Artigos de José Carlos Mariátegui sobre Trotsky

Os três presentes artigos (O Partido Bolchevique e Trotksy, “Trotsky e a Oposição Comunista” e “O Exílio de Trotsky”) foram publicados durante a década de 1920.

Disponíveis em espanhol no livro Política Revolucionaria – contribución a la crítica socialista: la escena contemporânea y otros escritos – Tomo 1.

Tradução por Ian Cartaxo.


O Partido Bolchevique e Trotksy

31 de janeiro de 1925

Nunca no mundo um ministro cair teve uma tão extensa e intensa ressonância quanto a queda de Trotsky. O parlamentarismo se habituou no mundo à crises ministeriais. Porém, a queda de Trotsky não é uma crise de ministério, mas uma crise de partido. Trotsky representa uma fração ou uma tendencia derrotada dentro do bolchevismo e várias outras circunstancias convergem, nesse caso, para a excepcional sonoridade da queda. Em primeiro lugar, a qualidade do líder em desgraça. Trotsky é um dos personagens mais interessantes da história contemporânea: condottiere da revolução russa, organizador e animador do exército vermelho, pensador e crítico brilhante do comunismo. Os revolucionários de todos os países acompanharam atentamente a polêmica entre Trotsky e o estado-maior bolchevique. E os reacionários não dissimularam sua vaga esperança de que a dissidência de Trotsky marque um começo da dissolução da República Soviética.

Examinemos o processo do conflito.

O debate que causou a separação de Trotsky do governo dos soviets vem sendo o mais apaixonado e ardoroso de todos os que agitaram o bolchevismo desde 1917. Tendo durado mais de um ano. Foi aberto por um memorando de Trotsky ao Comitê Central do Partido Comunista. Nesse documento, em outubro de 1923, Trotsky informou a seus camaradas duas questões urgentes: a necessidade de um “plano de orientação” para a política econômica e a necessidade de um regime de “democracia operária” no partido. Sustentava Trotsky que a Revolução Russa entrava em uma nova etapa. A política econômica deveria dirigir seus esforços para uma melhor organização da produção industrial que reestabelecesse o equilíbrio entre os preços agrícolas e os preços industriais. E que deveria se fazer efetiva na vida do partido uma verdadeira “democracia operária”.

Essa questão da “democracia operária” que dominava o conjunto das opiniões, necessita ser precisada e esclarecida. A defesa da revolução forçou o Partido Bolchevique a aceitar uma disciplina militar. O Partido era governado por uma hierarquia de funcionários escolhidos entre os elementos mais destacados e mais doutrinados. Lênin e seu estado-maior foram investidos pelas massas de plenos poderes. Não era possível defender de outro modo a obra da revolução contra os assaltos e espionagens de seus adversários. A admissão no Partido tinha de ser severamente controlada para impedir que se infiltrasse em suas fileiras gente carreirista e equivocada. A “velha guarda” bolchevique, como se denominava os bolcheviques da primeira hora, dirigia todas as funções e atividades do Partido. Os comunistas concordavam unanimemente que a situação não permitia outra coisa. Mas, quando a revolução chegou ao seu sétimo aniversário, começou a surgir no Partido Bolchevique um movimento a favor de um regime de “democracia operária”. Os novos componentes reclamavam que lhes reconhecesse o direito de participação ativa na eleição dos rumos e dos métodos do bolchevismo. Sete anos de experimento revolucionário tinham preparado uma nova geração. E em alguns núcleos da Juventude Comunista não tardou de fermentar a impaciência.

