Uma das principais características de um quadro é saber interpretar a realidade para poder transformá-la. Dessa forma é necessário entender que um quadro, acima de tudo, deve ter um elevado nível de conhecimento e deve ter assimilado os objetivos estratégicos de sua organização para atuar, por meio de um projeto em constante elaboração, e para alcançá-los através da práxis coletiva. Segundo Mao Tsé-tung, “ser dirigente envolve duas responsabilidades principais: formular ideias e empregar os quadros”. [135]
Dentro de uma organização, os níveis de consciência dos militantes são diferenciados de acordo com a capacidade de compreender a realidade para transformá-la. Muitas vezes, esta diferenciação se faz também pelos níveis de “consciência social e política”. Por nível inferior, compreende-se a consciência que está em um grau simplificado de compreensão da realidade, advinda da própria convivência social, formada basicamente pela experiência. O nível superior abrange uma consciência mais ampla que estabelece relações universais entre as partes e o todo. Neste sentido, lasi resgata de Marx as relações entre a “consciência em si” e “consciência para si”:
(…) Portanto, em sua luta revolucionária, não basta o proletariado assumir-se enquanto classe (consciência em si), mas é necessário se assumir para além de si mesmo (consciência para si). Conceber-se não apenas como um grupo particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante da tarefa histórica da superação dessa ordem. [136]
A convivência social, com todas as suas implicações, tem o poder de formar a consciência social de cada indivíduo, mas isso não é suficiente para a transformação da realidade. Essa consciência social, sem perder as suas características funcionais, como alimentar-se, vestir-se, reproduzir-se etc., será elevada para consciência política à medida que “o ser social” se propuser a desenvolver ações políticas com a finalidade de transformar a ordem estabelecida e construir uma sociedade em que “o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto para o livre desenvolvimento de todos”. [137]
Toda organização política deve ter claro que o processo de formação de um quadro depende de três aspectos fundamentais, a saber: o programa de formação, a política de quadros e a colocação destes nas atividades concretas.
Enquanto a formação de quadros pode ser vista como um programa de formação, no qual se preveem conteúdos, metodologias e períodos de estudos intensivos, a política de quadros é, em parte, a diretriz da formação destes, mas vai além, uma vez que se deve prever a colocação dos quadros dentro de um projeto, de onde vieram e onde irão desempenhar o papel de condutores das lutas pela transformação da realidade, atuando nas diversas frentes de ações e combinando aspectos da realidade local com a política universal da classe.
A formação e a colocação dos quadros é o desenvolvimento de um processo lento, cujo ponto de partida é sempre a consciência social do indivíduo, adquirida pela experiência de vida e de envolvimento na luta de classes. O aprendizado da teoria se dá na medida em que a prática individual e coletiva passa pela reflexão, que revela e apresenta novas possibilidades de avanços, em que se encaixam as novas tarefas. Logo, não pode haver formação de quadros sem considerar a relação estreita entre prática e teoria.
A projeção de quadros está intimamente ligada com a política de quadros. Poderíamos dizer que é o planejamento que incorpora em si os passos para ir colocando os militantes em tarefas e cargos cada vez mais elevados, de acordo com a capacidade e a qualificação adquirida. Projetar significa impulsionar para frente, responsabilizar e fazer com que os mais capazes integrem, cada vez mais, os círculos mais elevados de organização e de direção do instrumento político.
A formação do quadro através da práxis
Ao falar de história, em A ideologia alemã, Marx e Engels afirmam que o primeiro pressuposto é que os homens devem estar em condições de viver para poderem “fazer história”. Para tanto, as condições básicas seriam comer, beber, morar, vestir e algumas coisas mais e concluem dizendo que
O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e a verdade é que esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, tal como há milhares de anos, tem de ser realizado dia a dia, hora a hora, para ao menos manter os homens vivos. [138]
Ao verificar primeiro a existência das necessidades vitais para iniciar a história, o ser humano adquire consciência de si e de seu grupo social. Sendo agora um ser social, e por ter desenvolvido a capacidade de pensar, se propõe a produzir os meios para buscar as soluções para cada uma das necessidades. Ao respondê-las para si, atrai os demais seres para que juntos ampliem as soluções das necessidades criadas. Nesse processo, as respostas serão sempre os resultados das condições encontradas no próprio meio. Para tanto, em primeiro lugar, o ser humano utiliza a imaginação para antecipar na ideia aquilo que vai fazer ou objetivar: “Essa antecipação na consciência do resultado provável de cada alternativa possibilita às pessoas escolherem aquela que avaliam como sendo a melhor. Escolha feita, o indivíduo leva-a à prática, ou seja, objetiva a alternativa”. [139] Diante das várias alternativas imaginadas, o ser executante não poderá realizá-las ao mesmo tempo: terá que escolher e definir-se por uma delas, escolhendo aquela que lhe parece mais lógica. Dessa prévia ideação depende o resultado do esforço empreendido, que poderá suprir a necessidade, tanto de forma parcial quanto total; ou, inclusive, ampliá-la.
Mas o pensar e o fazer para objetivar soluções necessitam de tempo, pois é ele quem irá garantir o aperfeiçoamento das características do ser social que cresce em qualidade de conhecimentos e em habilidades. As habilidades mentais e físicas desenvolvem-se através do trabalho em relação à transformação da natureza ou na aplicação de esforço físico para qualquer outra atividade não produtiva. É através disso que ocorrem as objetivações.
Ao pensar, fazer, repensar e refazer, o ser social habilita-se para enfrentar as novas contradições que surgem, e isso não pode ocorrer com os demais seres vivos pelo simples fato de que eles não têm a capacidade de antecipar na mente o que vão fazer no futuro.
O ser humano inventa tanto os objetos que necessita para suprir as carências físicas quanto os instrumentos que os produzem. Ao produzir os próprios meios de vida, o ser social objetiva planos (combinações de alternativas) e, com isso, organiza a própria cultura. A cultura apresenta-se como o resultado das experiências feitas através da convivência social, através da qual se forma a consciência social, política e histórica de um grupo social.
