulheres trans. Isso pode continuar por muitos anos após o início da transição, como é frequentemente o caso de quem supera qualquer episódio importante de negação. Permitir um novo tipo de re-imaginação performativa da sua vida anterior (você sempre foi uma garota, você ainda não estava ciente) é parcialmente responsável pela notável popularidade de Serano entre as mulheres trans e as pessoas trans em geral. Não há nenhum dano à “legitimidade” da feminilidade trans, aceitando o status de gênero como performativo, e Serano não conseguiu a refutação de Butler que ela acredita ter.

Os limites rígidos do reformismo institucional

Apesar de suas importantes conquistas com uma pensadora influente, as prioridades politicas de Serano são colocadas com difíceis limites que seguem diretamente de sua análise social. O ativismo de Serano, enquanto bastante exitoso nos seus próprios termos, demonstram o seu comprometimento ideológico com a reforma da sociedade capitalista, e sua existentes instituições.

Serano fez um esforço incansável para deslegitimar a análise transfóbica dos sexólogos Ray Blanchard e Michael Bailey, mais recentemente apresentados pela popular escritora de ciência Alice Dreger. [18] Seu blog apresenta uma proliferação de artigos escritos pessoalmente e uma contínua catalogação de pesquisas feitas a partir de um ponto de vista informado sobre mulheres trans. Durante anos, ela dirigiu-se particularmente ao principal praticante da terapia “reparativa” (conversão), o psicólogo canadense Kenneth Zucker. A abordagem “reparadora” de Zucker foi um resquício de terapias abertamente homofóbicas do passado, lideradas por Joseph Nicolosi (fundador da NARTH). As técnicas de Nicolosi foram usadas, sem sucesso, por psiquiatras em um esforço para reprimir o desejo homossexual em homens adultos, enquanto Zucker encorajou os pais a recusar o carinho de seus filhos com base em comportamentos de gênero “inapropriados”. Compreensivelmente, acabar com o uso de práticas “reparativas” em crianças transexuais tem sido um foco consistente para o ativismo de mulheres trans, às vezes apoiadas por outros ativistas LGBT.

Entre os escritos de Serano e os esforços de ativistas locais ao longo de muitos anos, as práticas de conversão foram proibidas em Toronto em 2015, e a Clínica de Identidade de Gênero de Jovens e Famílias de Zucker foi fechada em dezembro do mesmo ano. Isso só pode ser visto como uma vitória para Serano, bem como um sinal claro de progresso na redução do dano causado às crianças variantes de gênero pela profissão médica. Triunfos deste tipo devem, é claro, ser celebrados, nas raras ocasiões em que ocorrem. Mas um fim da violência regulatória promulgada de geração em geração exigiria um movimento revolucionário.

A atividade política de Serano depende da agitação por reformas. Este objetivo de desacreditar práticas ativamente destrutivas não deve ser descartado de imediato. A segmentação do estabelecimento médico tem uma longa história no ativismo LGBT, desde as campanhas de ação direta que viram a homossexualidade desclassificada como uma doença mental aos esforços (em curso) da ACT UP para confrontar a especulação da empresa farmacêutica com os medicamentos de DSTS e a pesquisa cada vez mais lenta para acabar com o HIV.

O foco de Serano e outros ativistas trans em relação a melhora das chances de crianças passarem pelo cuidado medico das instituições é reminiscente do ativismo intersex, com predicados similares. O ativismo intersexual permanece focado principalmente no objetivo de acabar com a comum cirurgia “corretiva” realizada arbitrariamente em bebês e crianças nascidas com genitais “ambíguos”. (Hoje denominada Mutilação Genital Intersexual) [19] Em nível internacional, os ativistas intersexuais alcançaram avanços notáveis ​​em assegurar que a UE e a ONU classifiquem a Mutilação Genital Intersexual como tortura e uma violação dos “direitos básicos”, mas essas práticas médicas continuam difundidas em todo o mundo. mundo (banida completamente somente em Malta). [20] Também não está claro o quão eficaz qualquer proibição seria na prevenção de cirurgias de MGI. Um ponto de comparação preocupante é a Indonésia, onde a legislação contra a mutilação genital feminina (instalada em face da pressão internacional) fez muito pouco para acabar com a prática generalizada de corte clitoriano infantil. (Hoje, a maioria dessas cirurgias é realizada por profissionais médicos treinados, como nas circuncisões masculinas). [21] Quer a legislação que proíbe ou não a prática seja formalmente revogada, na Indonésia ela já se tornou de facto nula. Claramente, o poder estatal e os complexos de ONGs são aliados não confiáveis, na melhor das hipóteses.

