Texto originalmente publicado no livro “Amílcar Cabral – Unity and Struggle”, lançado em 1979 e traduzido para o inglês por Michael Wolfers.
Tradução por Dio Costa.
No contexto do princípio de democracia revolucionária, ao qual já nos referimos diversas vezes, cada trabalhador responsável deve suportar sua responsabilidade bravamente, deve demandar respeito dos outros às suas atividades e deve demonstrar respeito às atividades de outros.
No entanto não devemos esconder nada da nossa gente, não devemos enganar nossa gente. Enganar nossa gente é construir a fundação para a calamidade no nosso partido. Nós devemos combater isso em alguns camaradas vigorosamente. Nós não podemos permitir que a população venha para a partição buscar mercadorias para as lojas do povo, por exemplo, e uma vez que tenham chegado se verem obrigadas a carregar material de guerra. Fazer isso é se comportar pior que os colonialistas, é abusar da nossa autoridade, abusar da boa fé e da boa vontade do nosso povo. É preferível dizer francamente para elementos da população que eles devem se preparar para ir buscar material de guerra, porque a guerra é para o nosso país, e que se eles não querem ir, eles serão presos e levados a força. Se necessário eles podem ser presos, mas eles precisam saber para onde estão indo. Isso é melhor que mentir, trapacear e desviar o olhar dos olhos do povo, porque eles, apesar da miséria e do sofrimento, são como qualquer outro povo, e sabem a diferença entre uma verdade e uma mentira, justiça e injustiça, bom e mal, e eles são espertos o suficiente para perder o respeito para qualquer um que tenha mentido para eles.
Precisamos botar um fim na mentira, precisamos ser capazes de não enganar ninguém sobre as dificuldades da luta, sobre os erros que cometemos, as derrotas que podemos sofrer, e nós não podemos achar que a vitória é fácil. Nem podemos acreditar em rodeios como “parece que” ou “eu pensei que”. Esse é um dos grandes defeitos de alguns camaradas. “Camarada, como isso aconteceu?” – “parece que…” Isso não tem utilidade para quem está fazendo uma revolução, para quem busca o progresso e a felicidade do seu povo através de uma luta de libertação. Precisamos estar cientes disso.
Existem camaradas que não são capazes de reportar claramente o que está acontecendo na área em que estão. Felizmente há outros que são. Eu estou focando nos aspectos negativos, mas vocês todos sabem que há muitos aspectos positivos. É exatamente por isso que nós estamos sentados aqui e seria desastroso para nós se só houvessem aspectos negativos. Mas o meu dever é apontar o que não está indo bem, para que a gente possa evoluir e seguir em frente. Nós confiamos em aparências, nossa imaginação; nós temos a tendência de confiar na nossa imaginação.
Democracia revolucionária exige que a gente combata todo oportunismo, como já falei pra vocês, e que a gente combata também a atitude que alguns camaradas têm de serem muito precipitados em perdoar erros. Eu sou um trabalhador responsável, você comete um erro, e eu te perdoo com a seguinte intenção: de que agora você sabe que está em minhas mãos. Isso não é aceitável. Ninguém tem o direito de perdoar erros sem antes discuti-los em frente a todo mundo. Porque o partido é nosso, para todos nós, não para cada um de nós mas para todos nós. Nós achamos muito fácil desculpar camaradas. Nós encontramos desculpas rapidamente, e nós precisamos combater isto. Chegou o tempo de parar de achar desculpas. Há trabalho a ser feito; deve ser feito e feito bem, sem desculpas.
Nós podemos achar todo tipo de desculpa. Existem trabalhadores responsáveis cujo trabalho consiste em achar desculpas para seu grupo não ter feito nada, em tentar explicar para a liderança do Partido o porque de nada ter sido feito – dificuldades no terreno, escassas condições, o avanço do inimigo, há bombardeio pesado, etc, etc. Eles fazem isso ao invés de um esforço para superar todas as dificuldades. Luta é o seguinte: permanente vitória sobre as dificuldades. Se não houvessem dificuldades, não haveria luta, seria um passeio, um lanche no parque.