Trotsky, apoiando as reivindicações dos jovens, disse que a velha guarda constituía quase uma burocracia. Criticava sua tendência em considerar a questão da educação ideológica e revolucionária da juventude a partir de um ponto de vista pedagógico mais que de um ponto de vista político. “A imensa autoridade do grupo de veteranos do Partido – dizia – é universalmente reconhecida. Porém somente por uma colaboração constante com a nova geração, no contexto da democracia, a velha guarda conservará seu caráter e fator revolucionário. Senão, pode converter-se insensivelmente na expressão mais acabada do burocratismo. A história nos oferece mais de um caso desse gênero. Citemos como exemplo mais recente e impressionante: dos chefes dos partidos da Segunda Internacional. Kautsky, Bernstein, Guesde, eram discípulos de Marx e de Engels. Sem embargo, na atmosfera do parlamentarismo e sob a influência do desenvolvimento automático do organismo do partido e dos sindicatos, esses líderes, total ou parcialmente, caíram no oportunismo. Na véspera da guerra, o formidável mecanismo da social-democracia, amparado pela autoridade da antiga geração, havia empregado o mais potente freio no avanço revolucionário. E nós, os “velhos” devemos dizer que nossa nova geração, que compreende com naturalidade o papel do dirigente no Partido, não estaria absolutamente prevenida contra o enfraquecimento do espírito revolucionário e proletário em si, caso o Partido tolerasse o avanço de métodos burocráticos.”

O estado-maior do bolchevismo não desconhecia a necessidade da democratização do Partido; mas rechaçou as razões em que Trotsky apoiava sua tese. E protestou vivamente contra a linguagem de Trotsky. A polêmica se tornou amarga. Zinoviev confrontou os antecedentes dos homens da velha guarda com os antecedentes de Trotsky. Os homens da velha guarda – Zinoviev, Kamenev, Stálin, Rykov, etc. – eram os que, na retaguarda de Lênin, haviam preparado, através de um trabalho tenaz e coerente de muitos anos, a revolução comunista. Trotsky, por outro lado, havia sido menchevique.

Ao redor de Trotsky se agruparam vários destacados comunistas: Piatakov, Preobrajensky, Sapronov, etc. Karl Radek se declarou um impulsionador de uma conciliação entre os pontos de vista do Comitê Central e os pontos de vista de Trotsky. O Pravda, dedicou muitas colunas à polêmica. Entre os estudantes de Moscou a tese de Trotsky encontrou um proselitismo entusiasmado.

Mas o XIII Congresso do Partido Comunista, reunido no princípio do ano passado, deu razão à velha guarda que se declarou, em suas conclusões, favorável à fórmula da democratização, anulando consequentemente a bandeira de Trotsky. Apenas três delegados votaram contrários às resoluções do Comitê Central. Logo, o Congresso da Terceira Internacional ratificou esse voto. Radek perdeu seu cargo no comitê da Internacional. A posição do estado-maior leninista se fortaleceu, ademais, à consequência do reconhecimento da Rússia pelas grandes potências europeias e do melhoramento da situação econômica russa. Trotsky, sem embargo, conservou seus cargos no Comitê Central do Partido Comunista e no Conselho de Comissários do Povo. O Comitê Central expressou sua vontade de seguir colaborando com ele.

Zinoviev disse em um discurso que a despeito da tensão existente, Trotsky seria mantido em seus influentes postos.

Um fato novo veio a exasperar a situação. Trotsky publicou um livro. 1917, sobre o processo da revolução de outubro. Não conheço ainda este livro que até agora ainda não foi traduzido do russo. Os últimos documentos polêmicos de Trotsky que tenho a vista são os reunidos em seu livro Novo Curso. Mas parece que 1917 é uma acusação de Trotsky contra a conduta dos principais líderes da velha guarda nas jornadas da insurreição. Um grupo de conspícuos leninistas – Zinoviev, Kamenev, Rykov, Miliutin e outros – discreparam então do parecer de Lênin. E a dissensão pôs em perigo a unidade do Partido Bolchevique. Lênin propôs a conquista do poder. Contra essa tese, aceita pela maioria do Partido Bolchevique, se pronunciou o dito grupo. O novo livro de Trotsky, em suma, apresenta os atuais líderes da velha guarda, nas jornadas de outubro, sob uma luz adversa. Trotsky quis, sem dúvida, demonstrar que aqueles que se equivocaram em 1917, em um instante decisivo para o bolchevismo, carecem de direito para pretender-se depositários e herdeiros únicos da mentalidade e do espírito leninistas.

