Trecho extraído do livro “Organização Política e Política de Quadros” escrito por Ademar Bogo, disponível para compra neste link.
O conceito de quadro tem origem, assim como os termos tática e estratégia, na teoria militar. É bastante provável que este termo tenha surgido na França, ainda no século XVIII, baseado na hierarquia do oficialato das forças militares. O comando das tropas em movimento, que reunia as habilidades necessárias, era exercido pelos quatro primeiros oficiais da hierarquia militar; para chegar a este posto, o indivíduo tinha que ter capacidade de comando e, para tanto, deveria estar intelectual e tecnicamente preparado. Mais tarde, essa denominação passou a ser usada para qualificar os dirigentes políticos.
Embora a definição seja antiga, a pergunta continua atual: o que é um quadro? Para além disso, porém, devemos colocar uma segunda interrogação: que tipo de quadro a organização precisa hoje?
Um quadro existe em função dos objetivos da organização a que pertence. Para alcançar tais objetivos, é necessário que sejam definidas as tarefas que direcionem a ação, com métodos eficientes para efetivá-las. Logo, poderíamos dizer que um quadro é aquele que sabe definir tarefas, distribuí-las e formular métodos para a sua execução, com a consciência de que está realizando os objetivos da organização.
Por este raciocínio fica fácil perceber que as qualidades de um quadro serão iguais às necessidades que uma organização possui. Ele atingirá o “limite” que o programa da organização definir e será profissional no nível do caráter e da natureza das tarefas. Assim, por exemplo, se o caráter da organização é fazer a luta pela terra, as tarefas que esta organização terá que executar estarão vinculadas aos aspectos da luta pela terra, com os meios que esta luta comporta; logo, os quadros irão se especializar e se comportar de acordo com a natureza das tarefas que irão realizar. Mas, se a organização tiver um caráter político e revolucionário, os quadros, além de se especializarem em diversos conteúdos políticos, filosóficos, históricos, conspirativos etc., terão que executar diferentes tarefas que irão exigir deles uma capacitação mais elevada. Portanto, são as próprias tarefas que vão desafiando a qualificação dos quadros e determinando seu caráter, seu estilo e desenvolvendo suas habilidades e perfil.
Um quadro deve buscar superação e adequar suas atitudes e obrigações às exigências da vida política cotidiana. Isto porque, além de ter a tarefa de conduzir determinado processo e de orientar as pessoas que o acompanham, ele precisa dar exemplos concretos para que os demais militantes o sigam e possam também, aos poucos, destruir os velhos valores e construir novos conceitos e novos valores na convivência social.
Mas o que identifica os limites e a incapacidade na execução das tarefas?
A esse respeito poderemos cometer graves erros metodológicos à medida que a teoria e a prática estiverem em desacordo. Se uma organização se propuser a formar quadros revolucionários, estudando e delegando tarefas econômicas ou administrativas, não conseguirá jamais saber quais são os limites políticos a serem superados. Neste caso, o “quadro”, conforme for exigido, irá se deparar com suas próprias incapacidades políticas na execução das tarefas e não conseguirá responder às exigências do momento histórico.
Podemos fazer uma avaliação de todas as organizações populares, sindicais e partidárias que conhecemos para verificar como ocorreu em suas fileiras a multiplicação dos quadros nos últimos anos. Certamente chegaremos à constatação de que a crise de perspectivas do projeto revolucionário inibiu a multiplicação de quadros revolucionários, e, além disso, os que surgiram tiveram um baixo nível de qualidade e de desenvolvimento político. As prioridades tenderam para as disputas institucionais, e, com isso, as tarefas exigiram um tipo de quadro com perfil administrativo e conciliador, que coubesse dentro da ordem.
Se tomarmos como exemplo os processos revolucionários históricos em diferentes partes do mundo, perceberemos que a multiplicação política dos quadros se deu a partir das necessidades concretas de cada um destes processos.
No processo revolucionário russo, Lênin formulou a política de quadros do partido a partir da análise concreta daquele país. No caso cubano, a formulação das tarefas dos quadros seguiu o mesmo princípio. Che Guevara, ao formular a política do “homem novo” e ao definir algumas características que principalmente a juventude comunista deveria adquirir, o fez a partir da necessidade de confrontar as velhas relações com os novos valores.
Na China, Mao Tsé-tung traçou a política de não apenas multiplicar em quantidade e qualidade os quadros, mas também de como cuidar dos quadros, orientando-os, elevando-lhes o nível de consciência, ajudando-os a fazer avaliações e atendendo em suas dificuldades pessoais e familiares. [117]
Ho Chi-Minh, por sua vez, chama a atenção para o controle contra a prevaricação, o desperdício e a burocracia.
