“Eu senti quase como se Tezuka tivesse algumas poucas e pequenas gavetas, as quais ele abriu, tirou algumas coisas que ele teria usado a muito tempo atrás, e disse, “Wow, olha pra isso!” Antes de rearranjar as coisas em algum tipo de trabalho… Existe uma cena [Em Takes of a Street Corner] onde pôsteres de uma bailarina e de um violinista, ou coisa do tipo, estão pisoteados… eu lembro quando vi isso, eu estava tão enojado que calafrios correram pela minha espinha…
Existe uma bastante conhecida rotina de comédia rakugo na qual o dono de um cortiço está aprendendo músicas gidayu, e ele pega todos os seus inquilinos e os força a escuta-lo. Bem, uma animação de Tezuka funciona justamente como isso.” [1] – Hayao Miyazaki
Tezuka não dirigiu A Tragédia de Belladonna, mas o filme acabou sendo o auto-golpe de morte de sua companhia de animação, Produções Mushi. Parte de uma trilogia de filmes animados orientados a adultos – 1001 Noites e Cleópatra sendo seus irmãos menos experimentais – esse filme esta atualmente tendo um revival. Eu recentemente vi ele em uma restauração digital, com uma resolução 4K dessa fantasia sobre estupros num cinema local e tive que trabalhar com minhas impressões cuidadosamente. O filme incorpora uma radiante mistura de um gosto impecável com uma chocante sexualidade nas profundas contradições que vão no coração das tentativas de trazer a animação para a contracultura adulta.
Ele se encaixa bem com a minha Retrospectiva Bakshi, em outras palavras.
Originalmente lançado no verão de 1973 no Japão, o filme se saiu tão ruim que acabou com as Produções Mushi, uma das titãs históricas da antiga animação japonesa. Sua tendência vanguardista contribuiu para fracasso comercial, mas também garantiu seu significado histórico à longo prazo. Produzido com aquarelas e uma limitada e estilizada animação, com algumas cenas sendo apenas gigantes enquadramentos andantes, e elaboradas pinturas, o filme conta a história de uma mulher que faz um acordo com o diabo para conseguir o poder de fazer sua família prosperar.
O diretor e co-roteirista Eiichi Yamamoto teve como base para a história o livro La Sorcière, chamado Satanismo e Bruxaria em português. O livro não me é familiar, mas ele tem uma reputação de ser um dos primeiros livros simpáticos aos relatos da bruxaria europeia, se colocando como um protesto contra a repressão do feudalismo e a Igreja Católica. Considerando a obsessiva fascinação do século 19 com o oculto, dificilmente surpreende que o livro foi escrito na década de 1860.
E julgando por essas ilustrações de 1911 por Martin Van Maele, o livro parece tão científico e preciso quanto alguém poderia esperar.
O autor do livro, Jules Michelet, não era um grande amador também. Ele era um Historiador Huguenot (Calvinista Francês) que teve sua grande conquista com a publicação de um livro de 19 volumes sobre a história da França onde ele expôs o seu grande ódio pela Idade das Trevas. Ele até escreveu e trabalhou energicamente durante a Comuna de Paris, sendo inflexivelmente hostil ao império francês e ao feudalismo em geral. Um indivíduo completamente romântico, sua sensibilidade definitivamente dá base a iconoclastia e o misticismo de Belladonna.
Filmes que tocam na feitiçaria e nos primórdios da moderna bruxaria europeia, em particular, estão lidando com uma história bastante complexa. O trabalho marxista definitivo sobre as caças as bruxas é a obra “Calibã e a Bruxa”, de Silvia Federici, que escreve sobre esse período de violência repressiva contra as mulheres, juntamente com o nascimento do sistema capitalista e seus ataques destrutivos às comunidades camponesas e ao conhecimento tradicional das mulheres. Muitos de seus insights são resumidos e bem apresentados no zine Burning Witches, que é um excelente trabalho por si só.
De fato, o filme tem uma vantagem crítica e possui algum material marginal que poderia estar de acordo com a análise de Federici, embora apresentada de maneira distorcida e muitas vezes patriarcal (na qual mais tarde falarei). Por exemplo, todo o enredo do filme, tal como é, gira em torno de atos de violência contra as mulheres. Entidades políticas, sobrenaturais e humanas, todas participam ou na violação literal da protagonista, Jeanne, ou violentamente a reprimem de alguma forma. Nossa heroína é ritualmente estuprada pelo senhor da terra em seu cavaleiro de casamento, e depois ganha poderes ocultos ao ser estuprada pelo próprio Satanás, que aparece na forma de um ser fálico grotesco. As pessoas começam a suspeitar que ela exerce um poder pecaminoso quando ela e sua família realizam uma prática artesanal de sucesso durante um período de dificuldades. Ela e o marido prosperam enquanto o resto da cidade sofre de fome e excesso de impostos. Porque ele é o único que pode pagar seus impostos (devido ao trabalho de sua esposa) o marido de Jeanne é nomeado coletor de impostos pelo mesmo senhor que estuprou sua esposa.
