Agustín Cueva – “A concepção marxista de classes sociais”

Artigo publicado em espanhol na Revista Debate & Crítica, nº 3 – julho de 1974, da Editora Hucitec, Ltda. S.P. Foi traduzido com autorização pessoal do autor, por ocasiação da realização do XVI Congresso Latino Americano de Sociologia, realizado em março de 1986 no Rio de Janeiro.

Tradução de Hermann Iark Oberdiek e Nelson Dácio Tomazi.


Na teoria marxista o conceito de classe social difere fundamentalmente do sentido que lhe podem atribuir outras escolas sociológicas, por várias razões:

1. O marxismo não concebe as classes sociais como simples categorias nominais construídas a partir de um esquema lógico formal aplicável a qualquer sociedade. É estranho a ele a clássica divisão da sociedade em três classes: alta, média e baixa, por mais que tal divisão apareça “redefinida” com novas subdivisões (classe média alta, classe média média, classe média baixa, etc.), ou ainda que tais categorias sejam recheadas com dados empíricos provenientes da combinação de múltiplos “indicadores”.

2. O marxismo também não crê que a estrutura de classes consista nas simples diferenças de renda, nível educacional, prestígio, etc… Estes dados refletem a grosso modo posições sociais distintas e se tratam dos efeitos mais visíveis de determinadas estruturas de classes e não de elementos fundamentais de tais estruturas.

3. Nem mesmo a magnitude da “fortuna” ou “riqueza” dos membros de uma sociedade é para o marxismo o elemento fundamental da estrutura de classes. Aqueles termos não são somente imprecisos como também significam que no interior de uma mesma classe a magnitude da “riqueza” pode diferir notavelmente de uns indivíduos par outros, assim como, inversamente, a “fortuna” dos membros de duas ou mais classes pode coincidir.

4. Em todo caso, o marxismo sustenta que o problema das classes sociais não pode ser estudado corretamente a não ser a partir de uma teoria geral da sociedade e da história. Por isso, antes de abordar este problema é necessário começar definindo alguns conceitos fundamentais do materialismo histórico.

II – Modo de produção e formação social

Um daqueles conceitos fundamentais é o de modo de produção que se refere à forma como os homens obtêm seus meios materiais de existência. Isto supõe, necessariamente, dois tipos de relações intimamente imbricadas, que é necessário distinguir no plano teórico:

1. A relação dos homens com a natureza para a realização da produção; relação que é captada pelo conceito de forças produtivas que designa a capacidade que os homens possuem em determinado momento para obter certa produtividade, com ajuda de seus conhecimentos e técnicas, máquinas, ferramentas, etc…

2. A relação que os homens estabelecem entre si no processo produtivo se denomina de relações sociais à produção.

A combinação destes dois elementos: forças produtivas e relações sociais de produção, constitui a matriz econômica de todo o modo de produção e é a que determina, inclusive, os demais aspectos do econômico: a circulação, distribuição e consumo dos bens materiais. Sobre a base desta matriz econômica, que se denomina também de infra-estrutura. “levanta-se” (segundo o termo metafórico empregado por Marx) a superestrutura social, que por sua vez se manifesta em duas instâncias fundamentais:

1. A instância jurídico-política que compreende o conjunto de organizações e instituições sociais (Estado e direito, fundamentalmente, nos modos de produção classistas);

2. A instância ideológica, formada pelo conjunto de ideias, imagens e representações sociais em geral.

Essa relação que existe entre a base ou infra-estrutura econômica e as duas instâncias supra-estruturais consiste em uma articulação complexa, que se pode definir da seguinte maneira:

1. A base determina, em última instância, a superestrutura, na medida em que lhe atribui uma função muito precisa, que é a de produzir as condições jurídicas, políticas e ideológicas necessárias para a reprodução do respectivo modo de produção.

2. Dentro deste limite estrutural de funcionamento, a superestrutura possui, entretanto, uma autonomia relativa, que lhe permite ter suas formas específicas de desenvolvimento e atuar, por sua vez, sobre a base.

3. O grau e a forma em que a superestrutura atua sobre a base varia segundo o modo de produção que se analisa. Assim, por exemplo, no modo de produção capitalista e intervenção do jurídico e do ideológico sobre a instância econômica não é da mesma natureza que no modo de produção feudal. Por isto, e porque em cada modo de produção pode se dar uma articulação distinta entre a base e a superestrutura, é que o conceito de modo de produção pode ser utilizado em um sentido mais amplo, para designar não só a matriz econômica senão também a estrutura resultante da articulação das três instâncias: a econômica, a jurídico-política e a ideológica. Neste sentido, o conceito de modo de produção é um dos mais importantes da sociologia marxista, pois nos proporciona, por assim dizer, um primeiro “modelo” teórico sobre a estruturação básica da sociedade.

Entretanto, e por sua condição de conceito situado em um nível muito alto de abstração, o conceito de modo de produção necessita complementar-se com outro, que se situe em um nível de concretude maior. Este conceito é o de formação social, que se refere às sociedades historicamente dadas, nas quais já não encontramos um só modo de produção em estado “puro”, mas, normalmente, uma combinação específica de vários modos de produção. Esta combinação não consiste em uma simples justaposição, e sim se constitui numa estrutura articulada de maneira muito complexa:

1. Em primeiro lugar, os modos de produção se combinam sempre sob a hegemonia de alguns deles, o dominante, que é o que imprime seu caráter à formação social em seu conjunto e redefine a situação dos outros modos de produção (subordinados), fixando-lhes limites de funcionamento e desenvolvimento. Mas, a característica desta relação faz que o modo ou dos modos de produção subordinados sobredeterminem, por sua vez, o funcionamento e desenvolvimento do modo de produção dominante, com o qual, portanto, se relacionam conflitivamente. Ademais, aquela relação vai sofrendo alterações com o curso do desenvolvimento histórico, de modo que, em determinado momento, o modo de produção subordinado, pode deixar de se-lo e converter-se em dominante (o qual depende, é claro, do caráter dos modos de produção compreendidos em cada articulação).