O movimento de massas e a consciência política
A longa polêmica entre Lênin e Rosa Luxemburgo sobre “movimento espontâneo e a consciência política”, [118] bem como sobre as disputas ideológicas realizadas entre Lênin e os economicistas da época, nos ajuda na reflexão e na compreensão para formularmos uma política de quadros dentro do movimento de massas e para além dele.
Por um lado, as lutas de massas possuem um caráter espontâneo, porque seu limite reside no interesse do alcance imediato das conquistas econômicas. Por outro lado, ele deve ser entendido como o primeiro passo para a formação da consciência política, tendo em vista que, através da luta, os indivíduos passam a perceber as contradições da sociedade capitalista, a ineficiência do Estado para atender às reivindicações da classe trabalhadora e faz a experiência do confronto com a legislação e com as forças policiais que agem na repressão a estes movimentos. Com isso, as massas vão, aos poucos, criando a habilidade da resistência coletiva, embora muitas vezes isto tudo transpareça desespero ou sentimento de revolta.
Para Lênin, “o “elemento espontâneo” não é mais do que a forma embrionária do consciente”; [119] além disso, ele acrescenta que é possível avançar em determinados aspectos e perceber o amadurecimento da consciência de classe quando esse movimento de massas consegue formular reivindicações, escolher os momentos propícios para desenvolver a luta, articular-se com outros setores etc. Mas, no seu entender, as lutas ocorrem pelo caráter sindical ou econômico, pois seus membros não possuem consciência da importância de defender todos os direitos e interesses da classe, nem compreendem que devem se articular com outras forças sociais e políticas existentes. Dirá então que estas limitações caracterizam o movimento como um movimento essencialmente espontâneo que não prevê resultado algum, nem tampouco visa atacar as causas universais dos problemas.
A luta espontânea, por si só, não chega até a consciência política, porque a capacidade do movimento de massas não vai além das conquistas sindicais, nem eleva a consciência para perceber demais contradições entre as classes.
Qualquer movimento de massas, embora “espontâneo” (não no sentido de que surge espontaneamente, mas, sim, porque luta apenas por coisas imediatas), sempre tem uma direção. Mas o preparo dessas lideranças esbarra na natureza das tarefas a serem realizadas: como as reivindicações visam melhorias específicas e não mudanças estruturais, a tendência é que os integrantes e o comando das lutas se acomodem com o que já sabem, isto porque não possuem um programa estratégico revolucionário e nem tampouco despertam para uma perspectiva revolucionária. A simples experiência da luta imediata, sem que ela seja esclarecida pela teoria revolucionária — produzida a partir das próprias contradições entre as forças em conflito —, não é suficiente para elevar a consciência de classe a um nível superior.
Lênin irá destacar que, entretanto, a luta espontânea será importante para desencadear a luta revolucionária e engrossar as fileiras dos que lutam para que a revolução possa ir até o fim. E dirá então que isso se constitui num aprendizado importante e necessário, porque
(…) a experiência revolucionária e a capacidade de organização são coisas que se adquirem com o tempo. A única coisa que se requer é a vontade de desenvolver em si as qualidades necessárias. A única coisa que se exige é a consciência dos seus defeitos, o que, no trabalho revolucionário, já pode ser considerado meio caminho para corrigi-los.” [120]
Fica claro, portanto, que se esta mobilização “espontânea” é importante para “engrossar as fileiras dos que lutam” por mudanças mais amplas, mas deve haver uma organização política que tenha claro quais os objetivos estratégicos de transformação das estruturas da sociedade, para levar a luta ao triunfo.
O próprio Lênin explicita este aspecto quando diz que a luta política somente pode ser levada à frente com a organização dos revolucionários. A tendência do economismo da época, na Rússia, pensava e agia justamente no sentido contrário: procurava fazer com que a prioridade fosse a luta por conquistas imediatas. Dessa maneira, a luta política era conduzida pelos interesses econômicos e se transformava em luta sindical. Embora muitas vezes essa concepção utilizasse o marxismo como elemento científico, ela não ia além do uso de fragmentos distorcidos.
Assim, a espontaneidade como iniciativa isolada aniquilava a consciência, porque a direção das lutas ficava à mercê da própria sorte e não ia além das melhorias para aqueles que lutavam, passando longe dos interesses de classe e da transformação das estruturas sociais.