Jeanne, assim, rompe com a economia agrícola de subsistência em um ponto inicial do filme, embora isso seja retratado como parte de seu sonho no início. Eventualmente, Jeanne se torna uma usurária, usando sua posição para exceder mesmo o seu senhor em termos de riqueza e poder. Neste ponto, ela é uma pessoa a ser eliminada, e o rei incita uma multidão a expulsá-la da cidade para uma floresta local por ser uma bruxa. Belladonna coloca em foco especificamente a caça às bruxas como resultado do empoderamento de uma mulher e do medo que ela produz dentro da população, e particularmente no senhor e seu fiel bispo católico.

Uma vez perseguida e levada para a periferia da civilização, Jeanne cria um mundo fantasmagórico e lentamente ganha a cidade a seu favor com seu poder de curar a Peste Negra e – não menos – por causa de sua capacidade de sediar orgias que colocariam o Verão do Amor a se envergonhar. Aqui o anticatolicismo de Michelet se encaixa a até uma aproximação grosseira da revolução sexual dos anos 60. Assim como os isolacionistas hippies da década de 1960 reconfiguraram as ideias românticas para atender aos seus retiros e comunas separatistas, o filme olha para além dos confins do espaço civilizado e da comunidade que o produz para a libertação, procurando escapar da indulgência física para a expansão mental através do uso de substâncias.
Decifrar a “visão” exata que o filme pode ter sobre as queimadas históricas de bruxas não é totalmente possível. É fácil ver que ela enxerga as queimadas sob uma luz negativa, e até vê as bruxas como figuras de revolta e poder contra-hegemônico, mas obviamente está usando apenas esse período da história como um suporte para sua própria agenda: libertar a animação do tirania da audiência “familiar” e assuntos enlatados. Os animadores estão em algum sentido contando sua própria história através de Jeanne: ela é o instrumento pelo qual eles irão libertar sua arte.
Embora o filme seja louvável ao glorificar o poder de Jeanne e até mesmo posicioná-lo como uma figura revolucionária em alguns aspectos, sua representação lembra uma das maneiras pelas quais os surrealistas se apropriariam dos corpos das mulheres como suportes para celebrar sua própria libertação do superego. Dentro do enredo do filme, Jeanne transcende sua vitimização para se tornar um avatar da liberdade e do amor livre. De fato, em um certo ponto, sua personalidade quase se transforma de confiante, mas muitas vezes atormentada e “danificada” para serena e desapegada.
Seu corpo se transforma numa embarcação para a realização das fantasias dos animadores, como também da audiência. Essas fantasias são colocadas como estéticas e eróticas, claro (dado a sua constante nudez), mas também, como falei anteriormente, profundamente política. Ela é a incorporação do filme de uma mulher ideal e um mundo ideal. O modo como o filme eventualmente liga ela a representação francesa da Liberdade e Nação demonstra isso; como o filme de Bakshi, Coonskini, a mulher sexualizada serve como um magnete de atenção, chamando atenção para o que os realizadores do filme estão fazendo o que estão tentando dizer a audiência. O seu poder de curar e realizar sonhos está ultimamente ligado ao dos realizadores do filme satisfazerem nossos próprios (e os deles também) desejos com o poder da animação. Belladonna é masturbatório (o que Miyazaki referenciou implicitamente como a Mão Divina no artigo citado acima) ao nível em que ele sente prazer em uma fantasia uni-dimensional de uma animação sobre o poder Prometéica para satisfazer o desejo da audiência por corpos de mulheres objetificados numa tela. Jeanne é o nascimento de milhares de sonhos, e o clímax de muitos outros.
Notavelmente, os cineastas nos dão um caráter paralelo, um duplo feudal para Jeanne. Ela é a esposa do senhor, a senhora da terra. Sua própria história é de ciúme, repressão, uma perda gradual de poder e respeito. Ela também é levada e estuprada por um criado, que recebe ajuda para cometer essa ação com Jeanne. A esposa do lorde acaba morrendo pela espada de seu marido enquanto ela chega ao clímax, outro caso em que o filme localiza a fonte do poder patriarcal em seu controle sobre a sexualidade feminina. Há certas ironias, dado que a celebração do sexo e do corpo das mulheres no filme é mais do que um pouco manipuladora e egoísta.