E essa crítica, que reacendeu novamente a polêmica, motivou a ruptura. O estado-maior bolchevique deve ter respondido com uma impiedosa e agressiva revisão do passado de Trotsky. Trotsky, que quase nada ignora, nunca foi um bolchevique ortodoxo. Pertenceu ao menchevismo até a Guerra Mundial. Unicamente a partir de então se aproximou do programa e tática leninistas. E somente em julho de 1917 se vinculou ao bolchevismo. Lênin votou contra sua admissão à redação do Pravda. O acirramento de Lênin e Trotsky não parou senão pelas jornadas de outubro. E a opinião de Lênin divergiu da opinião de Trotsky a respeito dos problemas mais graves da revolução. Trotsky não quis aceitar a paz de Brest-Litovsk, Lênin compreendeu rapidamente que, contra a vontade manifesta dos camponeses, a Rússia não poderia se prolongar em estado de guerra. Frente às reivindicações da insurreição de Cronstadt, Trotsky voltou a desrespeitar Lênin, que percebeu a realidade da situação com sua genial clarividência. Lênin se deu conta da urgência de satisfazer as reivindicações dos camponeses. E ditou as medidas que inauguraram a Nova Economia Política dos Soviets. Os leninistas afirmam que Trotsky não conseguiu se assimilar ao bolchevismo. É evidente, ao menos, que Trotsky não havia podido nem se fundir nem se identificar com a velha guarda bolchevique. Enquanto a figura de Lênin dominou todo o cenário russo, a inteligência e colaboração entra a velha guarda e Trotsky estavam asseguradas por uma comum adesão à tática leninista. Com a morte de Lênin esse vínculo se quebrou. Zinoviev acusou Trotsky de ter atentado com seus apoiadores um assalto ao comando. Atribui essa intenção a toda a campanha de Trotsky pela democratização do Partido Bolchevique. Afirma que Trotsky teria manobrado demagogicamente por ter contraposto a nova e a velha gerações. Trotsky, em todo caso, havia perdido sua maior batalha. Seu Partido o havia desmentido e lhe havia retirado sua confiança.

Porém, os resultados da polêmica não culminaram em um cisma. Os líderes da velha guarda bolchevique, como Lênin no episódio de Kronstadt, depois de reprimir a insurreição, realizaram suas reivindicações. Já haviam dado explicitamente sua adesão à tese da necessidade de democratizar o Partido.

Não é a primeira vez que o destino de uma revolução requer que esta cumpra sua trajetória sem ou contra os seus caudilhos. O que prova, talvez, que na história os grandes homens têm um papel mais modesto que as grandes ideias.

Trotsky e a Oposição Comunista

Variedades, Lima, 25 de maio de 1928

A expulsão de Trotsky e de Zinoviev do Partido Comunista Russo e as medidas sancionadas por este contra a oposição trotskista, exigem que demos uma olhada na política interna da Rússia. A crítica contrarrevolucionária, tantas vezes desfraldada pelos acontecimentos russos, se entretêm em prognosticar a iminente queda do regime soviético em consequência de seu rompimento interno. Os mais sabidos e prudentes de seus escritores preferem se conformar com a esperança de que a política de Stálin e do Partido representem pura e simplesmente a marcha rumo ao capitalismo e suas instituições. Mas basta uma rápida olhada na situação russa para se convencer de que as expectativas que interessam a burguesia ocidental não têm mais sentido do que nos dias de Kolchak e Wrangel.

A Revolução Russa que, como toda grande revolução histórica, avança por um caminho difícil, que ela mesma vai atravessando com seu impulso, não conheceu até agora dias fáceis nem ociosos.[1] É a obra de homens heroicos e excepcionais, e, por esse mesmo fator, não teria sido possível senão por uma máxima e tremenda tensão criadora. O Partido Bolchevique, portanto, não é nem poderia ser uma aprazível e unânime academia. Lênin o impôs até pouco antes de sua morte sua direção genial; porém nem sob a imensa e única autoridade deste chefe extraordinário, cessaram os debates violentos dentro do Partido. Lênin ganhou autoridade com suas próprias forças; a manteve, logo, com sua superioridade e clarividência e pensamento. Seus pontos de vista prevaleciam sempre por serem aqueles que melhor correspondiam com a realidade. Tinham sem embargo, que vencer muitas vezes as resistências de seus próprios tenentes da velha guarda bolchevique.