Para Lênin, o desvio estava em querer que a luta econômica dirigisse a luta política e, por isso, alimentava-se o “culto ao espontâneo”, que fortalecia a ideologia burguesa sobre os trabalhadores. De certa maneira, era a devoção sectária da busca da conquista meramente material que fortalecia a ideologia da melhoria de vida, e não da necessidade política de transformar as estruturas sociais. Induzia a crer falsamente que, através da luta econômica, se elaboraria uma ideologia independente capaz de enfrentar os capitalistas, e no fundo se convertia em uma mera busca de resultados, mantendo intacto o capital às custas de algumas melhorias salariais dos trabalhadores. Sobre este aspecto, utilizando-se do conceito de ideologia como conjunto de ideias, Lênin afirma:
(…) o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (porque a humanidade não elaborou nenhuma “terceira” ideologia; ademais, em geral, na sociedade cortada pelas contradições de classe, não pode nunca existir uma ideologia à margem das classes ou acima das classes). Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa fortalecer a ideologia burguesa. [121]
É importante compreender que o marxismo nunca foi uma filosofia que desemboca no economismo em busca de meras melhorias econômicas; a sua função é criticar e projetar a superação do capitalismo com a implantação do socialismo e posteriormente do comunismo. Logo, o marxismo deve ser estudado e desenvolvido com este objetivo.
O movimento de massas é de suma importância: o problema está na compreensão em torno do alcance das tarefas que este movimento deve desempenhar. No entender de Lênin, esta importante questão poderia ser tratada de duas maneiras: inclinar-se diante da espontaneidade, reduzindo a “organização política” a um papel de simples “criador do movimento operário”, ou perceber que aquele movimento espontâneo das massas impõe novas tarefas, teóricas, políticas e de organização, muito mais complexas do que eram antes. Sem esta organização política, as forças em movimento não conseguiriam formular por si mesmas os objetivos a serem alcançados.
Sobre o desenvolvimento da consciência da massa operária, Lênin destaca que
(…) A consciência da classe operária não pode ser uma verdadeira consciência política se os operários não estão habituados a reagir contra todos os casos de arbitrariedade e opressão, todas as formas de violência e abuso, quaisquer que sejam as classes afetadas; e a reagir, além disso, do ponto de vista social-democrata e não de qualquer outro. A consciência das massas operárias não pode ser uma verdadeira consciência de classe se os operários não aprenderem, com base em fatos e acontecimentos políticos concretos e atuais, a observar cada uma das classes sociais, com todas as manifestações da sua vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar na prática a análise materialista e a apreciação materialista de todos os aspectos da atividade e da vida de todas as classes, camadas e grupos da população. Quem orientar a atenção, a capacidade de observação e a consciência da classe operária exclusivamente (ou mesmo preferencialmente) para si própria não é um social-democrata, pois o conhecimento de si mesma por parte da classe operária está inseparavelmente ligado a uma clareza não só dos conceitos teóricos… ou melhor, não tanto dos conceitos teóricos, como das ideias elaboradas com base na experiência da vida política (…) [122]
Lênin fez este longo raciocínio para contestar os economicistas “que defendiam que se deveria conferir à própria luta econômica a tarefa de chegar à consciência política, através da organização sindical.” Dirá, então, que “isto se resume no culto a espontaneidade” porque a luta econômica reveste-se de um caráter político, mas de forma espontânea, sem consequências mais profundas.
A formação de quadros, nestas circunstâncias, inclina-se para a superficialidade teórica. A organização política que por si só não diferencia a natureza das lutas logicamente não tem preocupação em formar novos quadros com a qualificação necessária para ir além dos aspectos sensíveis da realidade. Por tudo o que foi dito até aqui, já é hora de nos perguntarmos: é possível formular uma política de quadros sem uma perspectiva estratégica, baseada apenas na prática de um movimento ou na luta espontânea das massas? Como se dará a luta política visando a transformação das estruturas sociais a partir apenas de um movimento de massas e de uma categoria profissional que desconhece a sua própria classe?
Concretamente, muitas das críticas e formulações feitas por Lênin se chocam em várias coisas com a prática e intenções atuais dos movimentos e organizações existentes, ou seja, há uma prática consensuada pela militância de conhecer parcialmente o marxismo, culminando em enormes dificuldades para analisar as contradições entre as classes dominantes e formular métodos para enfrentá-las. No entanto, propor-se, através da vontade de alguns quadros, a contribuir com a transformação social a partir do movimento espontâneo das massas sem uma organização política seria cair no desvio do movimentismo acreditando, ser este uma “força invencível” mesmo sem uma política consequente, sem um programa e sem uma estratégia revolucionária.
Tomando como instrumento um movimento de massas, mesmo indo além nas discussões das reivindicações econômicas, sem contudo avançar para um programa estratégico de tomada do poder, a política de quadros também fica confusa e deficiente, porque as tarefas que as lideranças devem executar ficam reduzidas aos interesses econômicos, sem preocupação e articulação com outras táticas que visem atacar as causas fundamentais dos problemas e a estratégia maior de levar as classes exploradas e as demais forças à conquista do poder.