Tendo em vista que tanto as necessidades individuais quanto sociais necessitam de invenções, o indivíduo inserido em uma determinada sociedade, ou grupo social, tende a inventar para o uso de todos. Este processo é conhecido como generalização do conhecimento. “Todo ato humano tem por base a evolução passada da sociedade, a situação presente concreta em que se encontra o indivíduo e suas aspirações e seus desejos para o futuro. Não há ato humano fora da história, fora da sociedade”. [140] Se um objeto inventado não tiver serventia, será desprezado pela coletividade. No caso de o objeto inventado não ser usado porque a sociedade desconhece os mecanismos de uso, o inventor terá de oferecer a essa coletividade não só as técnicas de produção que, implicitamente, se encontram no objeto, como também as maneiras de manuseá-lo.
Assim, durante a história da humanidade, as gerações posteriores se apropriaram tanto das técnicas e dos objetos inventados quanto dos hábitos de fazê-los e dos costumes de usá-los, identificando-os através dos nomes.
A cultura, vista como um “conjunto” de relações, de descobertas e de valores a ser repassado para as finuras gerações, é entendida como uma exigência social. Aqueles que descobriram, inventaram ou desenvolveram o conjunto de aspectos que possibilitaram estruturar a vida social, fazendo as coisas e fazendo-se enquanto gerações, utilizando-se do recurso da práxis, serviram sempre de referência para a continuação da história. As práxis continuadas têm a função de fazer com que as descobertas não se percam, e sim prossigam com as novas gerações. Os quadros são, além de tudo, portadores da cultura anterior que permite fazer coexistir a tradição com a busca de alternativas no tempo presente.
A relação entre tradição e tempo presente como relação consciente da formação do quadro não ocorre somente na esfera do fazer material, ou seja, não se dá apenas pelo “conjunto” de práticas e técnicas apreendidas na vida produtiva; ela inclui também símbolos, valores, táticas e estratégias e demais conhecimentos históricos, políticos, filosóficos etc.
Segundo Lowy:
Para Benjamin, não se trata de substituir Marx pelo socialismo utópico: suas inúmeras referências ao materialismo histórico o demonstram suficientemente. Mas é questão de enriquecer a cultura revolucionária com todos os aspectos do passado portadores da esperança utópica. O marxismo não tem sentido se não for também o herdeiro e o executante testamentário de vários séculos de lutas e de sonhos de emancipação.”
É fundamental compreender essas questões porque, para organizar um processo de formação política de um indivíduo, com o objetivo de torná-lo um ser revolucionário, é necessário compreender primeiro sua formação social. O salto qualitativo que ele deve dar para cumprir a sua função política depende da base social e cultural que traz consigo de experiências anteriores. Colocar um quadro significa prepará-lo para ocupar um lugar diferenciador dentro da realidade social e, nela, ser capaz de formular métodos e estabelecer linhas de ação com o objetivo de transformá-la.
As prévias ideações para a escolha de uma alternativa para suprir uma necessidade material, como comer, vestir, morar, não são as únicas que um ser social deve processar em sua mente. Desde que surgiu a vida em sociedade, criaram-se necessidades não produtivas que passaram a ser muito importantes, como as que estão voltadas para a organização, educação, elaboração, administração etc.
Desta maneira, com algumas diferenciações é que podemos vincular as prévias ideações também às questões políticas, administrativas, educativas etc., no sentido de que, se a escolha de uma alternativa para solucionar o problema da fome é o plantio de um vegetal e este poderá ser cultivado da mesma maneira por várias gerações, na política as ideações novas seguem as circunstâncias históricas, nas quais se insere a capacidade humana de reagir sobre as contradições apresentadas. A escolha para a aplicação das alternativas formuladas depende das condições de cada momento histórico.
Na luta pela sobrevivência, o ser social inventa o objeto e o instrumento que o produz. Na sequência, terá de inventar instrumentos para produzir novos instrumentos que, por sua vez, produzirão os novos objetos de que necessita, pois as necessidades sociais a cada instante vão se ampliando e se multiplicando. Da mesma forma que o homem intervém na natureza — por meio do trabalho — ele intervém na luta social e política, seja para manter a ordem, seja para transformá-la. Neste sentido, é necessário produzir o instrumento que possibilite a realização do objetivo político, formular esse objetivo e escolher as alternativas ou táticas para alcançá-lo, pois sua construção se dá a partir das necessidades das mudanças. O instrumento político, que produz novos instrumentos políticos e organizativos, surge dos conflitos sociais.
Compreendemos que uma necessidade política não permanece estática após a invenção de um instrumento para satisfazê-la. As necessidades se ampliam porque as contradições se ampliam; logo, o instrumento precisa ampliar a sua potencialidade, elaborar novas táticas e métodos para responder às novas situações. A continuidade da formação dos quadros se dá também pelo aprimoramento do instrumento que estabeleceu na sua origem os objetivos que queria alcançar, mas que também ganharam novos entendimentos.
A práxis surge como conteúdo das compreensões das necessidades políticas. Ela contribui para assimilar as alternativas já propostas e ajuda a formular novas alternativas. Em seguida permite que se avance na escolha das tarefas, juntamente com a distribuição das responsabilidades, acompanhadas de uma constante avaliação para verificar se a prática está em sintonia com a finalidade estabelecida.
Não se trata de que todos os quadros precisam idealizar as alternativas (estratégia e táticas) para se considerarem seres da práxis, mas o conjunto dos quadros precisa compreender as alternativas formuladas e envolver-se na realização das tarefas concretas, criando seus próprios métodos de execução. Podemos citar como exemplo uma finalidade em forma de alternativa a ser definida em um congresso no qual estão reunidos representantes de milhares de membros de uma organização. Grande parte da base social da organização não participou de tal definição, mas precisa compreendê-la e assumir, pelo princípio da “unidade de ação”, a responsabilidade de implementar tal finalidade.