A[2] morte de Lênin, que deixou vacante o posto de chefe genial, de imensa autoridade pessoal, haveria de seguir a período de profundo desequilíbrio em qualquer Partido menos disciplinado e orgânico que o Partido Comunista Russo. Trotsky se destacava sobre todos seus companheiros pelo relevo brilhante de sua personalidade. Porém, não apenas lhe faltava vinculação sólida e antiga com o grupo leninista. Suas relações com a maioria de seus membros haviam sido, antes da revolução, muito pouco cordiais. Trotsky, como é notório, teve antes de 1917 uma posição quase individual no campo revolucionário russo. Não pertencia ao Partido Bolchevique, com cujos líderes, sem excetuar o próprio Lênin, polemizou mais de uma vez acidamente. Lênin, apreciava inteligente e generosamente o valor da colaboração de Trotsky, a quem, por sua vez – como o atesta o volume em que estão reunidos seus escritos sobre o chefe da revolução – acatou sem reservas uma autoridade consagrada pela obra mais sugestiva e avassaladora para a consciência de um revolucionário. Porém se entre Lênin e Trotsky pudesse se apagar quase toda a distância, entre Trotsky e o Partido, mesmo a sua identificação, não podia ser igualmente completa. Trotsky não contava com a confiança total do Partido, mesmo que sua atuação como comissário do povo merecesse admiração. O mecanismo do Partido estava nas mãos de homens da velha guarda leninista que sempre viram Trotsky como estranho e alheio, a quem, por sua parte, não conseguia consubstanciar com eles em um único bloco. Trotsky, segundo parece, não possui os dotes específicos de político que em tão bom grado tinha Lênin. Não sabe captar os homens; não conhece os segredos do manejo de um Partido. Sua posição singular – equidistante do bolchevismo e do menchevismo – dentre os anos de 1905 e 1917, além de desconectá-lo dos grupos revolucionários que com Lênin prepararam e realizaram a revolução, havia desabituado lhe a prática concreta de líder de partido.

O conflito entre Trotsky e a maioria bolchevique, que chegou a seu ponto culminante com a exclusão do trotskismo das fileiras do Partido, vem tendo um processo longo. Tomou um caráter de oposição nítida em 1924 com os ataques de Trotsky à política do Comitê Central, contidos nos documentos que, traduzidos em francês, foram publicados sob o título de Cours Nouveau. As tentativas de Trotsky para que se adotasse um regime de democratização no Partido Comunista miravam minar o poder de Stálin. A polêmica foi ácida. Mas entre a posição do Comitê Central e a de Trotsky cabia ainda uma comprometimento. Trotsky cometeu então o erro político de publicar um livro sobre 1917, do qual não eram bem vistos Zinoviev, Kamenev e outros membros do governo, qualificados duramente por Lênin nessa período por suas titubeações para reconhecer o caráter revolucionário da situação. O debate se reavivou, com um violento agravamento de ataques pessoais. Zinoviev e Kamenev, que tinham causa comum com Stálin, não economizaram a Trotsky nenhuma crítica ao relembrar suas disputas com o bolchevismo antes de 1917. Porém, depois de uma ardorosa controversa, o espírito de comprometimento voltou a prevalecer. Trotsky se reincorporou ao Comitê Central, depois de um temporada de descanso em um estação climática. E tornou a ocupar um posto na administração.

Mas a corrente oposicionista, no seguinte Congresso do Partido, reapareceu fortalecida. Zinoviev, Kamenev e outros membros do Comitê Central, se somaram a Trotsky, a quem se consumou como líder de uma oposição heterogênea, na qual se mesclavam elementos suspeitos de desvios direitistas e social-democratas com elementos extremistas abrasadores, amotinados contra as concessões da NEP aos kulaks.

Trotsky[3], por outro lado, é um homem cosmopolita. Zinoviev o acusava noutro tempo, em um congresso comunista, de ignorar e negligenciar demasiado o campesinato. Tem, em todo o caso, um sentido internacional da revolução socialista. Seus notáveis escritos sobre a estabilização transitória do capitalismo, o colocam entre os mais alertas e sagazes críticos da época. Mas esse mesmo sentido internacional da revolução, que o outorga tanto prestígio na cena mundial, o retira momentaneamente a força na prática da política russa. A Revolução Russa está em um período de organização nacional. Não se trata, no momento, de estabelecer o socialismo no mundo, senão realizá-lo em uma só nação que, ainda é uma nação de cento e trinta milhões de habitantes que se desdobram sobre dois continentes, não deixando de constituir por isso, geográfica e historicamente, uma unidade. É lógico que nessa etapa a Revolução Russa está representada pelos homens que mais profundamente sentem seu caráter e seus problemas nacionais.