Por causa destas limitações do movimento de massas que conhecemos, tem-se um grande obstáculo, pois na luta apenas pelo imediato as lideranças não se dão conta de que precisam preparar militantes para a luta revolucionária, já que eles não vislumbram as tarefas revolucionárias. Com isso, restringe-se o número estável de quadros nas fileiras, tendo em vista que “não há necessidade” de muitos militantes para levar as lutas particulares em frente.
As táticas, utilizadas no início da formação dos movimentos de massas para alcançar as vitórias, são imbuídas de uma profunda radicalidade, mas, com o passar do tempo, a repetição dessas mesmas táticas faz com que percam a eficiência e se convertam em fórmulas. Tendo em vista que os métodos para atingir as reivindicações passam a se reproduzir com menos vigor, os inimigos passam a compreender as deficiências e investem no enfraquecimento do movimento. Além de tudo, as massas têm dificuldades de permanecer por longos períodos em combate e, depois de algum tempo em ação, tendem a se recolher à espera de um momento mais propício para desenvolver as ações. Este fato não acontece com uma organização política com muitos quadros, integrada e em contato com os movimentos de massas, pois ela está sempre atenta na reformulação do conteúdo das táticas e dos métodos para realizar outros tipos de tarefas, sem nunca perder o espírito da ofensiva, mesmo que isto implique muitas vezes recuar na aplicação das táticas, para retornar com mais força.
Conclui-se, então, que os dois processos devem andar juntos, pois, se o “embrião da consciência” está na luta de massas, onde se faz a experiência concreta, a consciência maior deve ser “gestada” na organização política com a definição de novas tarefas, sempre com maior abrangência estratégica, nível mais elevado de experiência e de domínio dos conhecimentos científicos.
A organização da luta sindical e da luta política
A luta política com objetivo de conquistar o poder e transformar a sociedade é muito maior e muito mais complexa do que a luta econômica dos operários contra os patrões e contra o governo, dos sem-terra contra os latifundiários etc. Dessa maneira, a organização política revolucionária deve ser constituída com diferentes características da organização das forças que lutam apenas por conquistas imediatas. O conteúdo e a forma das organizações para cada fim são diferentes.
A natureza das tarefas do movimento e do instrumento político, por sua vez, também se diferencia. Para este último, as tarefas não se limitam à agitação política no terreno econômico, mas se voltam para a estratégia socialista, pois ele aproveita os vislumbres de consciência política que a luta econômica traz para elevar a consciência socialista, selecionar e envolver mais militantes e aproveitar a agitação política ampla para realizar grandes campanhas. O que chama a atenção é que Lênin não se limitou a analisar e apresentar as razões do porquê a classe operária não chegava por si só a alcançar a consciência política, mas avançou na forma de se chegar a isso:
(…) a consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, de fora da luta econômica, de fora da esfera das relações entre operários e patrões. A única esfera de onde se poderá extrair esses conhecimentos é a das relações de todas as classes e camadas com o Estado e o governo, na esfera das relações de todas as classes entre si.”
Mas, diferentemente de Kautsky que defendia que em termos de consciência todos os conhecimentos deveriam ser fisicamente “levados de fora para dentro” —, Lênin via os aspectos da totalidade da realidade como situações que deveriam ser percebidas e interligadas pelas lutas de massas. Por isso, valorizava a experiência como estágio embrionário da consciência, aprendido na esfera da luta localizada como fundamental, mas defendia que era preciso agregar informações e conhecimentos científicos produzidos universalmente inclusive por pessoas que não fossem oriundas da classe operária, como Marx e Engels, que, apesar disso, assumiram a perspectiva comunista ainda na juventude, oferecendo elementos para que as lutas se interligassem e as reivindicações abrangessem objetivos maiores do que os interesses particulares.
As limitações da visão parcial da realidade, próprias da luta localizada, seriam superadas através das revelações de todos os aspectos das contradições que os operários, ligados diretamente ao seu trabalho, não poderiam e nem tinham tempo para descobrir.
Por este raciocínio, conclui-se que uma força que lute unicamente por melhorias econômicas, e que se organize para isso, não conseguirá adquirir consciência política se não se interligar com outras categorias, lutar por objetivos mais gerais e buscar, através da ciência, as formas de conhecimento produzidas de fora daquelas tarefas restritas.
O interesse pelo conhecimento deveria ser despertado, pois não surgiria automaticamente das relações de produção às quais os operários estavam ligados. As formulações teóricas do materialismo e do socialismo eram elaborações produzidas através do estudo de indivíduos que assumiram a posição de classe dos trabalhadores e dedicaram suas vidas à luta contra a exploração e a dominação destes. O intuito desta produção teórica era contribuir para o desvendamento dos mecanismos de funcionamento do capitalismo que possibilitasse a sua destruição e a construção da sociedade socialista; por isso, os trabalhadores deveriam ter acesso a esta forma de conhecimento e deveriam se apropriar dele como já o tinham feito muitos intelectuais e quadros partidários.