Entretanto, as alternativas para suprir as necessidades criadas pelas contradições políticas são muito mais complexas do que aquelas engendradas para responder às necessidades econômicas. A dialética não é um mero exercício de imaginação de possibilidades associadas aleatoriamente; ela exige uma análise profunda das relações entre as contradições para, assim, buscar, através do conhecimento já posto, novas respostas e novos conhecimentos.
Cada geração deixa para as gerações vindouras instrumentos e objetos prontos que serão utilizados na produção de novos objetos que atendam às novas necessidades, mas não somente isso, pois as gerações passadas não entregam apenas as riquezas produzidas; entregam também uma sociedade organizada com normas e valores. Por isso, repassam como parte da herança cultural mitos, superstições, costumes, crenças, relações de gênero etc. que precisam ser enfrentados e modificados com o tempo. Não é pelo fato de um militante entrar para uma organização política, participar de algumas lutas e dirigir-se para um curso de formação que tudo aquilo que ele trouxe na consciência, como acúmulo anterior, será diluído automaticamente.
Nesse sentido, entram em discussão, na formação, as funções sociais anteriores do indivíduo e as funções sociais e políticas que ele terá que desenvolver a partir da elevação do seu nível de consciência, ou seja, compreender que finalidade tinha enquanto ser social antes de se inserir na organização e que finalidade terá após inserir-se. Em geral, ao entrar para a luta política, os militantes buscam se colocar enquanto sujeitos das mudanças nas necessidades da sociedade.
Na organização política, a práxis é a ligação consciente entre o indivíduo e a realidade a ser transformada, tendo como mediação o instrumento político, o programa, as táticas e os métodos. Ao ser impedido de se apropriar da própria organização, no caso de ser representado pelos outros o tempo todo, ele se aliena, se separa das diversas funções que são desenvolvidas e já não compreende nem os resultados alcançados nem a si próprio enquanto militante.
A práxis é uma categoria de referência fundamental na formação dos quadros, pois, além da função de interpretar o mundo, contribui para apontar tanto os caminhos das transformações quanto a forma de caminhar por eles. A práxis impede que ocorra a alienação política, pois o sujeito da ação é o mesmo sujeito da reflexão. Assim, podemos dizer que a diretriz da política de formação e projeção dos quadros é a práxis.
A práxis, no cotidiano, pode estar tanto nos grandes movimentos de transformação quanto nos pequenos afazeres que conduzem à produção dos meios de vida para a subsistência do quadro em ação. Por isso é que não pode ser considerada uma simples atividade da consciência, do pensar e refletir sobre as coisas, mas uma atividade reflexiva e ao mesmo tempo produtiva, de objetos e objetivos, do próprio ser social e político.
A relação entre teoria e práxis é para Marx (teórica e prática; prática na medida em que a teoria, como guia da ação, molda a atividade do homem, em particular a atividade revolucionária; teórica na medida em que essa relação é consciente. [142]
Essa maneira de interpretar leva a integrar o pensar com a realidade. As transformações da realidade exigem meios e condições propícias para serem realizadas. No dizer de Vázquez, o elemento diferenciador, que conduz ao desfecho da interpretação, é a práxis, de modo que “toda práxis é atividade, mas nem toda atividade é práxis”. [143] Para este autor, a atividade é o conjunto das ações ou atos que modificam uma matéria. Mas onde está a diferença de a atividade ser ou não uma práxis? Ambas são atividades, porém somente aquela que tem finalidade preestabelecida se configura como práxis: “Pelo fato de propor-se objetivos, o homem nega uma realidade efetiva, e afirma outra ainda não existente.” [144]
Chegamos à essência da questão: não basta que os quadros se envolvam em atividades para demonstrarem concretamente que são quadros. A atividade que não detém uma finalidade clara na luta de classes e que não provoque mudanças estruturais não é práxis, é tarefismo.
É comum vermos, nos movimentos sociais e organizações políticas, militantes com suas agendas e anotações de tarefas relacionadas por dias e até por todas as horas do dia. Já não estudam, pois os compromissos não permitem que parem por alguns dias. Como a consciência é movimento, tanto pode girar para frente quanto para trás. Quando gira para frente, com finalidade definida, é a práxis. Quando gira para trás, no tarefismo, é a regressão e a desqualificação do próprio executor. Engana-se quem pensa que com a experiência do ativismo se qualifica; na verdade, aprende, mas seu aprendizado com o tempo não incomoda a mais ninguém, a não ser àqueles que querem seu cargo.
Voltemos ao ponto de origem da formação do ser social. As necessidades reais determinam as respostas a serem dadas pelo ser social, que, ao estabelecer sobre a realidade uma finalidade, antecipa em sua consciência o resultado. É no decorrer desse fazer e fazer-se que se configura o desenvolvimento da práxis como ação e reflexão consciente. No entanto, para que seja realmente práxis, entre o pensamento e a ação, há que existir a finalidade objetiva estabelecida pela prévia ideação que referenda o que se quer alcançar. Na medida em que o ser humano não estabelecer este processo de relações em si — seja pela sua “inutilidade” produtiva, seja pela alienação no processo de produção —, regride enquanto gênero. Na política, regride enquanto sujeito.
Lênin nos fornece um belo argumento para esta questão quando trata do elemento político, destacando: “A consciência socialista de hoje não pode surgir senão à base de um profundo conhecimento científico». [145] Para ser um quadro revolucionário, não basta ter qualquer consciência; é necessário ter identidade revolucionária, e esta somente pode surgir a partir do conhecimento científico da realidade que se diferencia do senso comum e do idealismo. Portanto, não é pelo ativismo que se chega à consciência socialista, mas pelo estudo, pelo planejamento consciente da prática e também por ela própria.