Nós devemos combater toda a tendência a amizades e camaradagens que não servem nada ao Partido para além de coçar as costas uns dos outros, o que não é de interesse do Partido e do nosso povo. A gente sabe que isso acontece no nosso Partido. Há camaradas que desmoronam quando seu companheiro de luta se muda, eles não podem mais viver com a ausência do seu companheiro de luta. Nós precisamos combater isso enfaticamente no nosso próprio pensamento e no pensamento de outros. Não há ‘companheirismo’ aqui se não for para servir o Partido, para servir o povo no nosso país. Não há ‘companheirismo’, camaradagem ou amizade, para sentarmos bebendo cachaça ou vinho de palma, ou em esconder de outros camaradas o que alguém faz com as meninas novas do nosso país, ou esconder erros relacionados à luta armada, por exemplo, ou em nos mantermos em silêncio quando um trabalhador responsável não luta como deveria. Isso é uma traição ao nosso Partido e nosso povo, e serve aos Portugueses; é amizade do lado dos Portugueses. Nós temos isso entre a gente, e devemos combate-lo duramente e bravamente. Vocês todos sabem que isso existe e infelizmente alguns de vocês são culpados disso.
Nosso critério para amizade, companheirismo ou camaradagem, deveria ser o seguinte: você é digno, respeite as palavras de ordem do partido corretamente, você é meu camarada, você é meu amigo. Se você não fizer isso, seria melhor ir se juntar aos oportunistas ou aos lacaios dos Portugueses. Mas nossa paixão por amizade é tão forte, que camaradas nossos que sabem que alguém é agente dos Portugueses, são capazes de passar tempo na sua casa, frequentar sua casa, comer na sua casa, beber na sua casa. Me fale se isto está certo. Mas camaradas dizem: ‘eu conheço aquela pessoa por um longo tempo’, ou ‘ele é parente da minha mãe’. Isso mostra uma falta de clareza política ou ainda uma falta de clareza sobre os sacrifícios que nosso povo está fazendo pela luta. Mas mesmo líderes do partido fazem isso. Felizmente, parece que está chegando a um fim.
Então nós temos este exemplo: todos sabem que um dado companheiro cometeu um sério erro no Partido, dentro ou fora do país, e foi chamado. Nós estamos esperando por ele. Ele chega e todos os camaradas se levantam com abraços e beijos e tudo o mais como se ele fosse o melhor camarada do mundo. O que é essa falta de clareza? O que essa falta de senso de responsabilidade? Se alguém é indigno, nós precisamos mostrar para ele que ele é indigno. Não há amizade, não há consideração por ele. Ele deve ser colocado de lado.
Chegou-se o tempo de nós sermos amigos de quem é digno, mas aqueles que não tem valores não podem ser nossos camaradas, nossos amigos. Qualquer um que trair o Partido, que tentar nos dividir, que fizer planos para sabotar o Partido, que serve o inimigo, que conspira com os inimigos do nosso Partido não pode mais sentar conosco, não pode mais comer com a gente no mesmo prato, não pode mais beber do mesmo copo ou caneca, não pode mais dormir na mesma cama. Ou nós somos capazes de distinguir os dignos dos indignos ou não vale a pena continuar com a nossa luta como temos feito, porque cedo ou tarde nós iremos nos afogar em um mar de grande confusão que nós mesmos criamos.
Insubstituíveis
Nós devemos evitar a obsessão de alguns companheiros de que tudo está perdido, tudo se acabou se eles tiverem que deixar o posto onde estão. Ninguém é insubstituível nessa luta; nós somos todos necessários mas ninguém é insubstituível. Se alguém tiver que ir e vai e a luta se paralisa, é porque a luta não tinha sentido. O único orgulho que temos hoje, que eu mesmo tenho, é a certeza de que, depois do trabalho que já concluímos, se eu tivesse que ir embora, fosse parado, morto ou sumisse, existem aqueles aqui no Partido que podem continuar com as tarefas do Partido. Se não fosse assim, então que desastre; nós não teríamos alcançado nada. Pois um homem que tem uma conquista que somente ele pode carregar, ainda não fez nada. Uma conquista tem seu valor na medida em que é uma conquista de muitos e se há muitos que a podem levantar e carrega-la mesmo que um par de mãos seja levado embora.
Mas há camaradas que têm obsessões de que se eles deixarem seu lugar, tudo estará arruinado. Essa é uma obsessão que precisamos combater, que precisamos impedir de continuar. Isso é sem mencionar os casos de outros camaradas que pensam que quando forem transferidos morrerão, pois eles já estabeleceram todas as condições para trabalhar em um local e são chamados para irem para outro. Que cegueira! Como se nosso país fosse somente o seu pequeno cantinho! Isso mostra uma falta de clareza do real motivo, do objetivo e das características da nossa luta.