A discussão sobre a consciência e a forma de organização dos operários ou do movimento de massas despertou um grande debate entre Lênin e Rosa Luxemburgo. O revolucionário russo via este aspecto “externo” — necessário para elevar a consciência do operário — como tarefa dos quadros do partido, pois para ele a luta pelo poder não poderia se dar somente pela ação das massas, mas devia estar presente nos quadros educados para os objetivos revolucionários. Rosa, por sua vez, ao defender a espontaneidade das massas, coloca que “(…) o proletariado em sua ação depende do desenvolvimento social da época, mas a revolução socialista não se faz tampouco fora do proletariado”. [124] Assim, entendia que através da mobilização das massas se criaria dentro delas uma “elite consciente que passaria a dirigir (dependendo das situações) como “vanguarda” consciente. No fundo, Rosa queria questionar a tendência de centralização do partido, embora reconhecesse a importância da organização partidária para formular a política revolucionária.
Lênin vai além e diz que, “para levar a consciência de classe aos operários, os conhecimentos políticos, o partido deveria ir a todas as classes da sociedade”, justamente porque o partido, formado por um número limitado de quadros e atuando de forma clandestina, não poderia se expor abertamente. Por isso, acentua que o dirigente político (preparado com conhecimentos formulados através do estudo fora da luta cotidiana) deveria comportar-se diferentemente do líder sindical, que “organiza, discute e ajuda a organizar a luta econômica contra os patrões e o governo”. O militante revolucionário deveria ser e ter como ideal o “tribuno popular”, que saberia reagir contra as arbitrariedades e opressões onde quer que se produzissem, qualquer que fosse a classe ou camada social atingida; que soubesse generalizar todos os fatos para compor um quadro completo da violência policial e da exploração capitalista; que soubesse aproveitar a menor ocasião para expor diante de todos suas convicções socialistas e suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance histórico da luta emancipadora do proletariado. [125]
A distinção de tarefas entre o líder sindical e o tribuno demonstra que cada organização deve ser estruturada de acordo com os objetivos que possui. A pergunta que poderíamos nos fazer é: que tipo de tarefas devem ser desenvolvidas em um movimento de massas para não deixá-lo afogar-se no mar da simples espontaneidade?
Lênin, quando caracteriza o militante político como “tribuno”, diferentemente do militante sindical, quer chamar a atenção ao fato de que ambas as tarefas são importantes, mas que um atua apenas em uma categoria e a outra relaciona-se com diferentes categorias e classes.
Dando continuidade a esta reflexão, e comprovando as dificuldades estruturais existentes de se mover e atingir a população, Lênin pergunta: “Como ir a todas as classes da população? E como fazer?” A partir das necessidades colocadas, ele destaca quatro formas: “Devemos ir a todas as classes da população, como: teóricos, propagandistas, agitadores e organizadores”, sendo que nestas quatro formas deveriam ser extraídas as tarefas específicas e concretas.
Todos esses elementos políticos e orgânicos, na opinião de Lênin, deveriam desembocar nas tarefas da organização partidária, tendo um caráter de vanguarda que, segundo ele, “não é apenas o destacamento avançado, é preciso proceder de forma que os demais destacamentos se deem conta e sejam obrigados a reconhecer que marchamos à frente”. [126] Não se trata de uma marcha imposta, mas, sim, do acerto das táticas que permitem avanços. Com isto, as forças dirigentes ganhariam respeito e apoio das demais forças.
Para ele, a função do partido, por meio dos seus quadros clandestinos, era de ajudar a organizar as grandes massas; caso contrário, organizando apenas a classe operária, não poderia jamais ser uma vanguarda. Somente a colaboração de todos os setores sociais na realização da política estratégica poderia levar as forças organizadas ao poder. Por esta razão, era na luta sindical que se poderia ampliar a organização menos clandestina, fortalecendo a luta contra os patrões. Entretanto, devido à perseguição policial, a organização dos revolucionários não deveria ser muito extensa, mas, sim, o mais clandestina possível. Como as organizações de massa eram mais amplas e faziam a luta econômica por meio de protestos, greves, mobilizações em geral, elas teriam dificuldade de desenvolver tarefas conspirativas.
As tarefas do partido entre as massas eram fundamentalmente propaganda, através de publicações ou de discussões feitas no seio das lutas econômicas, sem pôr em risco a organização ampla, os operários.