2. Em segundo lugar, em uma formação social não só se articulam diferentes modos de produção com todas suas instâncias e elementos, como também podem articular-se em uma mesma unidade concreta elementos de vários modos de produção. É o caso, sobretudo, de certas situações de transição, nas quais encontramos, por exemplo, unidades econômicas, instituições políticas ou sistema ideológicos de caráter “misto”, semifeudais ou semicapitalistas.

3. Por último, junto aos modos de produção fundamentais, que são aqueles capazes de impor sua hegemonia em uma formação social comunitária, primitiva, escravista, feudal, capitalista e socialista), existem também modos secundários de produção, que só podem aparecer em um plano subordinado, dependendo de algum modo de produção mercantil simples (produção artesanal e pequeno-camponesa), que denominaremos, para marcar seu caráter específico, de forma de produção.

III – Modo de produção e classes sociais

Em sua conhecida carta a J. Weydemeyer, Marx assinalou com uma de suas principais contribuições, a demonstração de que “a existência à classes s6 aparece unida a determinadas fases históricas à desenvolvimento à produção”. Demonstração com a qual não só jogou por terra a ideia de que a divisão da sociedade e classes é eterna, senão que ademais afirmou o princípio básico para a definição do estatuto teórico das classes sociais. Com efeito, afirmar que a existência das classes só aparece unida a determinadas fases históricas do desenvolvimento da produção equivale dizer que as classes são efeitos específicos de determinados modos de produção. De que modo de produção se trata e qual é o nível estrutural básico que produz tais efeitos?

O marxismo tem dado uma resposta muito precisa a este problema: trata-se daqueles modos de produção nos quais existem a propriedade privada dos meios e/ou agentes de produção (homens, terra, ferramentas, máquinas, etc.), e onde as relações sociais se organizam em torno de um mecanismo fundamental de exploração: relações entre amos e escravos no modo de produção escravista, entre senhores e servos no modo de produção feudal, entre burgueses e proletários no modo de produção capitalista.

Portanto, as classes sociais são, antes de tudo, posições estruturais que o sistema atribui objetivamente a indivíduos determinados. Por isso Marx escreveu, no prefácio à primeira edição de “O Capital”:

“…Não pinto, de modo algum, as figuras do capitalista e do proprietário fundiário com cones róseas. Mas aqui só se trata de pessoas à medida que são personificações de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações de classes e interesses. Menos do que qualquer outro, o meu ponto de vista, que enfoca o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como um processo histórico-natural, pode tornar o indivíduo responsável por relações das quais ele é, socialmente, uma criatura, por mais que ele queira colocar-se subjetivamente acima delas”. [2]

E Lenin, por sua vez, definiu as classes pelos “lugares” que determinados grupos de homens ocupam em um sistema de produção historicamente determinado:

“As classes são grandes grupos de homens que se diferenciam entre si, pelo lugar que ocupam em um sistema de produção historicamente determinado, pelas relações em que se encontram frente aos meios de produção (relações que as leis fixam e consagram), pelo papel que desempenham na organização social do trabalho e, por conseguinte, pelo modo e pela proporção que se apropriam de parte da riqueza social que dispõem. As classes sociais são grupos humanos, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro por ocupar posições diferentes em um regime determinado de economia social”. [3]

Definição que nos permite precisar dois pontos mais sobre a teoria marxista das classes sociais:

1. Que as classes sociais não são o efeito de qualquer nível da estrutura social, nem o resultado da articulação do econômico, do político e do ideológico (como afirma Nicos Poulantzas [4]) senão que elas geram e adquirem existência objetiva a nível da matriz econômica de certos modos de produção.

Por isso, e porque as classes tem uma existência objetiva ainda antes de que os agentes sociais tomem consciência de sua posição estrutural, é que o próprio Lenin em seu livro “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”, pôde prever com alguns anos de antecipação o comportamento político das classes da Rússia czarista na revolução democrático-burguesa de 1905, e escrever o que segue no prefácio à segunda edição desta obra:

“A análise do regime social econômico, e, por conseguinte, da estrutura de classes da Rússia, que fazemos na seguinte obra, análise baseada em uma investigação econômica e em um exame crítico dos materiais estatísticos, se vê hoje confirmada pela intervenção política aberta de todas as classes no curso da revolução” [5].

2. Em segundo lugar, ao precisar que as relações entre as classes são relações de exploração, posto que uma delas pode apropriar-se do trabalho da outra por ocupar posições diferentes em um regime determinado de economia social, Lenin está assinalando também a razão pela qual as duas classes fundamentais de cada modo de produção, podem-se relacionar de uma única maneira: antagonicamente. Donde se deriva outro fato, muito importante: as classes sociais estão sempre em luta, e é precisamente esta luta o motor principal da história das sociedades classistas. Por isso, para o materialismo histórico a teoria das classes sociais é inseparável da teoria geral da história.

Finalmente, é necessário precisar que nestas primeiras generalizações, a existência das classes em um determinado modo de produção redefine a natureza das duas instâncias superestruturais, na medida em que lhes confere inevitavelmente um caráter classista. A instância jurídico-política já não é, neste caso, um conjunto de instituições aos serviço de toda a sociedade, e sim, que está constituída por aparelhos de classe; do mesmo modo que a instância ideológica não é a representação do mundo da comunidade toda, e sim a esfera em que as ideias dominantes são necessariamente as da classe dominante.

IV – Classe “Em si”, Classe “Para si”

Já vimos como as classes são o resultado da matriz econômica de certos modos de produção sobre os agentes sociais, os quais se constituem precisamente em classes; temos insistido, pelo menos, que já neste nível – econômico – as classes têm uma existência objetiva, e até citamos uma passagem de Marx na qual ele afirma que os proprietários de terras ou os capitalistas não são mais que a “personificação” de certas categorias econômicas. Muito bem, todas estas observações que tendem a definir em um primeiro nível o estatuto teórico das classes (prevenindo qualquer desvio voluntarista – idealista) correm o risco de nos situarmos em uma posição errônea (positiva-estruturalista) se não retomarmos, oportunamente, o problema da relação dialética entre as classes como efeitos de determinada estrutura econômica e as classes como agentes históricos concretos.