Nós devemos ser capazes de ficar com a verdade, de falar a verdade perante todos, sem medo, mesmo que a verdade carregue algumas dificuldades. Nós devemos dizer a exata verdade cara a cara.
Militantes não devem temer nenhum trabalhador responsável no espectro do nosso Partido. Qualquer um que tiver medo ainda não entendeu ou é um covarde por natureza. Nosso partido deu a todos a mesma força para não temer de ninguém. Nós temos dito que estamos lutando para por um fim aos temores entre o nosso povo na Guiné e em Cabo Verde. Nós não devemos temer ninguém. O militante mais raso não deve ter medo de ninguém, nem do secretário-general, nem de ninguém. Ele deve demonstrar o devido respeito, pois isso é o caso de auto-respeito.
Trabalhadores responsáveis não devem temer os militantes. Existem trabalhadores responsáveis de quem militantes e combatentes tem medo. Estes são chefes bárbaros da antigamente, eles não são líderes ou trabalhadores responsáveis do PAIGC. Mas eles algumas vezes temem os militantes. Se eles ouvem os militantes conversando eles querem saber sobre o que é, porque eles temem que os militantes irão causar dificuldades para eles com a liderança do Partido. Precisamos botar um fim nisso.
Democracia revolucionária demanda em efeito que trabalhadores responsáveis e líderes devam viver entre o povo, ante o povo, atrás do povo. Eles devem trabalhar para as pessoas na certeza de que estão trabalhando para o povo do nosso país. E nós devemos lutar para que acima de tudo o povo sinta que é ele neste país que tem o poder nas mãos. Até agora ele não tem sentido muito isso. Nas áreas liberadas alguns camaradas usurparam esse poder do nosso povo. Nós devemos entregar ele nas mãos do nosso povo. Nós ainda estamos em guerra e ainda é um pouco difícil. Mas na medida que avançamos nós temos que entregar poder ao nosso povo para que ele tenha a certeza de que de fato o poder é dele.
Ninguém no partido deveria temer perder poder. Muitos países vieram à ruína porque os governantes tiveram medo de perder a liderança. Nós não devemos temer nada. Nós devemos contar a verdade francamente para o nosso povo, para os nossos militantes, para os nossos camaradas. Se eles não estão felizes e poderiam, eles irão nos perseguir, nos jogar para fora. Mas nenhum de nós deve ter medo de nada, nós não devemos esconder a verdade para preservar nossa posição. Isso seria uma traição aos interesses do povo, do nosso país e a todos aqueles que depositaram sua confiança em nós.
Nós não devemos enganar o povo com belas palavras, com falsas promessas. Nós devemos contar para ele francamente as dificuldades. Em uma reunião em Boé, por exemplo, a população disse para mim: ‘Nos mande isso, aquilo. Nós queremos isso, aquilo, etc. na loja.’ Eu respondi a população: ‘Não. Nós não podemos fazer isso e aquilo. O que nós estamos mandando já é um grande sacrifício. Se vocês não estão satisfeitos, façam o que quiserem, até mesmo deixem o Partido, mas nós não enviaremos. Vocês devem lembrar que não são os únicos com necessidades. Outras pessoas no nosso país também têm necessidades.’ Eu tomei essa oportunidade de estar com nossos apoiadores para ensiná-los, para esclarecer para eles, não para contar-lhes mentiras, ou enganá-los com falsas promessas. Eles todos entenderam.
Como eu disse, nós devemos avançar constantemente para colocar poder nas mãos de nosso povo, para causar uma profunda mudança na vida do nosso povo, até para colocar todos os meios de defesa nas mãos do nosso povo, para que seja o nosso povo a defender a nossa revolução. Isso é o que democracia revolucionária será de fato amanhã em nosso país. Qualquer um que governa seu povo mas tem medo do seu povo está em um mal caminho. Nós não devemos nunca temer o povo.
No espectro da democracia revolucionária, como eu já disse, nós devemos trazer adiante os melhores filhos e filhas do nosso país. Os piores e os indignos devem ser deixados atrás. Nossa tarefa é preparar a nossa enxada, nosso arado, nosso martelo, com os quais nós iremos construir o futuro do nosso povo em liberdade, progresso e felicidade. Que nós constantemente melhoremos nosso Partido, porque quanto melhor nosso Partido for, mais certeza teremos de atingir o que queremos para o nosso povo. Por essa razão nós devemos, como já dissemos, agir para que nosso Partido pertença cada dia mais àqueles que tem a capacidade de deixa-lo constantemente melhor.