A pergunta que Lênin faz é:
Como conciliar essa contradição entre a necessidade de se contar com efetivos numerosos e o regime clandestino rigoroso? Como fazer com que as organizações profissionais sejam o menos clandestinas possível? (…) em geral, há apenas dois caminhos: ou a legalização das associações profissionais (que em certos países precedeu a legalização das associações socialistas e políticas) ou a manutenção da organização secreta, mas tão “livre”, tão pouco formalizada, tão lose (livre, ampla — inglês], como dizem os alemães, que para a massa dos membros o regime clandestino fique reduzido a quase nada”. [127
Esta questão, se deviam ou não legalizar as organizações, era muito polêmica; um exemplo são as associações de operários que, na Rússia, estavam proibidas pelo governo. Para Lênin, esse processo já estava em andamento e poderia ajudar a organização política na medida em que estes espaços fossem aproveitados para arregimentar mais operários para a causa socialista. Era importante também reforçar a organização dos sindicatos profissionais, onde se poderia fazer uma ampla agitação política, o que, porém, não diminuía a responsabilidade de se manter a linha revolucionária e a preparação da insurreição. A legalização de algumas formas organizativas, quando possível, servia para ampliar a ofensiva, e não para se dobrar diante da legalidade.
Sobre a organização dos revolucionários para a realização do trabalho de base e conspirativo:
Um pequeno núcleo compacto — composto dos operários mais firmes, mais experimentados e provados, com delegados nos principais bairros e que de modo rigoroso se vincule clandestinamente à organização dos revolucionários — poderá perfeitamente, com a mais ampla colaboração da massa e sem qualquer regulamentação, realizar todas as funções que competem a uma organização sindical e, além disso, realiza-las exatamente de acordo com os objetivos da social-democracia. [128]
Com esta forma de se organizar, sem regulamentação, nem membros declarados — “sem membros”, dirá Lênin —, seria possível organizar os revolucionários e fazer a ligação entre a massa e a organização política, sem chamar a atenção da repressão.
O que é importante perceber é que Lênin vai desenvolvendo a teoria da organização a partir da realidade concreta e colocando os quadros de acordo com as tarefas concretas, seja na área sindical, seja na luta conspirativa. Conclui-se, então, que através disso os quadros seriam qualificados de acordo com as tarefas designadas pelo partido e avançariam permanentemente, pois, dentro da estratégia estabelecida, as tarefas iriam se multiplicando e ficando cada vez mais complexas.
Sobre a carência de quadros
Desde que foi desencadeado, o processo revolucionário russo teve poucos quadros até o momento em que tomaram o poder e iniciaram a organização do socialismo. Lênin dedicará muita energia para convencer o partido de que deveria avançar na política de multiplicação de quadros. Em uma carta à Bogdanov, ele destaca:
Necessitamos de forças jovens. Aconselharia fuzilar ato contínuo quem se permitia dizer que não há gente na Rússia. Na Rússia há multidões de pessoas. O que falta é recrutar a juventude com maior amplitude e audácia, com maior audácia e amplitude, cada vez mais, com maior amplitude e com maior audácia sem temer (…) Lançai borda afora os velhos costumes da imobilidade, do respeito às hierarquias etc. Fundai com jovens centenas de círculos e estimulai-os para que atuem com toda a energia (…) [129]
No seu entender era preciso unir e fazer entrar em ação com rapidez desesperada todos os homens de iniciativa revolucionária: “Não temais a sua falta de preparação, não temais ante a sua inexperiência e insuficiente desenvolvimento”. [130]
Por estas afirmações, percebe-se que a organização revolucionária tinha necessidade de integrar mais pessoas que assumissem as tarefas através dos círculos ou núcleos; à medida que se inserissem, e conscientes de suas responsabilidades, se qualificariam.
Em outro momento, Lênin dirá que a sociedade oferece muitos indivíduos para a luta, mas a fraqueza da organização não consegue aproveitá-los. [131] Porém, as lideranças queixavam-se da falta de homens, embora os homens existissem em quantidade. As massas e as classes a cada ano ofereciam um número sempre maior de pessoas descontentes, prontas para cooperar. Mas era preciso ir ao encontro dos operários, dos camponeses e da juventude, pois lá encontrariam a base para formar mais quadros. [132]
Na questão sindical, Lênin compreendia que a ligação do partido com a massa de operários era condição fundamental para o êxito de qualquer atividade. Dever-se-ia criar de cima abaixo, na organização do sindicato, um sistema de camaradas responsáveis e capazes de exercerem as suas funções. Isso quer dizer que não importava o tipo de estrutura nem tampouco a sua função, se política ou sindical: o que importava é que tinha que ter seriedade e eficiência em todos os círculos e instâncias, das mais altas às mais baixas.