A natureza decentralizada dessa violência medicalizada demonstra a natureza evasiva da demarcação de gênero, e como desfazer seu dano se estende muito além de derrotar o estado, aprovar as leis corretas ou reformar as profissões. Enquanto a violência de gênero for realizada por meio de órgãos profissionais e instituições médicas, a disputa de sua legitimidade (não apenas o uso dela) continuará sendo uma prioridade prática.

Mesmo no caso de órgãos oficiais que transformam radicalmente suas abordagens em relação a crianças transexuais e intersexuais, o abuso intergeracional continuará sendo generalizado. A maior parte da negligência e violência baseadas em gênero durante a paternidade nunca será supervisionada por um profissional médico. Se o setor médico interromper os esforços de conversão, os “campos” privados administrados por policiais amadores de gênero permanecerão disponíveis em todos os EUA para os pais com a intenção de conter o comportamento “desviante” de seus filhos. O abuso surge não apenas da instrução dos demais “conversistas” psiquiátricos, mas da instituição da própria família. Gênero substanciando a violência é frequentemente realizado por mães que cumprem suas obrigações não remuneradas como os principais reprodutores da sociedade através das gerações. [22]

As famílias heterossexuais tendem a tentar se recriar à sua própria imagem. Embora Zucker, sem dúvida, tenha encorajado alguns pais que, de outra forma, se mostrariam mais tolerantes a maltratar seus filhos por negar-lhes afeto, seus pacientes eram apresentados a ele principalmente pelos pais, esperando que o comportamento supostamente desviante de seu comportamente pudesse ser facilmente desistido. A terapia “reparadora” certamente formalizou e encorajou o comportamento dos pais, que ocorre independentemente da intervenção da profissão médica. Mesmo a transformação mais radical das instituições formalmente constituídas terá um papel limitado no término da opressão de gênero, uma vez que muitas violências de desenvolvimento formativo ocorrem por meio de organizações informais ou “frouxas”: famílias, grupos de conhecidos, relacionamentos românticos e outros ambientes sociais que compõem a sociedade. todo dia; e inevitavelmente também locais de trabalho.

Em outras palavras, reformar os órgãos públicos não vai mudar o dano causado às meninas e mulheres trans através de casas particulares, que atualmente são responsáveis ​​pela maior parte de suas criações. Sem o fim da família burguesa e do trabalho assalariado, a miséria continuará sendo o destino de muitas mulheres e crianças trans. Se houver emancipação para as mulheres trans, não será uma longa caminhada pelas instituições.

IV. Conclusão

Nat Raha descreveu uma tendência dentro de algumas partes da militancia LGBT para o “liberalismo trans” que ela justapõe com uma política revolucionária definida pela “compreensão de que outro mundo é necessário e já está sendo criado no qual vidas trans podem florescer”, simplesmente uma falta de vontade que produz essa tendência: enquanto muitas mulheres trans compartilham as convicções radicais da recém-libertada Chelsea Manning, muitas não têm a aparente oportunidade estratégica que ela bravamente aproveitou. A participação na malha de serviços estatais e a dissecação de órgãos de ONGs pode ser difícil de ser evitada.

O “liberalismo trans” é uma característica inevitável das mudanças objetivas em andamento dentro da sociedade: sem dúvida, a estigmatização, a falta de familiaridade e a ignorância que as mulheres trans enfrentam em grande parte do mundo começaram a diminuir. Muitas ainda esperam se intitular como sujeitos respeitáveis, com todos os compromissos tacitamente reacionários que isso implica. Mas a própria escassez do que o establishment político convencional tem a oferecer à maioria das mulheres trans é impressionante. Parece provável que uma proporção relativamente alta de mulheres trans estará envolvida em uma militância política emancipatória de um tipo ou outro. Muitas mulheres trans encontraram o caminho para a política revolucionária não porque somos virtuosas, mas porque estamos regularmente expostas ao pior do mundo. As condições das mulheres trans devem ser abordadas como uma situação concreta vivida, que acabará por encontrar reparação política através da ação revolucionária.