A continuidade na formação de quadros
A consciência política de um quadro se desenvolve a partir da experiência e dos conhecimentos empíricos e científicos com a finalidade da transformação social.
O processo de produção do conhecimento, por sua vez, é dinâmico, não dogmático. Para cada momento histórico geram-se contradições antagônicas e não antagônicas, e, com isso, o conteúdo das ideias sofre modificações, pois elas precisam acompanhar o movimento das mudanças concretas. Existem determinadas formulações que, num primeiro momento, podem ser consideradas revolucionárias, mas que, num momento posterior, estagnam como se fossem dogmas. Podemos tomar como exemplo o princípio da direção coletiva. No momento em que este princípio foi tomado como referência organizativa pelos movimentos sociais, na década de 1980, no Brasil, significou uma inovação revolucionária. Até então se conheciam apenas organizações de estrutura verticalizada, em que o presidencialismo era o regime preferido pelos partidos, sindicatos e associações de bairros.
O princípio da direção coletiva questionou as práticas burocráticas e administrativa, centralizadoras do poder; eliminou o cargo de presidente e distribuiu as tarefas entre os coletivos de direção. Porém, com o crescimento dos movimentos, o conteúdo deste princípio foi ficando limitado, isto porque, no início, o círculo de direção representava universalmente uma quantidade de massas muito pequena, pois era o início das lutas específicas, nas quais o membro da direção estava integrado; conseguia consultá-la e remetia a ela questões para serem debatidas. Ao triplicar a quantidade de pessoas que passaram a integrar os movimentos, esses dirigentes já não podiam consultar diretamente as massas e, desta maneira, o princípio foi se convertendo em um dogma burocrático, como se a estrutura que nasceu horizontal passasse a ser vertical, da mesma forma como funcionavam as entidades sindicais.
Para que a direção seja coletiva, não basta não ter presidente e dividir as tarefas entre os membros do círculo de direção: é necessário que os diferentes círculos, desde a base até a direção principal, se interliguem e, conforme as massas aumentam, aumente-se também a quantidade de membros no círculo de direção.
Estes aspectos somente são captados pelos quadros quando mantêm relação orgânica com a base e com os conhecimentos científicos. Politzer, ao estudar o método dialético com os operários franceses, na década de 1950, descreveu em seu livro, Princípios fundamentais de filosofia, que: “A dialética considera as coisas e os conceitos no seu encadeamento; suas relações mútuas, sua ação recíproca e as decorrentes modificações mútuas, seu desenvolvimento, sua decadência”. [146] Nesse sentido, os quadros não podem estar alheios à realidade, pois fazem parte dela e, ao se proporem transformá-la, precisam transformar a si próprios.
O processo de transformação da realidade e a formação dos quadros acontecem no mesmo movimento das mudanças. Há cumplicidade entre a história e o sujeito histórico, no sentido de que, enquanto o próprio sujeito social se faz, a história também é feita.
Para alcançar sua finalidade histórica, o sujeito individual precisa converter-se em um sujeito coletivo, lançando mão de um instrumento organizativo que possibilite não somente refletir e agir sobre a realidade, mas, também, empenhar-se com todas as forças para transformá-la e, junto, transformar-se, para ser, enquanto militante, ainda melhor do que já é.
Como afirmou Carlos Marighella na década de 1960, ao analisar o processo da revolução brasileira: “A direção ideológica é a condição fundamental para o êxito da direção política”. [147]
Sabemos que o movimento é não apenas a maneira da matéria ser e se apresentar, mas é também, sob essa forma que se manifestam as definições políticas, as elaborações metodológicas, as formulações táticas e conteúdo dos valores. Quando isto não ocorre, as práticas políticas perdem a noção de sua ineficiência.
Sempre que na luta de classes as forças mudam a sua colocação para atacarem com mais vigor os seus inimigos, não apenas a posição física das forças deve mudar, como também a qualidade da organização também deve evoluir. A forma de ser do instrumento deve estar em constante evolução, assim como o conteúdo das táticas. É o conhecimento que assegura a linha correta das ações, e não a simples autoridade da instância maior do instrumento.
A formação dos quadros, em primeiro lugar, se dá pela experiência social e política que estes desenvolvem em toda a sua existência. Nesse sentido, as diversas áreas do conhecimento entram como mediações teóricas para a qualificação das práticas. Os conhecimentos já elaborados expressam o acúmulo histórico dos estudos feitos sobre as práticas anteriores. É no fazer concreto que nos damos conta se o conhecimento produzido é suficiente para responder aos desafios colocados pelas contradições.
Os militantes, principalmente os de origem camponesa, que se destacam enquanto lideranças, possuem capacidades excelentes no campo das práticas organizativas, mas, por possuírem baixo nível de escolaridade, possuem enormes dificuldades para lidar com a teoria e a literatura escrita em geral. Nesse sentido, a “análise concreta da situação concreta” deveria antes de tudo ser aplicada ao sujeito da formação que é o próprio militante, para que ele possa ser ajudado a superar as próprias deficiências, isto porque, numa mesma turma de militantes que estudam o marxismo, há diversos níveis de escolaridade, de capacidades de interpretação de textos e de compreensão concreta dos conteúdos.
