O conflito entre Armênia e Azerbaijão é uma herança da União Soviética?

Com o escalar do conflito entre Armênia e Azerbaijão pela região de Nagorno-Karabakh, muitos têm recordado da ação da União Soviética em ceder a região aos azeris, dando a entender que o conflito que conhecemos hoje foi causado e deixado em aberto pela União Soviética, ou ao menos potencializado e mantido pelos soviéticos. Os motivos apontados para explicar tal tese são diversos, com o mais comum sendo que o ato foi parte de um “plano comunista de dividir para conquistar”, ou seja, criar a discórdia entre os dois povos para ficar mais fácil de dominá-los, contudo, isso realmente condiz com a história?

Para compreendermos a disputa devemos retroceder ainda mais, indo além do período da União Soviética, chegando até a antiguidade, quando os armênios se estabeleceram na região após a fundação do Reino da Armênia em 331 a.C., com o rei Tigranes II, “O Grande”, sendo o responsável pela primeira província a receber o nome de Artsakh (nome da república separatista que controla Nagorno-Karabakh). O Reino da Armênia encontrou seu fim no ano de 428, mas os armênios seguiram presentes nas zonas que antes eram controladas pelo antigo estado, e no ano 1000, sob o comando de Senekerim, é fundado o Reino de Artsakh, compreendendo a atual região de Nagorno-Karabakh, um estado de maioria étnica e cultural armênia.

No século XII, a expansão dos seljúcidas, partindo da Ásia Central, chega até o Cáucaso, com toda região, incluindo Artsakh, passando a ser domínio do Império Seljúcida. Os seljúcidas são os antecessores do povo azeri, sendo nesse momento o surgimento da coexistência desses dois povos na mesma região, com Artsakh passando a ser um estado vassalo dos seljúcidas, formando posteriormente o Ducado de Khachen, ainda de maioria armênia. Após o domínio dos seljúcidas, a região do Cáucaso foi de domínio de outros povos e impérios, tendo os exemplos dos mongóis, turcomanos, timuridas, diversas dinastias persas, incluindo estados azeris, como Aq Qoyunlu e Kara Koyunlu, embora Artsakh se mantesse como maioria armênia até então, construindo as bases da rivalidade atual.

Dando um salto no tempo e chegando até o século XVIII, é fundado em 1748 o Canato de Karabakh, estado semi-independente da Dinastia Safávida do atual Irã, sendo um estado reconhecido como túrquico, sendo administrado e controlado politicamente pelos azeris, inclusive, algumas fontes colocam o canato como de maioria azeri e de religião islâmica. O Karabakh já havia passado por um domínio turco, finalizado em 1606, sendo um fator importante para o grande favorecimento político dos azeris e a razoável decadência dos armênios naquele período. Contudo, devemos ressaltar que a presença armênia continuou forte, embora já não fossem maioria.

Em 1822, o Canato de Karabakh é dissolvido, dando lugar a Governação de Elisabethpool, agora sob domínio russo, que apesar de concederem certas vantagens políticas aos armênios, mantiveram a dominação azeri, que seguiu sendo a etnia e cultura majoritária de Nagorno-Karabakh, embora vivessem em harmonia com os armênios. Em 1918, com o contexto da Revolução Russa, o Cáucaso proclama sua independência, formando a República Democrática Federativa Transcaucasiana, que não dura muito, sendo dissolvida e dividindo-se na Armênia, no Azerbaijão e na Geórgia, países que logo ao se formarem entram em conflitos entre si, valendo destacar a guerra entre Armênia e Azerbaijão, que entra no tema central do texto, durando de 1918 a 1920, com a disputa por Nagorno-Karabakh sendo algo central, antes mesmo da chegada dos soviéticos, com a guerra não tendo um vencedor definido devido a intervenção da União Soviética, que trouxe a sovietização do Cáucaso.

Enquanto o conflito com o Azerbaijão ainda estava se desenrolando, os armênios tiveram de enfrentar os turcos na Guerra Turco-Armena de 1920, com a Armênia perdendo mais da metade de seu território, realocando os armênios que estavam na Anatólia Oriental (região perdida) para a região de Artsakh. Antes mesmo da guerra, o general Andranik Ozanian, líder da Armênia, já havia iniciado um fluxo de armênios a Artsakh, assumindo as posições deixadas pelos azeris que foram evacuados devido a guerra, com os armênios recuperando a sua posição de maioria em Nagorno-Karabakh.