De nossa parte, as mulheres trans podem aprender com a teoria comunista a rejeitar o atual falso debate oferecido pelas várias alas de vários estados capitalistas, e as empresas interessadas em se manter a par dos mais recentes meios de demonstrar “Responsabilidade Social Corporativa”, pessoas trans melhorando de vida através do liberalismo e patrocinadores corporativos são promessas vazias e medidas fragmentadas. Grande parte da violência que é cometida contra pessoas trans ocorre na infância, sendo estas realizads por pais ou outros protetores legais. Muito mais é feito pelos sistemas penitenciários, policiais e outras armas do Estado, aos quais os reformistas e liberais não têm resposta e que tacitamente desejam deixar no lugar. Essa discussão emerge entre os partidos capitalistas demonstra a confusão provocada por aqueles que estão fora das normas e procedimentos da família heterossexual: as identidades trans fornecem uma falha na reprodução esperada da sociedade através das gerações. Nosso papel como comunistas não é fornecer cobertura a essa fissura, mas perguntar: que fraquezas são apresentadas por essa violação que somos forçados a viver? Nossa teoria reconhece e extrai da atividade existente que faz de subsistência e reprodução social e abraça as implicações de uma sociedade onde isso poderia prosseguir sem contínua coerção para a exploração.

Dizer que as mulheres trans vivem sua feminilidade como uma condição contraditória é descrever nossa situação, mas também apontar para uma tensão que se desenvolveu por razões históricas, bem como uma resolução política. Todos os comunistas devem oferecer seu apoio àqueles nessas condições, com campanhas em torno de lutas dentro e fora do local de trabalho.

O projeto teórico que os marxistas podem contribuir melhor é a desnaturalização do popularmente assumido, expondo falsas diferenças e colapsando a diferenciação arbitrária. Este trabalho tem sido contínuo, levado a cabo através de um conjunto diversificado de projetos de ativismo trans. A teoria comunista tem ficado defasada há décadas em contribuir para esse empreendimento (o mesmo não pode ser dito para o anarquismo), e o dano causado a ela por tal negligência levará anos para ser corrigido. Mesmo assim, a capacidade do marxismo de compreender a contradição apresenta uma alternativa frutífera à suposição superficial da transfobia como corrupção da sociedade, em vez de um dos seus fundamentos.

A liberação trans através do comunismo é alimentada pela atividade já existente de mulheres trans que criaram algum tipo de vida para muitos de nós mesmos, mesmo diante da transmisoginia e da exploração. A teoria comunista deveria contribuir para a abolição dessas características da sociedade, opondo-se à sua naturalização ideológica (atualmente onipresente).

A esperança oferecida às mulheres trans pelo comunismo é que nossa situação não pode apenas ser descrita, então explicada, mas também terminada.

Referências

1. Dom Phillips, “Torture and Killing of Transgender Woman Stun Brazil,” New York Times, March 8, 2017.
2. ‘Hande Öncü, “Turkish transgender asylum seeker living in Vienna murdered,” Transgender Europe, January 30, 2015.
3. “Other Balms, Other Gileads,” by the late Bryn Kelly, published in the radical AIDS journal We Who Feel Differently in 2014, relates her life as an HIV trans woman. For the on-going uncertainty around trans women’s use of PrEP see Raquel Willis, “Why Aren’t More Trans Women on PrEP?,” Rewire, July 14, 2017.
4. Trudy Ring, “Tennessee Flushes ‘Bathroom Bill’ Away Again,” The Advocate, April 18, 2016. The bill was finally defeated this year.

5. This term was originally used by Polish Catholic bishops in a 2014 Pastoral letter, but is now widespread among reactionary activist organizations on both sides of the Atlantic.
6. On the Compton’s Cafeteria Riots and their context of early activism in the Tenderloin, see Neal Broverman, “We Can Still Hear the ‘Screaming Queens’ of the Compton’s Cafeteria Riot,” The Advocate, August 8. 2016; Nicole Pasulka, “Ladies In The Streets: Before Stonewall, Transgender Uprising Changed Lives,” NPR Code Switch, May 5, 2015; and Susan Stryker, “Transgender Liberation: The Compton’s Cafeteria Riot of 1966.”

7. To provide three recent examples: “Trans Woman Eyricka King Attacked & Denied Medical Treatment in New York Prison” (New York City); “Transgender woman ‘raped 2,000 times’ in all-male prison” (Brisbane); “Trans woman receives police payout after being forced to strip naked and sprayed with mace” (Somerset, UK).
8. Much of this work is done orally or through IMs, although the autonomous production of extended documents is also common. There are innumerable examples possible to cite here, so I will simply include the most recent of these texts I’ve encountered, available here. Another widely distributed example, produced at the Church Street Community Centre, can be found here.