Marx coloca o problema com toda a nitidez em uma famosa passagem do “DEZOITO BRUMÁRIO”:

“Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo. Esse isolamento é agravado pelo mau sistema de comunicação existente na França e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produção, a pequena propriedade, não permite qualquer divisão do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicação de métodos científicos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talento, nenhuma riqueza de relações sociais. Cada família camponesa é quase auto-suficiente; ela própria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim s meios de subsistência mais através de trocas com a natureza do que do intercâmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um camponês e sua família; ao lado deles outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Algumas dezenas delas constituem um Departamento. A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco constituem um saco de batatas. Na medida em que milhões de famílias camponesas vivem em condições econômicas que as separem umas das outras, e opõem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes á sociedade, estes milhões constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os camponeses apenas uma lição local e em que a similitude de seus interesses não cria entre eles comunidade alguma, ligação nacional alguma nem organização política nessa exata medida j constituem uma classe. São, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe nem em seu próprio nome, nem através de uma convenção. Não podem representar-se, tem que ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influência política dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expressão final no fato de que o poder executivo submete ao domínio a sociedade.” [6]

Este texto de Marx, que por si só constitui uma obra mestre de análise sociológica, nos coloca, pois, diretamente perante o problema da classe “em si” e da classe “para si”. Os pequenos camponeses constituem uma classe social a nível econômico, posto que estão colocados na mesma situação estrutural, que, objetivamente, ficam opostos às outras classes da respectiva formação social; no entanto, o próprio Marx considera que, em outro nível, que é o político, tais camponeses não se constituem uma classe. Tomada ao pé da letra, a segunda afirmação pode induzir à confusão e se presta a interpretações diversas e fantasiosas; entretanto, seu sentido contextuai é perfeitamente claro; se os pequenos camponeses são “incapazes de fazer valer seus interesses de classe” é porque objetivamente já são (“em si”) uma classe social, ainda que não estejam organizadas como tal no plano político, nem tenham ainda tomado consciência (“para si”) daquela situação objetiva.

No mesmo sentido há outra análise de Marx, sobre a classe trabalhadora, em “MISÉRIA DA FILOSOFIA”:

“A grande indústria concreta, em um mesmo lugar, uma massa de pessoas que não se conhecem entre si. A concorrência divide seus interesses. Mas a defesa do salário, esse interesse comum a todas elas perante seu patrão, as une em uma ideia comum de resistência: a coalizão. Portanto, a coalizão persegue, sempre, uma dupla finalidade: acabar com a concorrência geral aos capitalistas. Se o primeiro objetivo da resistência se reduzia a defesa do salário, depois, sua medida que os capitalistas se associam movidos pela ideia de repressão, as coalizões, inicialmente isoladas, formam grupos. E a defesa pelos operários de suas associações, diante do capital sempre unido, acaba sendo para eles mais necessária que a defesa do salário. Isto a tal ponto é certo que os economistas ingleses assombraram-se ao ver que os trabalhadores sacrificavam boa parte do salário em favor de associações que, a juízo desses economistas, foram fundadas exclusivamente para lutar em prol do salário. Nesta luta – verdadeira guerra civil -, vão-se unido e desenvolvendo todos os elementos para a batalha futura. Ao chegar neste ponto, a batalha futura. Ao chegar neste ponto, a coalizão toma caráter político. As condições econômicas transformaram primeiro a massa da população do país em trabalhadores. O domínio do capital criou para esta massa uma situação comum, interesses comuns. Assim, pois, agia massa já é uma classe com relação capital, mas ainda não é uma classe para si. Na luta, da qual não assinalamos mais que algumas fazes, esta massa e une, constituindo-se uma classe em si. Os interesses que defendem convertem-se em interesses de classe, porém a luta de classe contra classe é uma luta política”. [7]

Ao construir o conceito de classe em dois níveis, o da classe “em si” e o da classe “para si”. Mas retém com uma terminologia que talvez não seja a mais apropriada, a dupla dimensão do problema.

1. As classes sociais como efeito da matriz econômica de determinados modos de produção e formações sociais sobre os agentes de produção.

2. As classes como verdadeiros sujeitos históricos capazes de atuar sobre as estruturas e transformá-las; sujeito que surgem através da luta de classes e pelo desenvolvimento de uma organização e de uma consciência de classe.

Esta conceituação, na qual a reconstituição “lógica” das classes coincide com sua reconstituição “histórica” é, ademais, relevante na teoria marxista por três razões:

1. Porque permite realizar uma análise objetiva da estrutura de classes e uma previsão histórica, objetiva, que são os fundamentos necessários para uma correta política.

2. Porque só sobre a base daquela distinção é possível definir objetivamente a consciência de classe, que não é igual ao conjunto de ideias e representações que seus membros possam ter num determinado momento (consciência psicológica imediata), mas sim que consiste na consciência do “que deve historicamente fazer (uma classe) em conformidade com seu ser” (Marx: “A Sagrada Família”).

3. Porque tal distinção permite fixar o papel exato da vanguarda política (partido de classe), que consiste justamente em converter a classe “em si” em classe “para si”.

V – Classes, Estamentos, Castas

O problema dos “estamentos” e das “castas” -principalmente estas últimas – tem sido amplamente desenvolvido pela sociologia não marxista que, em geral, opõe taxativamente a organização estamental e de castas à das classes sociais. São demasiado conhecidos os raciocínios neste sentido de que, enquanto que os estamentos e as castas constituem sistemas “fechados”, as classes se caracterizam por conformar um sistema “aberto”, que permite uma ampla mobilidade horizontal e vertical de seus membros.