Eu mencionei o Surrealismo, mas esse movimento, e sua contraparte do pop dos anos 60, a Psychedelia, são apenas dois dos pontos de referência para Belladonna. Também temos todo um feixe de arte européia do final do século XIX, bem como movimentos anteriores “decadentes” como o maneirismo. Eiichi Yamamoto, o diretor, menciona especificamente a influência de Egon Schiele e Gustav Klimt, bem como o ilustrador japonês Masakane Yonekura, que trabalhou no filme. Yamamoto menciona que ele queria capturar a decadência do fin-de-siècle, que serve como um espelho para a decadência do início dos anos 1970. Klimt é certamente a referência mais óbvia, já que sua arte simbolista une o uso extravagante da folha de ouro com temas estilizados e eróticos. Embora Belladonna não seja tão opulenta, tira de Klimt um fascínio por personagens que são em grande parte abstratos e mal definidos, substituindo-os por conceitos universais mais do que por personagens psicologicamente realistas. Eles são fixados o suficiente para servir como substitutos para Homens, Governantes, Sacerdotes, Mulheres, a Máfia, mas são flexíveis o suficiente (especialmente Jeanne, cujo corpo é submetido a um desafio de transformações e distorções geralmente dolorosas no filme) para acomodar a necessidade do animador experimental de reconfigurar, torcer e cutucar.
Ver A Tragédia de Belladonna em uma tela grande é um espetáculo impressionante, apresentando uma série de sequências cativantes. Meu favorito pessoal é a forma como a Peste Negra é retratada como uma grande água escura dissolvendo as grandes estruturas da civilização, deixando esqueletos ressequidos e seres humanos espectrais em seu rastro. Outra sequência tumultuosa é o encontro sexual final entre o Diabo e Jeanne, que culmina numa trilha sonora psicodélica que corre ao longo de uma série de imagens de arte pop que são individualmente espirituosas ou irônicas, mas em sua soma transmitem uma sensação de agitação e história mundial rasgando-se. Eles também são bobos, mas o efeito geral é bem forte.
Depois de ver tantos filmes de animação da década de 1970, acho que posso chegar a uma conclusão preliminar sobre a forma típica como a mulher é retratada nesses tipos de experimentos de animação para adultos. Elas nunca são nem como as mulheres de Hollywood de língua afiada da Idade de Ouro nem as incríveis e acéticas mulheres que estrelam filmes de ação hoje. Em vez disso, elas são sinceras e poderosas e as inevitáveis vítimas do poder sexual masculino. A sexualidade é o tema dominante, no entanto, e se o filme em questão molda essa violência fetichisticamente (além disso, os filmes B dos anos 70 são um dos grandes repositórios de estupro no cinema) ou de modo mais antagônico – e esse filme faz um pouco dos dois – isso é muitas vezes a única coisa que importa. Acho isso um pouco difícil de compreender, tão distante da chamada Revolução Sexual, mas o fascínio singular pelo sexo neste filme é um lembrete tão gráfico quanto eu gostaria de ter sobre essa tendência nos filmes dos anos 70. Tudo é sexo – violência, autonomia pessoal e política – e sexo é tudo.

O que Miyazaki diz no seu artigo sobre Tezuka, que o homem e a sua companhia estavam muitas vezes obcecados com o seu próprio poder de apresentação e que eles estavam tão desesperados para impressionar, certamente se mostra como verdadeiro para A Tragédia de Belladonna. Algumas das imagens no filme são realmente de te fazer se arrepiar até a espinha. E nem sempre de um bom jeito. Entretanto, eu penso que aquele tempo, e a coalescência da animação com uma forma de arte em volta do CGI e da “audiência familiar” tem sido gentil a esse filme. Tirando ele de seu tumultuoso tempo, ele mostra o que são as atuais animações, copias comerciais diluídas e estereotipadas uma das outras. É uma obra que vale a pena digerir e discutir, mesmo com suas falhas, ela contem uma faísca do que a arte popular deve ser.
P.S. Deixei uma enorme quantidade de conteúdo não escrito para cortar esse ensaio já longo. Eu poderia escrever sobre o que é sua relação com o mundo do anime, sua relação com o japonisme europeu do século 19, sua trilha sonora, sua relação com os outros trabalhos de Tezuka, e assim por diante. Eu provavelmente não voltarei a este filme novamente, pelo menos por algum tempo, mas eu encorajo os outros que o veem a escrever sobre esses tópicos, se eles forem de interesse.
Notas:
- Hayao Miyazaki, “I Parted Wayes With Osamu Tezuka,” in Starting Point, trans. Beth Cary and Frederik L. Schodt (San Francisco: Viz Media, 2009), 194-196.
- Interview with Eiichi Yamamoto: http://www.style.fm/as/13_special/mini_060118.shtml
O artigo foi originalmente publicado no site Tiger Manifesto, que atualmente está desativado, essa é a única versão do texto disponível na internet.
Tradução por Andrey Santiago