Stálin, puro eslavo, é um desses homens. Pertence a uma falange de revolucionários que se manteve sempre arraigada ao solo russo. Enquanto tanto Trotsky, como Radek, como Rakovsky, pertencem a uma falange que passou a maior parte de sua vida em exílio. No exílio tiveram sua aprendizagem de revolucionários mundiais, essa aprendizagem que havia dado à Revolução Russa sua linguagem universalista, sua visão ecumênica. Por hora, a sós com seus problemas, a Rússia prefere homens mais simples e puramente russos.

O Exílio de Trotsky

Variedades, Lima, 23 de fevereiro de 1929

Trotsky, exilado da Rússia dos Sovietes: aqui está um acontecimento ao qual a opinião revolucionária do mundo não pode facilmente se acostumar. O otimismo revolucionário nunca admitiu a possibilidade de que essa revolução concluiria, como a francesa, condenando seus heróis. Porém, sensatamente, aquilo que não se deveria jamais esperar é que o empreendimento de se organizar o primeiro grande Estado Socialista fosse cumprida por um Partido de mais de um milhão de militantes apaixonados, com o acordo da unanimidade mais um, sem debates nem conflitos violentos.

A opinião trotskista tem uma função útil na política soviética. Representa, caso se queira definir em duas palavras, a ortodoxia marxista, frente à fluência desdobrada e indócil da realidade russa. Traduz-se o sentido operário, urbano, industrial, da revolução socialista. A Revolução Russa deve seu valor internacional, ecumênico, seu caráter de fenômeno precursor do surgimento de uma nova civilização, ao pensamento de Trotsky e seus companheiros reivindicam isso com todo seu vigor e suas consequências. Sem uma crítica vigilante, que é a melhor prova da vitalidade do Partido Bolchevique, o governo soviético correria provavelmente o risco de cair em um burocratismo formalista, mecânico.

Mas, até o momento, os fatos não dão razão ao ponto de vista do trostskismo em sua atitude para substituir Stálin do poder, este com maior capacidade objetiva de realização do programa marxista. A parte essencial da plataforma de oposição trotskista é sua parte crítica. Porém, na avaliação dos elementos que podem incidir na política soviética, tanto Stálin quanto Bukharin andam bem distantes de subscrever à maior parte dos conceitos fundamentais de Trotsky e seus adeptos. As propostas, as soluções trotskistas não têm, em contrapartida, a mesma solidez. Na maior parte daquilo que concerne a política agrária e industrial, a luta contra o burocratismo e ao espírito do NEP[4], o trotskismo fala de um radicalismo teórico que não consegue se basear em fórmulas concretas e precisas. Nesse terreno, Stálin e a maioria, junto com a responsabilidade da administração, possuem um sentido mais realista das possibilidades.

A Revolução Russa que, como toda grande revolução histórica, avança por um caminho difícil, que ela mesma vai atravessando com seu impulso, não conheceu até agora dias fáceis nem ociosos.[5] É a obra de homens heroicos e excepcionais, e, por esse mesmo fator, não teria sido possível senão por uma máxima e tremenda tensão criadora. O Partido Bolchevique, portanto, não é nem poderia ser uma aprazível e unânime academia. Lênin o impôs até pouco antes de sua morte sua direção genial; porém nem sob a imensa e única autoridade deste chefe extraordinário, cessaram os debates violentos dentro do Partido. Lênin ganhou autoridade com suas próprias forças; a manteve, logo, com sua superioridade e clarividência e pensamento. Seus pontos de vista prevaleciam sempre por serem aqueles que melhor correspondiam com a realidade. Tinham sem embargo, que vencer muitas vezes as resistências de seus próprios tenentes da velha guarda bolchevique.