Sobre isto, Ho Chi-Minh, um dos líderes da Revolução Vietnamita, relata um fato ilustrativo. Ele conta que, ao voltar de uma reunião, ao chegar no alto de uma colina, deparou-se com um grupo de jovens e de mulheres descansando. Ao perguntar de onde vinham, recebeu educadamente a resposta de que voltavam de “um curso de formação de quadros”. O velho dirigente deteve-se e perguntou sobre o que tinham estudado. E eles prontamente responderam que tinham estudado Karl Man. Mas ao insistir se haviam aprendido alguma coisa, percebeu que os jovens ficaram embaraçados e sem palavras, o que o levou a concluir que tinham perdido tempo indo ao curso. Com sua experiência, indicou a sábia metodologia:
(…) é necessário tomar os textos do marxismo-leninismo como documentos de base. No entanto, deve-se fazer uma escolha e reclassificar os textos, porque existem diferenças de nível entre os alunos, e, para cada categoria, são necessários documentos adequados. É inútil estudar o que não convém. (…) [148]
Certamente Ho Chi-Minh não estava dizendo que “o marxismo não convém”, mas, sim, que determinados textos não podem ser destinados para certos níveis de militantes que ainda possuem dificuldades de interpretação. Nesse sentido, os orientadores dos cursos, ao não levarem em conta a realidade — os diferentes níveis de compreensão dos militantes —, agem somente a partir da ideia abstrata que possuem de formação.
Enquanto a formação de quadros compreende um programa de formação, a projeção dos quadros corresponde a um método de colocação destes em atividades condizentes com o seu crescimento, nas quais eles vão adquirindo experiência no cumprimento de tarefas que lhes vão dando destaque.
Tanto as tarefas organizativas quanto as de coordenação exigem não somente o conhecimento de conteúdo e método para executá-las, mas também a experiência qualitativa que permite ao quadro demonstrar segurança naquilo que diz de forma clara e compreensível, com voz e postura que permitam aos ouvintes confiar naquilo que está sendo dito.
A projeção de lideranças tem início no trabalho de base, no exercício de pequenas reuniões e assembleias, na responsabilidade de expor algum tema para esclarecer o debate e defender propostas. Posteriormente, representar a organização em mesas propostas por outras entidades, procurando redigir um roteiro antecipado sobre o que vai falar e, assim, ir assumindo cada vez mais tarefas que exijam maior preparo e empenho.
A perspectiva de crescimento da organização determina também a perspectiva do crescimento dos quadros. Para cada período novo que se abre, novas tarefas surgem e novos conhecimentos devem ser buscados para realizá-las. Se uma organização cresce em quantidade, mas não cresce em qualidade, a tendência é que ela se desintegre, isto é, que seja superada pelas próprias contradições.
A pergunta que não pode deixar de ser feita em qualquer período, sob o risco de não acompanhar a dinamicidade das mudanças, é: qual é o caráter das tarefas a serem cumpridas hoje? Tarefas organizativas, tarefas políticas, tarefas metodológicas, técnicas, administrativas, tarefas ideológicas de comunicação, agitação e propaganda, tarefas de resistência, segurança e ações revolucionárias etc. As tarefas devem surgir da correta interpretação da realidade, da clareza das análises e das perspectivas apontadas pela finalidade estratégica.
Nesse caso, a formação, a educação e a capacitação técnica entram como suporte de todas as tarefas, ou seja, é imprescindível a qualificação da militância para desenvolver estas tarefas com conteúdos adequados, métodos eficientes e superação das deficiências individuais.
Há experiências de movimentos de massas que conseguem elaborar a estratégia geral como finalidade, porém em nível interno, não superam a espontaneidade dos métodos, improvisando sempre as soluções sem nenhuma certeza dos resultados a serem alcançados. Ao não superarem tais deficiências, jamais chegarão a dar saltos de qualidade. Um movimento de massas que sobrevive aos objetivos imediatos, necessariamente, se quiser continuar, tem que adotar, sem deixar de ser movimento, algumas características de organização política, através da definição de princípios políticos, organizativos e metodológicos. A organização política exige a superação de certos instintos espontâneos e o avanço na organicidade da base, em que ela, além de sujeito da história, precisa empenhar-se na sustentação financeira da organização, garantir a segurança e o controle de seu território, formar novas lideranças e estabelecer comunicação permanente com as forças sociais com potencial de serem aliadas.
Há quadros que iniciam sua formação na experiência concreta no movimento de massas e, posteriormente, passam pelas escolas dos partidos políticos e se tornam militantes de ambos os espaços, porém esta duplicidade representativa não atrapalha. E há movimentos de massas que, diante dos desafios históricos, organizam as suas próprias escolas de formação de quadros. Nas questões estratégicas, os conteúdos filosóficos, políticos, históricos etc. se combinam e em geral se diferenciam do conteúdo das questões táticas, tendo em vista que a natureza das tarefas podem ser diferentes. Nos períodos pré-revolucionários, todas as forças procuram dar vida às suas próprias iniciativas e fazem a sua experiência formativa de acordo com o resultado das próprias análises. A natureza dos enfrentamentos se diferencia de um lugar para outro, de uma força para outra.
Nos períodos revolucionários, as próprias contradições empurram para a reunião das forças, numa junção de todas as lutas numa única luta com características de insurreição. Nesse momento, as próprias forças se ensinam entre si, os quadros ampliam as suas referências internas e passam a contribuir com outras entidades, que se orientam pelas mesmas palavras de ordem. O processo de formação de um quadro é, portanto, infindável; na medida em que entra em contato com outras experiências, jamais deixa de aprender.
O método de formação dos quadros
Na história da filosofia temos como certo pelo menos duas grandes correntes filosóficas. A primeira é conhecida como idealista, corrente filosófica surgida com os primeiros filósofos na Grécia antiga. Sua principal característica é acreditar na ideia como referência principal. Primeiro Platão, depois Aristóteles, foram os grandes formuladores desta corrente que tem como referência de que “nada existe sem antes ter passado pela ideia”. Esta concepção acredita na eternidade imutável do espírito; por isso defende que é a ideia ou o espírito quem cria a realidade. As coisas existem antes na ideia (do espírito criador ou do homem) para depois existirem na realidade. Tudo é uma criação da ideia humana ou de um espírito superior.
Aristóteles foi quem conseguiu (apropriando-se das formulações anteriores) estabelecer os princípios da lógica formal, que consiste na finalidade de dirigir os atos do pensamento para a verdade. Para ele, os princípios da lógica formal podiam ser resumidos em: a) identidade; b) não contradição; c) o terceiro excluído.