Vemos, portanto, que Lênin elege a execução das tarefas e a experiência como elementos fundamentais para a qualificação dos quadros, porém não se detém nisso, pois o estudo era a tarefa determinante. Ele destaca assim que era preciso incorporar “especialistas” nas atividades, em conjunto com os operários, ou seja, a relação direta do intelectual com a atividade prática. Estes especialistas, naquele momento, logo após o triunfo da revolução, eram ainda descendentes de burgueses ou pequeno-burgueses que, no entender do Lênin, eram necessários nas atividades porque detinham o conhecimento, mas deviam estar sob o controle operário.
Antes do triunfo da revolução, Lênin procurou a saída em relação à ligação permanente do militante político com o trabalhador produtivo nas fábricas de onde tirava o seu sustento, não lhe sobrando tempo para assumir certas tarefas organizativas e de militância:
(…) todo agitador operário que tenha algum talento e que seja uma ‘promessa, não deve trabalhar 11 horas na fábrica. Devemos cuidar para que viva por conta do partido e possa, no momento preciso, passar à ação clandestina, mudar de localidade, pois de outro modo não adquirirá grande experiência, não alargará os seus horizontes, não se poderá manter sequer por alguns anos na luta contra a polícia. Quanto mais ampla e profunda se tornar a ascensão espontânea das massas operárias, mais se destacarão não só os agitadores com talento, como também os organizadores e propagandistas e militantes ‘práticos’ mais dotados; ‘práticos’ no melhor sentido da palavra (que são tão escassos entre os nossos intelectuais, em sua maioria apáticos e desatentos à maneira russa). [135]
Há então que se perceber a amplitude da visão de Lênin sobre a projeção e colocação de quadros nas atividades produtivas, políticas, organizativas etc. Mas o que aparece como primeiro aspecto é a experiência, o despertar através da prática, pois é na prática que entram as tarefas e a teoria política.
Para cada realidade é importante analisar qual é a melhor forma de desenvolver esta atividade de multiplicação de quadros, qual o método mais eficiente.
Características de um quadro
A partir do processo de desenvolvimento da revolução cubana, o comandante Ernesto Che Guevara [134] elabora de forma detalhada as características que um quadro revolucionário deve ter no processo de transformação e construção da sociedade socialista. Ele reafirma todos os aspectos desenvolvidos por Lênin, caracterizando a organização de vanguarda como “elemento catalisador” das forças progressistas, em que o quadro político atua sem pretensões de exercer cargos, mas, sim, pela consciência do dever, destacando que “na atitude dos combatentes se vislumbrava o homem do futuro”. Por essa linha é que chegará à definição do “homem novo” que deveria ser “forjado no dia a dia”.
Segundo Che, somente quem participa do processo revolucionário pode entender a necessidade da ligação dialética que há entre o indivíduo e as massas, e acrescenta que é importantíssimo saber escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Para manter o estímulo moral da massa, e também dos militantes, Che compreende que é necessário o desenvolvimento de uma consciência em que os valores como dedicação, honestidade, disciplina, espírito de sacrifício etc. adquirem novas categorias.
O quadro, além de saber “a velocidade” que deve dar aos passos concretos, deve ir à frente orientando a massa, principalmente através do exemplo concreto; e é o partido a organização que deve integrar os quadros. Do partido devem fazer parte “os melhores quadros”. Como em uma sociedade os quadros são poucos, ele destaca que “este partido é minoritário, mas de grande autoridade pela qualidade de seus membros”. E acrescenta: “nossa aspiração é a de que o partido seja de massas, mas isso quando as massas tiverem alcançado o nível de desenvolvimento da vanguarda”.