Este não é o lugar apropriado para fazer uma discussão ampla sobre este assunto; só queremos observar que, inclusive certos autores, em termos gerais aceitam os pontos de vista de Marx sobre as classes sociais na sociedade capitalista, afirmam que eles perdem pertinência quando se trata das formações pré-capitalistas. É, por exemplo, a opinião do sociólogo francês Georges Gurvitch, para quem as classes “só aparecem nas sociedades globais industrializadas nas quais os modelos técnicos e as funções econômicas estão particularmente acentuadas”. Gurvitch chega, inclusive, a afirmar que “Marx vacilou muito em definir se deveria reconhecer a existência das classes em todo tipo de sociedade, fora das sociedades arcaicas e da sociedade futura ou comunista completamente realizada.” [10]

Entretanto, Marx é perfeitamente claro sobre este ponto: “A história de todas as sociedades até nossos dias é a história da luta de classes” escreve no Manifesto, ainda que Engels observe, com razão, que o termo “todas” não inclui, obviamente, as sociedades “pré-históricas”, isto é, pré-classistas.

Para o marxismo, então, as classes são algo inerentes não só ao modo de produção capitalista, mas também a outros, como o feudal e o escravista. Não obstante, o fenômeno adquire características distintas nestes últimos.

Dizíamos, anteriormente (item II), que em cada modo de produção se dá uma forma diferente de articulação entre os níveis econômico, jurídico-político e ideológico, variando em cada caso o grau e a forma de intervenção das duas instâncias supra-estruturais sobre a base econômica. Pois bem, isto não deixa de ter suas consequências sobre a estrutura de classes, que adquire sua forma diferente segundo o modo de produção de que se trate. No modo de produção capitalista as classes sociais não só se geram ao nível da infra-estrutura econômica senão que, ademais, aparecem como um puro efeito desta, sem que nem o jurídico nem o ideológico intervenham diretamente em sua fixação; em outros modos de produção não ocorre o mesmo:

“É sabido – escreve Lenin – que nas sociedades escravista e feudal as diferenças entre as classes ficam também fixadas na divisão da população por estamentos, atribuindo-se a cada classe um lugar jurídico especial no estado. Por isso, as classes das sociedades escravista e feudal (e também da sociedade de regime de servidão) eram, por sua vez, estamentos distintos. Ao contrário, na sociedade capitalista, na sociedade burguesa, todos os cidadãos são juridicamente iguais, a divisão por estamentos foi abolida (pelo menos em princípio) e por isso, as classes deixaram de ser estamentos. A divisão da sociedade de classes comum sociedades escravista, feudal g burguesa, mas nas duas primeiras existiam ai classes-estamentos enquanto que na última as classes já não são estamentos.” [11]

Este texto esclarece alguns pontos:

1. Que a divisão em classes existe tanto na sociedade capitalista como em outras onde as relações sociais de produção se organizam em tomo de um mecanismo básico de exploração (sociedade feudal e escravista, em geral, formações sociais onde ainda subsistem regimes ou modos de produção servis ou baseadas na escravidão).

2. Que em todos estes casos se trata, essencialmente do mesmo fenômeno.

3. Que, entretanto, aí onde predominam ou pelo menos subsistem os modos de produção feudal ou escravista, as diferenças de classe se tornam também fixadas por um lugar definido a cada uma delas a nível jurídico – lugar que, insistimos, não é o da geração das classes (que em qualquer modo de produção é o econômico), mas de fixação das mesmas.

De modo que, em termos gerais, poderíamos afirmar que um sistema de estamentos não é senão uma estrutura de classes sobredeterminada, em certos modos de produção, pela intervenção acentuada do nível ideológico, que se encarrega de fixar as divisões de classe como um sistema baseado em diferenças étnicas, culturais ou qualquer outra. (Na América Latina temos exemplos históricos importantes destes dois tipos de sobredeterminação, combinados e ligados à existência de vários modos ou suas sequelas subsistem, o fenômeno é observável e a sociologia continental tem registrado com urna fórmula bem conhecida: “colonialismo interno”).

Mais uma observação sobre este ponto. As superestruturas jurídico-política e ideológica possuem, como já vimos, um grau de autonomia relativa, o qual determina que, uma vez estabelecidos com sua intervenção sistemas estamentais ou de castas, estas podem evoluir também de maneira relativamente autônoma, gerando sucessivas defasagens e contradições. Donde se derivam dois problemas intimamente relacionados entre si:

1. O da não correspondência exata entre a estrutura de classes e sua fixação superestutural em “estamentos” ou “castas”: obviamente, estas e aqueles não reproduzem, como um decalque, a primeira. 2. O conflito, em determinados momentos de transição, entre uma estrutura de classes que evolui em concordância com o desenvolvimento de um novo modo de produção, e os sistemas de “estamentos” ou “castas” que se conservam como sobrevivência das anteriores. Processo dialético que sempre tende a resolver-se de acordo com as necessidades inerentes à reprodução do modo de produção hegemônico.

VI – Articulação das Classes em uma Formação Social

Analisamos até aqui o problema das classes, sobretudo em seu nível teórico mais abstrato, isto é, a nível do conceito de modo de produção. Agora é necessário situar-se em um plano mais concreto, e de uma formação social, para examinar algumas das características que a estrutura da classe pode apresentar neste nível.

I – Em primeiro lugar temos o problema do número de classe que, como se viu, são fundamentalmente dois para cada modo de produção no qual existe um mecanismo de exploração que, no plano das relações sociais de produção, organiza oposições bipolares: proprietários/escravos, senhores/servos, burguesia/proletariado. Entretanto, basta pensar no fato de que uma formação social articula em seu seio vários modos de produção para compreender a razão pela qual o número das classes pode aumentar sensivelmente a neste nível.

2 – Em segundo lugar, a mesma articulação complexa de modos de produção, e ainda de instâncias destes, pode produzir certas “assimetrias” na estrutura de classes de uma formação social.