O primeiro princípio da lógica formal é o da identidade, e Aristóteles o tomou de Parmênides (540 a.C.). Para este, “só o ser é” o “não ser, não é”; por isso, o não ser não pode gerar o ser, nem pode tampouco contrapô-lo. O segundo princípio da lógica formal é o da “não contradição”, ou seja, uma coisa não poderia ser ela e ao mesmo tempo o seu contrário, e desta maneira não poderia haver contradição entre as coisas materiais. E o terceiro princípio estabelece o “terceiro excluído”, ou seja, somente pode haver duas possibilidades de ser de uma coisa: ou uma ou outra, sem deixar chance para uma terceira alternativa.
Ao aplicar este método de análise da realidade, segue-se passivamente o seguinte roteiro:
• pelo princípio da identidade, há rejeição da transformação. Tudo é eterno, apenas a aparência se movimenta, mas a essência continua sempre intacta;
• análise em separado dos fenômenos como se estes não tivessem ligação nas suas causas e consequências, pois o princípio da não contradição, não permite ligar os fenômenos entre si;
• e, por fim, a exclusão dos contrários que não admite contradições nas mesmas coisas. Vida é vida e morte é morte. Uma não pode estar na outra ao mesmo tempo.
A segunda corrente de pensamento, conhecida como materialista, tem suas raízes ainda em Heráclito (540 a.C.), que dizia que “tudo flui”, ou “nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, entendido posteriormente (embora na época não se denominasse assim) como “materialismo ingênuo”. A partir do século XIII, com a ajuda da astrologia e da mecânica, surgiu o “materialismo mecanicista”. Nicolau Copérnico, Galileu Galilei e Giordano Bruno descobriram os movimentos da Terra e perceberam que era ela quem girava ao redor do Sol e não o contrário, como afirmava o idealismo. No século XIX, o materialismo avançou ainda mais, sobretudo com Feuerbach, ao se empenhar em realizar a crítica ao seu mestre Hegel; mas foram Marx e Engels que deram nova qualidade à filosofia materialista, incorporando a ela elementos da dialética, como: a) unidade e luta dos contrários; b) negação da negação; c) inter-relação entre quantidade e qualidade; formulando, assim, o materialismo histórico dialético.
Costuma-se chamar de “método dialético” ou de ” lógica dialética” a maneira de analisar a realidade observando as contradições não como um roteiro de análise, mas, sim, como um movimento dos próprios elementos de análise que não permanecem estáticos. Na verdade, a dialética não permite uma estruturação estreita como faz a lógica formal. O “método dialético”, inicialmente mais como prática do que formulação teórica, se desenvolve fazendo aproximações constantes a partir do elemento sensível descoberto por Heráclito (540 a.C.), embora na época não se entendesse por esse nome. Para Heráclito tudo muda: são os nossos sentidos que nos enganam quando nos fazem crer que tudo permanece sempre igual. As mudanças seguem a lei das negações constantes que nos levam a penetrar nos fenômenos até a sua essência. Para cada circunstância escolhe-se um caminho sem nunca encerrar as possibilidades.
A principal característica do materialismo dialético é compreender “o movimento da matéria”. Para esta visão, as contradições internas da matéria é que geram o movimento da transformação e das mudanças na própria matéria. A força da mudança não está na ideia, mas, sim, na própria natureza das coisas; portanto, nada é eterno; o movimento das contradições é que impulsiona as transformações. Para o materialismo, a verdade não é um conjunto de princípios definitivos; na realidade é um processo histórico, é a passagem de graus inferiores a graus superiores do conhecimento. A essência deste método está na luta permanente dos contrários.
Ao analisar os fenômenos sociais a partir de Marx e Engels, a dialética os relaciona com as condições históricas que lhes deram origem, sendo que esses fenômenos estão em interação com todas as demais manifestações. Tudo se relaciona, seja no político, econômico, na organização social etc., ou seja, no mesmo fenômeno temos múltiplas relações e múltiplas possibilidades de desenvolvimento, sempre em direção à ampliação da quantidade e da qualidade.
No processo da formação dos quadros, pode se incorrer no equívoco de falar em lógica dialética, mas se aplicar a lógica formal.
Se tomarmos como exemplo uma aula sobre a mais-valia, que costumeiramente ocorre no estudo de economia política, podemos com atenção verificar os limites da lógica formal aplicados como se fosse a lógica dialética.
Suponhamos que, ao iniciar a aula no curso de formação política, o professor pergunta: o que é mais-valia? Os estudantes atentos respondem opinando por definições curtas: “é a parte que fica para o patrão”; “é o lucro do patrão”; “é o que o trabalhador produz a mais do seu salário”. Após as diversas afirmações, o professor busca nos livros ou no próprio dicionário de filosofia a definição: “Conceito utilizado por Marx para sublinhar a exploração imposta ao proletariado pelo proprietário dos meios de produção; a força de trabalho dos operários é o único valor de uso capaz de multiplicar o valor (…).-[149]
Na sequência, o professor pode dar exemplos e fazer cálculos, demonstrando que a força de trabalho é que gera a mercadoria, que dela sai o salário do trabalhador, produzido por ele mesmo; além disso, sai o lucro do patrão e os impostos pagos, para o Estado fazer funcionar os serviços públicos e pagar os funcionários que realizam os serviços.
Em seguida, o professor pergunta: “vocês já imaginaram quanto de mais-valia é produzido em nosso município todos os dias?”; e, como referência de cálculo, faz um levantamento na sala de aula, tomando um aluno como exemplo. Observa a sua produtividade diária, verifica o preço da mercadoria produzida por ele já no mercado, subtrai os custos com matéria-prima e meios de produção, retira o seu salário, os impostos e o restante considera enquanto lucro; portanto, a mais-valia. Faz uma estimativa de quantos trabalhadores assalariados há no município, multiplica pelo valor da mais-valia extraída do aluno estudado e revela o valor da mais-valia geral do município. Concluirá dizendo que todo trabalhador assalariado, por gerar lucro para o seu patrão, gera mais-valia e, por isso, sofre a exploração direta do capital; e para pôr fim a esta situação, o trabalhador precisa se apropriar dos meios de produção através de uma revolução e organizar por conta própria seu trabalho através da cooperação.