9. See: Meredith Talusan, “The Lasting Transgender Legacy of Julia Serano’s Whipping Girl,” BuzzFeed News, March 6, 2016.

10. Serano has returned to this term innumerable times across her career, but the most succinct introduction is a page-long, purpose written “Trans-misogyny primer.”

11. Serano’s follow-up book Excluded: Making Feminist and Queer Movements More Inclusive is exclusively dedicated to this theme, coining the phrase “gender artifactualism” to distinguish variations on social constructivism. Serano is more amenable to arguments from those which refer to gender as “just a construct.” I will primarily reply to the etiological arguments made in Whipping Girl rather than this later work, since they have clearly found greater traction, and because I agree with Serano that both feminist and queer circles have often proven exclusionary towards trans women. My intention here is certainly not to negate Serano’s introduction and development of trans misogyny. Excluded’s tracing of the similar treatment given to trans women and bisexuals of whatever gender is especially astute. See Julia Serano, “What is Gender Artifactualism,” Whipping Girl, November 4, 2013; and the excerpt from Excluded published in The Advocate, November 7, 2013.
12. Serano, Whipping Girl, 189
13. Serano, Whipping Girl, 190
14. “Gender as Performance: An interview with Judith Butler,” Radical Philosophy 67 (Summer 1994).
15. Indeed, Binnie’s protagonist’s treatment in Nevada suggests Serano, in turn, has received similar treatment of subsumption into orthodoxy: “Her name is Julia Serano and like most figureheads, she’s very smart and sweet and right-on and almost entirely unproblematic, but her acolytes totally get obnoxious, taking her writings as doctrine.”
16. Cf. Casey Plett, “The Rise of the Gender Novel,” The Walrus, November 18, 2015; and on pressured towards self-limitation, simplification and reduction on the part of trans authors, see Plett’s short piece on the CBC website, “More fear, more love, more honesty: A call for intimacy in works from marginalized writers,” May 4, 2016.

17. Merritt K, Internet Murder Revenge Fantasy (2015). See also the interview with Vice Motherboard, March 3, 2016.
18. The “autogynephilia” thesis attempts to taxonomize trans women between “homosexuals” (i.e. trans women interested in men) and tranvestite fetishists. This exercise does not warrant any detailed critique here, it will suffice to say that is a clear continuation of earlier efforts to cast all trans people as pathologically damaged “paraphiliacs.” That such schema are even presented for discussion reflects mostly on the disastrous state of “sexology” as a research field.
19. Outlawing and abolishing IGM is a demand supported with near unanimous consensus among intersex activists. The most effective group operating at international NGO/transnational state lobbying presently is OII Europe.

20. See: UN Free & Equal: Intersex Awareness; the European Union Agency for Fundamental Rights, “The Fundamental Rights Situation of Intersex People”; Naomi Larsson, “Is the World Finally Waking Up to Insersex Rights?,” The Guardian, February 10, 2016; Azeen Ghorayshi, “Intersex Surgeries Are A Human Rights Violation, Says U.N. Group,” BuzzFeed News, September 19, 2015; and The Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR), “A step forward for intersex visibility and human rights,” September 25, 2015.
21. In Indonesia, 53.2% of FGM was performed by medical professionals by this 2013 survey, six years after the practice was supposedly outlawed.

22. Mario Mieli’s 1977 work, Towards A Gay Communism: Elements of a Homosexual Critique, indeed contains an analysis of mutual damage between homosexuals and women which would urge against any straightforward pro-women identity politics misleading us into siding with homophobic mothers against their “sons”: “For centuries, the system has exploited the work of homosexuals to subjugate women, just as it has made abundant use of women to oppress gays (any gay man need only recall his mother).” Mieli’s book was recently retranslated and republished by Pluto Press.

23. Nat Raha, “The Limits of Trans Liberalism,”Verso Blog, September 21, 2015


Artigo originalmente escrito por Jules Joanne Gleeson para a Viewpoint Magazine, em 19/07/2017.

Link da matéria original disponível abaixo:

https://www.viewpointmag.com/2017/07/19/transition-and-abolition-notes-on-marxism-and-trans-politics/#

Traduzido por Andrey Santiago

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