Qualidades específicas de um quadro
Com o intuito de ir construindo o homem novo, Che, em seus discursos, através de textos, e principalmente pelo seu exemplo, foi formulando explicações, orientações e conceitos do que é um quadro e qual deve ser seu comportamento. Embora ele destaque estas características de forma explicativa, para facilitar (mas talvez com prejuízo de compreensão e interpretação) elencamos de forma resumida e pontuada o que, no entender do Che, seria um quadro político revolucionário. Eis as características de um quadro:
• ter sentido do dever;
• ter sensibilidade para todos os problemas dos trabalhadores;
• ter espírito inconformado;
• ter interesse em compreender e conhecer sempre mais sobre todas as coisas;
• ter vontade de fazer novas experiências;
• propor-se a ser sempre o primeiro e lutar por isso. Sentir-se incomodado quando se ocupa outro lugar;
• ser exemplo vivo para poder orientar os demais trabalhadores esteja onde estiver;
• ter espírito de sacrifício, procurando fazer as tarefas mais difíceis e contribuindo com os outros que possuem dificuldades em realizar suas tarefas;
• estar sempre atento a tudo o que acontece e prever o que irá acontecer;
• ter um comportamento ético;
• esforçar-se para expressar o que de melhor existe no ser humano;
• ter dedicação ao estudo;
• ter dedicação ao trabalho produtivo;
• ter espírito de solidariedade;
• ter visão de conjunto, sem se apegar cegamente à parte ou ao território;
• ter entusiasmo permanente;
• preservar a dignidade;
• ter conhecimento profundo da realidade em que atua;
• saber interpretar os anseios da massa;
• saber comunicar-se bem;
• portar e expor virtudes que cativam a massa;
• ter disciplina voluntária como parte da personalidade e do comportamento;
• ter autocontrole físico, fisiológico, emocional etc.;
• saber formular propostas sobre a realidade;
• elaborar métodos de trabalho;
• saber ouvir as aspirações do povo e transformá-las em ideias e em propostas;
• conhecer as deficiências e debilidades pessoais;
• ter capacidade de análise e saber orientar-se por conta própria
• ser criativo diante das dificuldades;
• ter fidelidade à causa;
• ter firmeza ideológica para não retroceder;
• saber orientar;
• cultivar valores como humildade, honestidade, franqueza, seriedade, amizade etc.;
• conhecer e combater vícios e desvios como personalismo, arrogância, prepotência etc.;
• evitar privilégio individual;
• tratar os inimigos com rigor sem rebaixar a natureza humana;
• preocupar-se com a segurança e com a vida dos militantes.
Podemos ver que estas características, qualidades e valores, que são destacados para serem parte integrantes da vida de um quadro, não podem ser adquiridas imediatamente, pois apenas será possível dentro de um processo organizado e dirigido de forma estratégia por uma organização de vanguarda.
É nesse processo que vão se desenvolvendo no militante, através da execução prática das tarefas, a maturidade política, ideológica, ética, moral etc. Por isso, a história da luta de classes é também a história dos indivíduos, ambas construídas coletivamente.
O que é importante levar como conclusão são os ensinamentos históricos que facilitam a compreensão, a correção e o avanço na formulação de saídas concretas para nossos grandes desafios fundamentalmente organizativos. Assim, vejamos:
• como formar quadros no atual estágio da luta de classes, quando não há uma estratégia política definida que ultrapasse a luta econômica e conduza a luta política com objetivos superiores e abrangentes?
• como formar quadros se há uma enorme confusão em torno da ideologia socialista e, de certa forma, ela parece ser até desnecessária, na medida em que se leva em frente apenas as lutas espontâneas?
• como levar em frente a formação de quadros se a classe carece de organização política que se proponha e se comprometa com a transformação das estruturas sociais?
• por fim, como formar quadros se as tarefas concretas que a luta econômica exige são pouco complexas, corporativistas?
O que nos parece é que a política de quadros deve vir embutida nas necessidades concretas, em que o cumprimento de tarefas concretas de diferente caráter obrigue a envolver cada vez mais pessoas para que se possa construir esta obra coletiva que é a transformação social, política e econômica do país. Resta, portanto, debruçarmo-nos sobre estas questões com prioridade para, posteriormente, discutirmos e implementarmos a formação de quadros; com toda certeza, esta tarefa será muito mais fácil do que imaginamos.
Referências
[117] TSÉ, TUNG, Mao. Obras Escolhidas. t. IV. Lisboa: Proletário Vermelho, 1975, p.162-165.
[118] LENIN, V.: LUXEMBURGO, R. Partido de massas ou partido de vanguarda: polêmica entre Rosa, Lênin. São Paulo: Nova Stella, 1985.
[119] LENIN, V. O. O que fazer? Questões candentes do nosso movimento. Ed. cit., p.88.
[120] Idem, p. 93.
[121] Idem, p. 100.
[122] Idem, p. 134.
[123] Idem, p. 145.
[124] GUÉRIN, Daniel. Rosa Luxemburgo e a espontaneidade revolucionária. São Paulo: Perspsectiva, 1982.
[125] Op, cit, p. 63.
[126] Op, cit, p. 63.
[127] LENIN, V. I. Que fazer? Questões candentes de nosso movimento. Ed. cit., p. 183.
[128] Idem, p. 189.
[129] LENIN, V, I. A formação dos quadros. Lisboa: Seara Nova, 1977, p. 89.
[130] Idem, p. 89.
[131] Cf. LENIN, V. I. Que fazer? Questões candentes de nosso movimento. Ed. cit., p. 198
[132] Cf. LENIN, V. I. “Discurso pronunciado na reunião do soviete de Moscou de deputados operários e soldados vermelhos”. In: A formação de quadros. Lisboa: Seara Nova, 1977, p. 147;
[133] LENIN, V. I. Que fazer? Questões candentes de nosso movimento. Ed. cit., p. 204
[134] GUEVARA, CHE. Obras de Che Guevara: textos revolucionários, ed. cit.