Poderíamos seguir com esta aula, mas é importante determo-nos para verificar onde estão as suas contradições formais.
Em primeiro lugar, percebemos, na definição da mais-valia, o princípio de identidade da lógica formal, quando a definição se dá de maneira afirmativa: “mais-valia é…”, ou seja, é a repetição de uma explicação formulada, reproduzindo que “o que é, é”. As sugestões dos estudantes passam como respostas incompletas e, portanto, são desconsideradas no momento em que entra em cena o dicionário.
Quando o professor estabelece os cálculos da mais-valia, tomando a parte pelo todo, incorre no desvio da aplicação do princípio da não contradição. O professor vê as relações de produção harmonicamente, sem conflitos, sem falências e sem tampouco a diferenciação entre os trabalhadores, proletários e assalariados.
Ao dizer que “todos os trabalhadores assalariados geram mais-valia”, o professor aplica o princípio do terceiro excluído e incorre em um erro capital, pois desconhece que o trabalho que não gera mais valor, como é o caso do serviço prestado pelos funcionários públicos, não pode gerar mais-valia.
A aplicação do princípio do terceiro excluído ocorre também quando o professor desfecha a solução: “o trabalhador deve apossar-se dos meios de produção, através de uma revolução, e aí organizar por sua conta o trabalho produtivo”.
Neste caso, o professor desconsidera todo o processo a ser constituído: para ele há apenas uma solução imaginária que poderia ser fundamental, mas, não estando a revolução na ordem do dia, não haveria outra alternativa? No entanto, mesmo depois da revolução, os meios de produção podem não se tornar propriedade particular daqueles operários que naquela fábrica trabalham. O socialismo seria, então, cada qual fica onde está e tudo o que produz é seu?
Dessa maneira, o princípio do terceiro excluído ocorre também na visão de um tipo de socialismo imaginário, desconsiderando outras possibilidades, onde há presença do Estado, diversos tipos de economias, comercialização dos produtos e divisão de classes, pois o socialismo, sendo uma transição para o comunismo, ainda não eliminou todas as contradições do capitalismo.
De outra forma, a dialética, ao ver as coisas encadeadas entre si, não permite que se estabeleça a separação entre os contrários, é unidade e luta, antagônica e não antagônica. Considera as contradições e as negações também encadeadas superando-se entre si, adquirindo novas qualidades e ampliando a quantidade.
A dialética, portanto, é a lógica de ver as coisas e o mundo no encadeamento das contradições que avançam e regridem. Esta visão e compreensão do mundo se dá através do uso do método dialético. A palavra “método” vem do grego metho (caminho) e hodos (fim, objetivo). Como o método é composto por elementos teóricos, estes podem ser recolocados em ordem diferente dependendo da análise realizada. Como também todas as realidades possuem as suas próprias contradições, o materialismo histórico contribui para encontrar, decifrar e construir o caminho do conhecimento, que leva o sujeito até seu objetivo final, traçado sobre uma realidade.
Para uma correta compreensão do método dialético, além das leis da lógica dialética em constante movimento [150] já esclarecidas anteriormente, é necessário que se coloquem em ordem também as categorias. As categorias possibilitam ao método as condições para processar as aproximações cada vez mais profundas do conhecimento da realidade. É através delas que se chega com o conhecimento a qualquer lugar estabelecido pelos objetivos; afinal, o conhecimento nada mais é do que aproximações constantes de descobertas encadeadas.
As categorias são antigas descobertas da filosofia. Aristóteles já as utilizava (substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, posse, ação e paixão) como referência para a busca do conhecimento. Mas foi com Marx e Engels que o materialismo histórico ganhou forma, e o método dialético passou a ser uma referência oposta ao método metafísico. José Paulo Netto, ao expor o método em Marx, diz: “Articulando estas três categorias nucleares — a totalidade, a contradição e a mediação —, Marx descobriu a perspectiva metodológica que lhe propiciou o erguimento do seu edifício teórico (…).” [151] Este “edifício teórico”, assim chamado por ser concreto na sua dinâmica de aplicação, não vê a totalidade como a “soma das partes”, mas, sim, uma totalidade que se articula com “totalidades menores”, movidas por contradições internas ativas e mediadas pela estrutura particular de cada totalidade.
O método dialético — diferente do método metafísico — não considera que o conhecimento se dá por círculos, tanto assim que o materialismo histórico ensina que nunca se chega ao final do conhecimento justamente porque a lei da negação da negação, bem como da quantidade e qualidade, sempre impulsionam para a busca de novas superações. As categorias expressas pelo materialismo histórico aparecem em separado como movimento, totalidade, finalidade, classe etc., mas também combinadas, como conteúdo e forma, causa e efeito, geral e particular, essência e aparência etc. Outras categorias podem ser formuladas e colocadas como instrumentos de análise, mas precisam respeitar as leis da dialética e não se fechar em si como se uma categoria desse conta de toda a realidade.
Podemos voltar agora ao exemplo dado pela aula sobre mais-valia. A categoria utilizada para a análise foi a da exploração do trabalho pelo capital. Esta categoria, corretamente escolhida, está de acordo com as três leis da dialética: a) unidade e luta dos contrários — a aula deixa transparecer nitidamente que há patrão e empregado, um é o oposto do outro e são interdependentes para que a fábrica possa funcionar; b) quantidade e qualidade — da mesma forma, a quantidade aparece nos produtos produzidos, mas, acima de tudo, a quantidade da exploração que detém uma qualidade de valor a mais. Poderíamos aplicar a lei na quantidade e qualidade da consciência do próprio operário; c) a negação da negação — da mesma forma, a categoria da exploração suscitou uma solução que seria negar o modo de funcionamento da fábrica, apropriando-se dos meios de produção através de uma revolução que levaria os trabalhadores ao socialismo.