A morte de Lênin, que deixou vacante o posto de chefe genial, de imensa autoridade pessoal, haveria de seguir a período de profundo desequilíbrio em qualquer Partido menos disciplinado e orgânico que o Partido Comunista Russo. Trotsky se destacava sobre todos seus companheiros pelo relevo brilhante de sua personalidade. Porém, não apenas lhe faltava vinculação sólida e antiga com o grupo leninista. Suas relações com a maioria de seus membros haviam sido, antes da revolução, muito pouco cordiais. Trotsky, como é notório, teve antes de 1917 uma posição quase individual no campo revolucionário russo. Não pertencia ao Partido Bolchevique, com cujos líderes, sem excetuar o próprio Lênin, polemizou mais de uma vez acidamente. Lênin, apreciava inteligente e generosamente o valor da colaboração de Trotsky, a quem, por sua vez – como o atesta o volume em que estão reunidos seus escritos sobre o chefe da revolução – acatou sem reservas uma autoridade consagrada pela obra mais sugestiva e avassaladora para a consciência de um revolucionário. Porém se entre Lênin e Trotsky pudesse se apagar quase toda a distância, entre Trotsky e o Partido, mesmo a sua identificação, não podia ser igualmente completa. Trotsky não contava com a confiança total do Partido, mesmo que sua atuação como comissário do povo merecesse admiração. O mecanismo do Partido estava nas mãos de homens da velha guarda leninista que sempre viram Trotsky como estranho e alheio, a quem, por sua parte, não conseguia consubstanciar com eles em um único bloco. Trotsky, segundo parece, não possui os dotes específicos de político que em tão bom grado tinha Lênin. Não sabe captar os homens; não conhece os segredos do manejo de um Partido. Sua posição singular – equidistante do bolchevismo e do menchevismo – dentre os anos de 1905 e 1917, além de desconectá-lo dos grupos revolucionários que com Lênin prepararam e realizaram a revolução, havia desabituado lhe a prática concreta de líder de partido.

Enquanto durou a mobilização de todas as energias revolucionárias contra as ameaças da reação, a unidade bolchevique estava assegurada pelo páthos bélico. Mas desde que começou o trabalho de estabilização e normalização, as discrepâncias de homens e de tendências não poderiam deixar de se manifestar. A falta de uma personalidade de exceção como Trotsky, havia reduzido a oposição a termos mais modestos. Não se chegou, nesse caso, ao cisma violento. Porém com Trotsky no posto de comando, a oposição em pouco tempo havia tomado um tom insurrecional e combativo ao qual a maioria e o governo não podiam ser indiferentes. Trotsky, por outro lado, é um homem cosmopolita. Zinoviev o acusava noutro tempo, em um congresso comunista, de ignorar e negligenciar demasiado o campesinato. Tem, em todo o caso, um sentido internacional da revolução socialista. Seus notáveis escritos sobre a estabilização transitória do capitalismo, o colocam entre os mais alertas e sagazes críticos da época. Mas esse mesmo sentido internacional da revolução, que o outorga tanto prestígio na cena mundial, o retira momentaneamente a força na prática da política russa. A Revolução Russa está em um período de organização nacional. Não se trata, no momento, de estabelecer o socialismo no mundo, senão realizá-lo em uma só nação que, ainda é uma nação de cento e trinta milhões de habitantes que se desdobram sobre dois continentes, não deixando de constituir por isso, geográfica e historicamente, uma unidade. É lógico que nessa etapa a Revolução Russa está representada pelos homens que mais profundamente sentem seu caráter e seus problemas nacionais. Stálin, puro eslavo, é um desses homens. Pertence a uma falange de revolucionários que se manteve sempre arraigada ao solo russo. Enquanto tanto Trotsky, como Radek, como Rakovsky, pertencem a uma falange que passou a maior parte de sua vida em exílio. No exílio tiveram sua aprendizagem de revolucionários mundiais, essa aprendizagem que havia dado à Revolução Russa sua linguagem universalista, sua visão ecumênica.

A Revolução Russa se encontra em um período forçoso da economia. Trotsky, desconectado pessoalmente do grupo stalinista, é uma figura excessiva em um plano de realizações nacionais. Só ele se imagina predestinado a levar ao triunfo, com energia e majestade napoleônicas, na cabeça do exército vermelho, por toda Europa, o evangelho socialista. Não se concebendo, com a mesma facilidade, a praticar o modesto ofício de ministro em tempos normais. A NEP o condena ao recuo de sua posição de beligerante polemista.        