É bastante conhecida aquela passagem dos GRUNDISSE na qual Marx afirma que “hoje em dia chamamos com justo título capitalistas ao proprietário (escravistas A. C.) das plantações americanas [12]; afirmação que parece fundamentar-se no fato de que tais proprietários atuavam já, a nível da produção mesma, de acordo com as leis próprias da economia capitalista. Seja lá o que for, o certo é que isto coloca necessariamente o problema de uma “assimetria” na medida em que o escravo já não tem frente a si um simples proprietário escravista, e sim um proprietário de escravos que constitui já uma fração da burguesia. Trata-se, desde logo, do que o próprio Marx chamou “uma anomalia no mercado mundial baseado no trabalho livre” [13].

3 – Temos, além disso, múltiplas situações “minas” que já não podem ser conceituadas como simples “anomalias”, e sim, que são fenômenos inerentes à formações acentuadamente heterogêneas ou em processo de transição. Tais situações são, por exemplo, a dos proprietários de terras semicapitalistas (aqueles que na América Latina tem recebido o nome de oligarquia”); ou a do semiproletariado, no qual tanto Lenin insistiu ao estudar a formação social russa:

“… Nos países capitalistas atrasados, como a Rússia, a maioria da população se compõe de semiproprietário, isto é, de homens que durante uma parte do ano vivem como proletários, que se quiserem comer, devem recorrer, em certa medida, ao trabalho assalariado em empresas capitalistas”‘ [14].

4 – A articulação específica de uma formação social chega inclusive a constituir em classe certos grupos sociais que, a rigor não seriam analisados em u nível teórico mais abstrato, o modo de produção. Os camponeses parcelários, por exemplo, cuja forma de produção (mercantil simples) em si mesma não gera classes sociais, se convertem em classes na medida em que suas condições econômicas de existência “os distinguem por seu modo de vier por seus interesse e por sua cultura de outras classes e se opõem a estas de um modo hostil”. Isto é, na medida em que estão articulados de certa maneira no conjunto de uma formação social: submetidos, por exemplo, no caso das formações capitalistas, aos “modos” de exploração, secundários do capital ” (usura, impostos, mecanismos desfavoráveis da troca, etc.) [15].

5 – O caso dos “Iumpeproletariado” é, por sua parte, um bom exemplo de outro tipo de efeitos da estrutura concreta de uma formação social concreta sobre o sistema de classes. No nível mais abstrato da análise, certo fenômeno (que na América Latina tem sido percebido ideologicamente como “marginalidade”) pode ser conceituado a presença de um “exército industrial de reserva”, de uma “massa marginal” ou de uma combinação de ambas. Entretanto, é evidente que entre estes conceitos e o de “Iumpeproletariado” não existe uma estrita homogeneidade teórica. Este último conceito só pode ser constituído (como fizeram Marx e Engels em muitas de suas obras [16]), tendo-se em conta certos efeitos secundários da matriz de uma formação social, e em especial, o modo à que que ela gera em certos níveis. Isto é, considerando essa esfera da vida extraprodutiva que se caracteriza pelas condições materiais as relações entre os homens e as formas de sua atividade vital.” [17] Fator que, está claro, s6 possui relevância quando se trata de grupos distintos das classes sociais fundamentais e cuja situação se define, juntamente, por sua não inserção nas relações básicas de produção.

6 – Finalmente, a articulação dos modos de produção em uma formação social pode produzir situações extremamente complexas, naqueles momentos de transição em que dois ou mais modos de produção exercem seus efeitos sobre um mesmo grupo concreto, colocando-o em uma situação de classe ambivalente. Tal seria a situação que Lenin analisa no seguinte texto:

“Pomos entre aspas a palavra “campesinato” para assinalar a existência neste caso de uma contradição que está fora de toda dúvida: na sociedade contemporânea o campesinato já não é, naturalmente, uma classe indivisa. E quem se surpreender com tal contradição se esquece de que não se trata de uma contradição derivada da exposição, ou implícita na doutrina, senão de um contradição da vida mesma. Não é uma contradição inventada, mas uma contradição dialética viva. Enquanto a sociedade do regime de servidão está sendo deslocada de nosso agro pela sociedade “contemporânea” (burguesa), o campesinato deixa de ser uma classe, dividindo-se em proletariado agrícola e burguesia rural (grande, média, pequena e pequeníssima). Enquanto se conservam ainda as relações do regime de servidão, o “campesinato” segue sendo uma classe, isto é, uma classe não da sociedade burguesa, e sim da sociedade do regime de servidão. Estes “enquanto” representam uma realidade viva que se manifesta nesse complexíssimo entrelaçamento das relações próprias do regime burguês que se observa atualmente no agro russo. Expressando-se nos termos usados por Marx, diremos que a renda em trabalho, a renda em espécie, a renda em dinheiro e a renda capitalista se entrelaçam em nosso país de maneira mais caprichosa” [18].

VII – Estrutura, Processos, Historicidade Concreta

Como já estamos vendo, as classes são definíveis, primeiro em um nível teórico altamente abstrato que é capitado pelo conceito de modo de produção; depois, são apreensíveis em um plano mais concreto, quando as estudamos organizadas e redefinidas por sua articulação específica em uma formação social. Entretanto, ainda há algo mais que devemos sublinhar: as classes não formam parte de uma realidade estática, mas sim de totalidades orgânicas “em movimento”; isto é, de estruturas que são ao mesmo tempo processos. E é este movimento histórico, precisamente, o que confere sentido a sua articulação.