Mas onde estão as limitações da aula?
Em primeiro lugar, na maneira de compreender a definição de mais-valia, que ignorou todas as leis da lógica dialética, extraída de um dicionário como se fosse um dogma. Não que não possa ser feito, mas, limitando-se a si própria, a definição não se torna conhecimento na consciência daqueles que precisam compreendê-la.
Em segundo lugar, o professor esqueceu da totalidade, tomou a parte pelo todo e fechou o círculo da análise como solução pronta. A realidade de um município jamais poderia ser a referência para calcular a mais-valia de todo o sistema de exploração fabril do país, onde estaria a razão fundamental para impulsionar a revolução.
Em terceiro lugar, a solução, após a descrição do que é e como ocorre no município, é automática. “Apropriar-se dos meios de produção através de uma revolução”, como se não houvesse contradições, inimigos, necessidade de organização, programa, movimento revolucionário, definição de táticas, formação da consciência das massas e preparação de quadros etc.
É importante perceber que, se não utilizamos o método dialético para conhecermos a realidade social, os fatos, na maioria das vezes, serão vistos isoladamente, como se tivessem origem e fim em si mesmos. A simples descrição dos fenômenos não se torna conhecimento porque falta a compreensão das contradições que o produziram, e sem elas não se poderá elaborar uma perspectiva segura de superação.
Os conteúdos dos cursos, necessariamente, precisam prever uma sequência, não apenas porque os níveis de conhecimento entre os militantes são diferenciados, mas porque o aprendizado necessita de certa ordem, ou seja, para compreender melhor o processo de transformação da sociedade é importante compreender como se dá a exploração da força de trabalho, importante tema para despertar a convicção de que as mudanças são necessárias. A mistura de teorias apresentadas com diferentes concepções metodológicas (dialético e metafísico ao mesmo tempo) tende a formar quadros confusos e incapazes de processarem as próprias análises.
As leis da lógica formal estão enraizadas na consciência social, pois este conhecimento é passado para os seres sociais através da própria convivência, na qual os preceitos e definições se tornam senso comum, ou seja, os princípios de identidade, da não contradição e do terceiro excluído são a forma do pensar da sociedade burguesa. Logo, o indivíduo se vê e é visto como indivíduo. “Só o ser é, o não ser não é.” Ele não é a sociedade, mas o ser que trabalha, compra, honra os seus compromissos etc. Não há contradições no olhar através do senso comum e nem uma terceira possibilidade: ou é isto ou aquilo, não há outra alternativa. Logo, a tendência é sempre fazer narrativas e nunca uma análise da realidade, diferentemente de quando se toma a dialética como referência. Não se pode tomar as leis desta lógica sem pensar em categorias. É a categoria de análise que permite aplicar a lei na produção do conhecimento.
Os marxistas do passado, que se empenharam em desenvolver a teoria da organização política, tinham consciência da relação que havia entre a lei e a categoria para o método dialético. Para tanto, estabeleceram novas referências teóricas que nada mais são do que a produção do novo conhecimento sobre novas contradições.
Hoje vemos que há muitas elaborações nas academias, e também fora delas, mas, em sua maioria, são descrições das aparências dos fenômenos que acabam na página final sem perspectivas, pois durante o trajeto da elaboração não foram consideradas as contradições fundamentais, e por isso a conclusão não pode prever superações.
A elaboração teórica nunca é um recomeço, mas, sim, uma continuidade. Assim como não se recomeça a aprender na vida social, também não se recomeça a elaborar. Os quadros só podem ser assim chamados se estiverem em constante elaboração de ideias e de métodos.
Acima de tudo, a formação de novos quadros, além de todos os elementos colocados neste texto, exige que se tenha velhos quadros experientes e teoricamente preparados, com profunda clareza do método que deve ser utilizado na formação política.
Referências
[135] TSÉ-TUNG, Mao. Obras Escolhidas Vol. IV. Lisboa: Proletário Vermelho, 1975, p. 163.
[136] IASI, Mauro Luís. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, p. 32.
[137] MARX, K. – ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, ed. cit.
[138] MARX, K. – ENGELS, F. A ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 40-41.
[139] LESSA, Sérgio. TONET, Ivo. Introdução a filosofia de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 18.
[140] Idem, p. 27.
[141] LOWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Pulo: Boitempo, 2007, p. 57.
[142] VAZQUEZ, Sánchez Adolfo. Filosofia da práxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p. 117.
[143] Idem, p. 185.
[144] Idem, p. 189.
[145] LENIN, V. I. Que fazer? Questões candentes do nosso movimento. Ed. cit. p. 99.
[146] POLITZER, Georges. Princípios fundamentais de filosofia. São Paulo: Hemus, 1986. p. 28.
[147] MARIGHELLA, Carlos. “A crise brasileira”. In: Bogo, Ademar: Teoria da Organização, Vol II. Ed.cit. p 256.
[148] CHO-MINH, Ho. A nova sociedade. In: ALVAREZ, Marta Elena. Ho Chi-Minh: Política. São Paulo: Ática, 1984. p. 161.
[149] JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996, p. 171.
[150] Segundo José Paulo Netto, para Marx, o método não é um conjunto de regras formais que se “aplicam” a um objeto que foi recortado para uma investigação, nem um conjunto de regras que o sujeito escolhe para enquadrar o seu objeto de investigação. Neste sentido é que se pode dizer que Marc “não nos entregou uma lógica” estática nem nos disse o que pensava do capital, mas descobriu a sua estrutura dinâmica e extraiu de sua estrutura dinâmica a sua própria lógica.
[151] NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 58.