Retornando a intervenção soviética no Cáucaso, o Azerbaijão acaba tendo seu processo de sovietização de maneira mais rápida e fácil em comparação com a Armênia, não tendo muita resistência, enquanto os armênios, com um grande espírito nacionalista, acaba tendo uma resistência mais árdua, formando a República da Armênia Montanhosa no sul do país, liderada por Garegin Nzhdeh e derrotada em julho de 1921. Precisamos compreender que o sentimento nacionalista e independentista armênio estava em alta nesse período, vindo de um grande processo iniciado no século XIX em terras turcas, de rebeliões em favor da independência da Armênia, e intensificado com a grande participação de armênios na Campanha do Cáucaso da Primeira Guerra Mundial e com o Genocídio Armênio promovido pelos otomanos, inclusive, os fundadores da Armênia independente haviam sido rebeldes históricos ou antigos oficiais do exército russo que aproveitaram-se da instabilidade da Guerra Civil Russa, como Andranik Ozanian e o próprio Garegin Nzhdeh.

Após a derrota da resistência armênia e consolidação da sovietização do Cáucaso, Nagorno-Karabakh passou a ser uma província autónoma da RSFS Transcaucasiana, como uma forma de punição aos armênios pela árdua resistência promovida, além de ser uma forma de minar o poder e a projeção de grupos nacionalistas armênios, como a Federação Revolucionária Armênia, que por sinal, é quem tem o poder de facto da atual República de Artsakh. Em 1936, o controle de Nagorno-Karabakh foi repassado ao Azerbaijão por decisão de Stalin, dando continuidade a tradição, construída com os seljúcidas e mantida especialmente pelos persas, de Nagorno-Karabakh ser de administração direta dos azeris, apesar dos armênios manterem sua maioria cultural e étnica, com o estado soviético sendo importante para garantir a segurança e a continuidade dos armênios na região e para conter os conflitos históricos, frutos de uma longa construção histórica que vinha de séculos anteriores aos soviéticos.

Com o início do declínio da União Soviética, inicia-se em 1988 a Guerra de Nagorno-Karabakh entre Armênia e Azerbaijão, vindo a construir os trilhos contemporâneos desse conflito.

Com isso, concluímos que a questão de Nagorno-Karabakh é de uma complexidade muito maior do que se mostra, tendo suas origens e raízes construídas muito antes da União Soviética, que manteve Nagorno-Karabakh como uma província do Azerbaijão como uma continuidade de tradições políticas e administrativas mantidas por persas e pelo próprio Império Russo, com Armênia e Azerbaijão já estando em guerra antes mesmo da chegada dos soviéticos, não tendo necessidade em “dividir para conquistar”, já que a divisão já havia ocorrido. Finalizo então concluindo que a União Soviética não é a grande responsável pelo conflito, tendo sim o seu papel no desenvolvimento das questões, mas não da forma que muitos apontam, quase como uma forma de campanha contra a URSS.

Referências

– The Caucasus – An Inteoduction. Frederick Coene.

– Armenia: With Nagorno-Karabakh. Nicholas Holding.

– Black Garden: Armenia and Azerbaijan Through Peace and War, 10th Year Aniversary Edition. Thomas de Waal.

– Azerbaijan: A Land in Bloom. Mamed Iskenderov.

– On the right of self-determination of the Armenian people of Nagorno-Karabakh. Haig E. Asenbauer.

https://eudocs.lib.byu.edu/…/History_of_Azerbaijan…

https://www.britannica.com/topic/Kara-Koyunlu

https://iranicaonline.org/articles/aq-qoyunlu-confederation

https://www.britannica.com/place/Azerbaijan

https://www.britannica.com/place/Armenia

https://web.archive.org/…/armenia…/sov_arm_war1920.php

https://www.jstor.org/stable/162238

https://www.jstor.org/stable/259971

https://web.archive.org/…/www…/pages/menu/menu3/kgb1.htm

http://freenet.am/~grighak/Armenia_files/Other.htm


Texto originalmente publicado na página “O Lado Vermelho da História”, disponível neste link.

Todos os créditos reservados aos autores.

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