Lênin escreve, por isso, o que segue, referindo-se ao problema colocado na citação precedente:

…No campo russo coexistem dois tipos de contradições de classe: em primeiro lugar, as contradições entre os trabalhadores ente todo o campesinato e toda a classe dos proprietários de terra. A primeira contradição cresce e se desenvolve; a segunda vai se debilitando pouco a pouco. A primeira pertence ao futuro; a segunda, em medida considerável, ao passado. [19]

Com efeito, em um corte estrutural instantâneo (“sincrônico” se se quiser), o entrelaçamento das classes no agro russo igual que o dos distintos tipos de renda, poderiam parecer “caprichosos” (termo que é apenas uma imagem do texto de Lenin); porém, tendo em vista que esta estruturação de classes forma parte de uma processo, os sistemas de contradições que nela se entrelaçam adquirem uma hierarquia e um sentido: um deles pertence, a rigor, ao “passado”, o outro ao “futuro”; este cresce e se desenvolve aquele vai-se debilitando paulatinamente.  Mas não há só isto. As classes, como já vimos, não são unicamente efeitos passivos da infra-estrutura econômica da sociedade, e sim, através dos níveis políticos e ideológicos, se convertem em verdadeiros agentes sociais e, neste sentido, têm uma história, sua própria história. Assim, grande parte dos “camponeses” protagonistas do movimento revolucionário mexicano da década de 1910, por exemplo, eram já “peões” assalariados ou pelo menos semi-assalariados. Fixando-se só nestes dados, até seria possível demonstrar que nos anos da revolução o “proletariado” já era o grupo predominante entre os pobres do campo. No entanto, como explicar a ideologia e o comportamento político dos dois grandes movimentos agrários da época se não se tem em conta o fato de que aqueles “assalariados” que os integravam não constituíam ainda um proletariado no sentido estrito, e sim, em sua historicidade concreta, um campesinato em curso de proletarização?

Exemplos como estes poderiam multiplicarem-se ao infinito; mas o que nos interessa enfatizar é só uma questão de princípio: sem a recuperação daquela historicidade, a análise marxista corre o risco de não poder cumprir com uma de suas finalidades primordiais – a explicação cabal dos processos históricos concretos.

VIII – Frações e Estratos de Classe

A análise da estrutura de classes em uma formação social dada apresenta um problema a mais, derivado do fato de que as classes não são conjuntos absolutamente homogêneos, mas sim que em seu seio apresentam subdivisões importantes, que geram toda uma série de contradições secundárias no corpo social e até podem constituir um fator de primeira importância nos processo, tais como o da crise de hegemonia (quando aquelas contradições se exacerbam no seio da burguesia).

O problema das frações de classe só pode ser resolvido, naturalmente, mediante a análise concreta de cada situação concreta. Aqui nos limitaremos a oferecer algumas indicações gerais, tomando como ponto de referência o caso da formação capitalista.

1 – Um primeiro fator determinante para a formação de frações de classe é, no que se refere à burguesia, o das diferentes formas de existências do capital. A colocação deste como capital industrial, comercial ou financeiro, cria frações de classe que são, respectivamente, a burguesia industrial, a burguesia comercial e a burguesia financeira. Esta é só uma indicação de ordem geral, insistimos, pois cada situação concreta tende a se tornar pertinente dependendo da situação diferencial. Na América Latina, por exemplo, a localização do capital na indústria urbana ou na agricultura parece haver sido um dos fatores de fracionamento da burguesia, é claro, ali onde o capital investido em um ou outro setor não era capital imperialista.

2 – Um segundo fator, muito importante, é o da articulação da burguesia com determinada fase do desenvolvimento do capitalismo. A divisão da burguesia em monopolista e não monopolista, por exemplo, se refere a este aspecto e, remete ao problema das relações com o capital imperialista e ao de determinar a existência ou não existência de uma burguesia nacional. E é necessário ter bem presente este critério, para não confundi-lo com outros, como o do montante de riquezas, as diferenças “culturais”, etc. Assim, o que separa os proprietários de grandes plantações (grandes burguesias agrárias), por exemplo, dos chamados camponeses “ricos” (média burguesia agrária), e os converte em frações de classe distintas, não é o fato de que estes sejam menos “ricos” que aqueles, nem, menos ainda, o de que os primeiros possuem uma cultura “urbana” e os segundos uma cultura “rural”. O que os separa realmente é sua locali7ação em fases distintas, ainda que cronologicamente simultâneas, do modo de produção capitalista: os proprietários de grandes plantações pertencem á fase monopoliza, os camponesa ricos não.

3 – O único caso em que o montante da “riqueza” e a renda adquirem relevância como indicador de estratificação no seio de uma mesma classe é quando se trata de pequena burguesia. Isso, porém, obedece a situação específica desta classe (de “transição”), cuja dinâmica de dissolução se busca captar através deste indicador. Em suma, não se trata de descobrir sua estratificação presente como significativa em si mesma, mas sim pela tendência à proletarização ou ao aburguesamento que aquela revela (veja-se, a respeito, as análises de Mao-Tse-Tung sobre a pequena burguesia na sociedade chinesa [20]).

4 – No caso da pequena burguesia também pode estabelecer-se uma diferenciação segundo as situações estruturais em que ela se gera: a produção artesanal, o pequeno comércio e a produção pequeno-camponesa. Critério que adquire pertinência na medida em que o desenvolvimento sempre desigual do capitalismo produz efeitos diferenciadores sobre cada um daqueles setores.

5 – No que concerne ao proletariado, o problema das frações ou estrato parece estar muito menos definido na teoria marxista que para o caso da burguesia. Lenin, por exemplo, escreve o seguinte:

“Só uma classe determinada, a saber, os trabalhadores urbanos e em geral os trabalhadores fabris, os trabalhadores industriais, está em condições de dirigir toda a massa de trabalhadores e explorados na luta para derrotar o jugo do capital, no processo de sua derrota, na luta por manter e consolidar o triunfo, na criação do novo regime social, do regime socialista, em toda a luta pela supressão completa das classe” [22].

Esta passagem poderia ser interpretada, evidentemente, no sentido de que só aqueles trabalhadores constituem o proletariado. Entretanto, o problema não é tão simples: por que Lenin empregaria, então, a expressão trabalhadores urbanos?

Se poderia entender que este último termo está destinado a assinalar uma diferença entre proletariado urbano e rural e tirar a conclusão de que certas sobredeteminações que pesam sobre o segundo o convertem em uma fração de classes que necessita da direção ideológica do primeiro.

Ademais, fica pendente o problema dos trabalhadores assalariados do setor comercial, a cujo problemático estatuto se referiu Marx em algumas passagens d’ O Capital. Admitindo-se, como parece o mais acertado, que eles também formam parte do proletariado [23], de fato constituíram uma fração do mesmo. Marx assinala, justamente, que entre os trabalhadores assalariados do setor comercial e “os trabalhadores empregados diretamente pelo capital industrial, há necessariamente, a mesma diferença que entre o capital industrial e o capital comercial e a que existe, portanto, entre o capitalismo industrial e o comerciante” [24]. Em termos semelhantes se poderia colocar o problema dos assalariados do setor financeiro e aquelas atividades que contribuem para a realização da mais valia (a publicidade, por exemplo).

6 – Finalmente, há certos efeitos secundários do econômico – o montante das remunerações – que pode chegar a criar um estrato superior diferenciado no seio do proletariado. Mais concretamente: quando sobre a base desta diferenciação a ideologia burguesa produz efeitos, ocorre a formação do estrato ao qual Lenin denominou “aristocracia trabalhadora”.

Este estrato, como o próprio Lenin assinala, surge nos países imperialistas, onde “lucros monopolistas elevados … engendram a possibilidade econômica de subornar as camadas superiores do proletariado [25], pode desenvolver-se também nos países dependentes, e sobretudo nos enclaves imperialistas que há em seu interior (a “aristocracia trabalhadora” das minas de Chuquicamata e El Teniente, no Chile, é o melhor e mais recente exemplo disso).

IX – O Problema das “Classes Médias”: A Pequena Burguesia

O termo “classe” ou “classes médias”, cujo uso no singular ou plural denuncia por si mesmo certa ambiguidade conceitual, tem sido objeto de múltiplas controvérsias e, na sociologia não marxista, tem servido “de caixa de costureira (lugar onde cabe tudo)” na qual se juntam elementos tão dissimilares como a média burguesia, os pequenos capitalistas, os trabalhadores que alcançam certo nível de remuneração, os intelectuais, a tecnoburocracia, etc. Toma-se inútil insistir no esquema ideológico que inspira esta “classificação”: a respeito, talvez não haja exemplo mais significativo que o conhecido livro de J.J. Johnson “La Transformación de América Latina. Surgimento de los Estratos Medios” [26].

Ademais, é justo reconhecer que nos próprios clássicos do marxismo o termo “classes” ou “estamentos”, jamais inclui neles setores tais como os intelectuais ou a burocracia, que por si mesmos não tem, na teoria marxista, o estatuto de classe social.

Em segundo lugar, a tendência predominante entre os clássicos vai no sentido de chamar “classes” ou “estamentos médios” ao grupo constituído pelos pequenos industriais, os pequenos comerciantes, os artesãos e os pequenos produtores camponeses (no Manifesto, por exemplo). Só assim podem entender-se, ademais, reflexões como a seguinte, que são a base de todas as conceitualizações marxistas sobre as “classes médias”:

“As classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses -combatem a burguesia porque esta compromete suas existências como classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da história. Quando são revolucionárias é em consequência de sua eminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocarem no do proletariado” [27].

Por que esta iminência de ruína e esta oposição em princípio “reacionária” à burguesia? Porque estes “estamentos”, aos quais em outros textos dos clássicos se chamam com maior propriedade pequena burguesia, a rigor não pertencem ao modo de produção capitalista, e sim que se originam em uma forma específica de produção: a forma de produção mercantil simples. E esta forma, sempre dependente de algum modo de produção fundamental (ver o item II deste trabalho), se vê ameaçada de ruína ao enfrentar-se com processos tais como o rápido desenvolvimento das forças produtivas e a concentração de capitais; processos que tendem a dissolver (“decompor”, nos termos de Lenin) a pequena burguesia como classe e empurrar seus membros até posições polares do modo de produção capitalista (uma ínfima parte da pequena burguesia logra incorporar-se efetivamente à burguesia enquanto a grande maioria de seus membros passa a engrossar as filas do proletariado).

Por isso, a pequena burguesia é conceituada, no marxismo, como uma classe de transição. Entretanto, não se pode fazer uma representação simplista desta situação de transitoriedade. Se bem que é certo que a lógica econômica do capitalismo vai no sentido da extinção da forma de produção mercantil simples e da classe a ela ligada, não é menos certo que, a curto e médio prazo, a lógica política do mesmo sistema pode operar em sentido contrário. Em sua luta de classe contra o proletariado, a burguesia necessita apoiar-se, muitas vezes, na pequena burguesia, o que a miúde determina a “sobrevivência” desta classe além dos limites que só a lógica econômica do capitalismo lhe fixaria.

Surgida da forma de produção mercantil simples, a pequena burguesia inclui também em sua composição orgânica um setor social que não é propriamente produtivo, mas que se origina no plano da circulação correspondente à esta forma: o pequeno comércio. Todos estes setores se constituem em classe, como já vimos, por sua forma de articulação em uma formação social capitalista, e o limite que os diferencia da burguesia propriamente dita, e em especial dos pequenos capitalistas com quem normalmente tendem a se confundir, é o de sua não inserção nas relações capital-trabalho assalariado: “ampla massa de produtores não envolvida diretamente na luta entre o capital e o trabalho” [28], como disse Marx, referindo-se aos camponeses parcelários. A pequena burguesia é pois aquela classe que se caracteriza por trabalhar “por conta própria” em sua oficina, seu negócio ou seu terreno, apoiando-se no trabalho pessoal do proprietário e sua família e ocupando, só de maneira eventual e secundária, pessoal extra-familiar assalariado.

Como é fácil observar, esta concepção marxista da pequena burguesia difere bastante do que em geral se entende por “classe média” na América Latina: diferença que, ademais, é a melhor ilustração de como o marxismo não deriva a estrutura de classes de uma escala de renda ou de riqueza, senão de posições estruturais bem definidas. Esta situação estrutural tende, por outra parte, a produzir efeito-ideológicos-políticos muito específicos no caso da pequena burguesia:

1 – Em primeiro lugar, a dificuldade de perceber as relações de exploração. A pequena burguesia “não está em condições de compreender o caráter de classe desta exploração e opressão que sobre, as vezes, não menos que o proletariado” (Lenin)”, precisamente porque as sofre através dos “modos de exploração secundários do capital” (conferir no Item IV), e não através de uma inserção direta na luta entre o capital e o trabalho.

2 – Dificuldade, pela mesma razão, de perceber o caráter de classe do Estado burguês, no qual a pequena burguesia tende a ver, como que um poder “arbitrai” e protetor: “uma autoridade acima deles… um poder ilimitado do Governo que os proteja das demais classes e lhes envia desde o alto a chuva e o sol” (Marx).

3 – Enfim, uma ilusão persistente de “independência” (representação ideológica da condição de pequeno proprietário), exacerbada pelo temos à proletarização que, manipulado pela ideologia dominante, deriva, amiúde, para posições políticas abertamente antiproletárias (processos de fascistização).

X – As Camadas ou Categorias Sociais (Intelectuais e Burocracia)

Restaria estudar a situação de alguns grupos sociais específicos, como os intelectuais e a burocracia, que segunda a teoria marxista não constituem classes sociais propriamente ditas. E não o são, porque tais grupos, aos que se pode denominar camadas ou categorias não se geram no nível da matriz econômica de um determinado modo de produção, mas surgem no nível superestrutural, seja na instância jurídico-política (caso da burocracia), seja na ideológica (caso dos intelectuais).

Gramsci, que empregava o termo de “intelectuais” para designar tanto os intelectuais, propriamente ditos, como os quadros burocráticos, legou-nos uma nítida reflexão a respeito:

“A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como corre com os grupos sociais fundamentais, mas passa pela “mediação” em grau diferente, de todo o tecido social, do mesmo complexo superestrutural de que os intelectuais são, precisamente, os funcionários”. [31]

Assim, o fato mesmo de que os intelectuais – no sentido do gramsciano do termo – sejam “os funcionários” do “complexo superestrutura]” nos assinala uma questão importante: posto que estas superestururas estão compostas de aparelhos e ideologias de classe, tais “funcionários” não estão situados à margem da estrutura de classes de uma sociedade determinada, mas integrados a ela de uma maneira específica e complexa (com “mediações” múltiplas, para retomar o termo de Gramsci).

No caso da burocracia, o problema se apresenta em uma primeira aproximação, com bastante nitidez: ela constitui precisamente o quadro administrativo-repressivo do maior aparato encarregado de assegurar a reprodução estrutural que por si mesma nos indica já o vínculo básico que necessariamente se estabelece entre a burocracia e a classe ou classes dominantes, além dos nexos empíricos que entre elas possam existir.

Entretanto, há alguns elementos que se devem ter em conta para uma análise mais concreta da inserção da burocracia na estrutura de classes:

1. A autonomia relativa de que goza a burocracia, autonomia que inclusive lhe permite atuar, conjuntamente, contra tal ou qual interesse imediato da classe dominante e, portanto, fazer valer seus interesses próprios de burocracia. Tudo isto, dentro do limite estrutural anotado acima.

2. A situação diferencial que se pode criar o seio da burocracia, segundo se trate dos quadros administrativos ou dos repressivos propriamente ditos (daí as conhecidas “depurações” de empregados públicos que geralmente acompanham os golpes de Estado na América Latina, por exemplo).

3. A estratificação interna da burocracia, que cria diferenças, às vezes, significativas, entre “alturas” e a “base”.

4. A origem social da burocracia em seus distintos níveis, segundo as classes ou camadas sociais em que tal burocracia é recrutada em cada formação social.

5. Os efeitos secundários do econômico: nível de remuneração, etc… No que se refere aos intelectuais enquanto tais (aqueles cuja atividade social fundamental consiste na produção e transmissão de ideias, imagens e representações em geral), importa ter presente que o que decide, em última instância, sua ligação com uma classe determinada, é a representação ideológica que eles assumem, voluntária ou involuntariamente. É a tese formulada por Marx nesta passagem do DEZOITO BRUMÁRIO:

“Tampouco se deve crer que os representantes democráticos (do partido social-democrata, A. C.) são todos shop-keepers ou pessoas que se entusiasmam com eles. Podem estar a um mundo de distância deles, por sua cultura e sua situação individual. O que os faz representantes da pequena burguesia é que não vão além, enquanto mentalidade, de onde vão os pequenos burgueses em seu modo de vida; que, portanto, se veem teoricamente impulsionados aos mesmos problemas e às mesmas soluções a que são impulsionados aqueles, praticamente, o interesse material e a situação social. Tal é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe por eles representadas”. [32]

Os intelectuais, então, ainda que constitua, enquanto tais, uma camada social específica nas formações capitalistas”, estão permeados pelas contradições de classe expressas na superestrutura (as que, desde logo, também impregnam, em maior ou menor grau, a burocracia). Inclusive aqueles intelectuais cujas atividades se desenvolveram no seio de instituições estatais ou paraestatais – ensino, por exemplo – estão profundamente permeados por ditas contradições.

As tendências ideológicas que se manifestam entre os intelectuais estão, evidentemente, determinados por múltiplos fatores: estatuto geral do intelectual na sociedade, desenvolvimento concreto da luta de classes, origem social predominante, efeitos secundários do nível econômico, etc. Por último, não se deve esquecer que a esfera ideológica goza de uma autonomia relativa, que, em determinadas circunstâncias, pode permitir que os intelectuais adquiram um peso próprio e até sejam capazes de gerar subconjuntos ideológicos relativamente autônomos.


Texto originalmente publicado neste link.

NOTA DOS TRADUTORES: As anotações em português foram copiadas das obras nesta língua que os tradutores tinham em mãos. Outras foram traduzidas diretamente do espanhol para a melhor compreensão dos leitores, ainda que não tenham sido fiéis às traduções oficiais.

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