Notas de Rodapé

[1] A primeira parte desse parágrafo, que se refere a opiniões anteriores de J.C.M. que apareceram em Variedades acerca da separação de Trotsky do Partido Comunista Russo, foi suprimida pelo autor no original que conservamos.

[2] Esse parágrafo é o mesmo do outro artigo de Mariátegui (O exílio de Trotsky) (Nota do tradutor)

[3] Os próximos dois parágrafos são os mesmos do artigo O Exílio de Trotsky, com apenas algumas alterações em estrutura e um ou outro acréscimo. (Nota do tradutor)

[4] NEP, sigla do russo Nóvaya Ekonomícheskaya Polítika (Nova Política Econômica). Foi uma política econômica aplicada na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) a partir de 1921, que permitiu a propriedade privada em pequenas partes da economia , fundamentalmente a produção agrícola (Nota dos editores).

[5] A primeira parte desse parágrafo, que se refere a opiniões anteriores de J.C.M. que apareceram em Variedades acerca da separação de Trotsky do Partido Comunista Russo, foi suprimida pelo autor no original que conservamos.

Um comentário em “Artigos de José Carlos Mariátegui sobre Trotsky

  1. Se vê que Mariátegui, apesar de desconhecer o processo de revisão histórica que se operava no interior da URSS, e demonstrar desconhecer o programa prático e econômico da Oposição de Esquerda Internacional (redigido entre outros nomes por Preobrazhensky) entendia melhor o princípio do internacionalismo proletário do que os atuais stalinistas, marxistas-leninistas, maoístas e principalmente os gonzalistas: seus supostos discípulos que fizeram uma atrocidade de seu pensamento vivo. Mariátegui mesmo admitiu não ter tido acesso ao livro 1917 de Trotsky, mas em maior quantidade, obteve acesso às publicações da imprensa oficial através do Pravda que na época já se tornava instrumentalizado pela fração de Stalin. Tivesse acesso à formulação completa de Trotsky, o teor de seu texto provavelmente mudaria. A revolução que começa nacional e torna-se permanente, incapaz de parar ante as limitações da democracia burguesa em um longo período de desenvolvimento capitalista, essa foi a formulação que distanciou Trotsky do menchevismo. E assim, Lenin viu uma aproximação teórica entre o bolchevismo e a vertente socialista de Trotsky, tanto que permitiu de bom grado a contribuição teórica de Trótski na redação ao órgão principal do partido durante 1917: “Para nós, o internacionalismo não é uma ideia abstrata, destinada a ser violada sempre que a situação exija (como é para Tsreteli e Chernov), mas um princípio direto, orientador e profundamente prático. Nós não achamos que a nossa vitória será segura ou definitiva sem a revolução europeia.”

    O isolamento da Rússia deveria iniciar uma etapa de nova impulsão de revoluções, e não de assuntos “puramente russos”, não de uma economia voltada para si mesma, dedicada unicamente à sua sobrevivência. A sobrevivência da revolução socialista requer sua expansão. Tudo que não avança, necessariamente retrocede (me refiro dialeticamente e não mecanicamente).

    Tivesse tido acesso aos textos que infelizmente não conheceu, Mariátegui teria facilmente suprido essas lacunas teóricas e que correspondem ao seu posicionamento (embora evidente, isso não seja uma certeza auto evidente, ou eu estaria sendo anacrônico).

    Infelizmente ele veio a falecer muito prematuramente, e quem ficou encarregado de difundir seu pensamento foi o seu mais conhecido epígono e dogmático aprendiz, camarada Gonzalo, e que se desgenerou a uma espécie de deus de seita, usurpando o legado exemplarmente marxista e internacionalista de Mariátegui.

    Uma última observação que demonstra a dificuldade de acesso de Mariátegui aos textos de Trotsky, diz ele no último e breve parágrafo, que Trotsky “se imagina predestinado a levar ao triunfo, com energia e majestade napoleônicas, na cabeça do exército vermelho, por toda a Europa, o evangelho socialista.” Também Mariátegui imagina Trotksy como um oponente da NEP, e alguém que subestimava o campeonato, desobediente à Lenin, aparentemente desde o princípio. Novamente, é notável como isso demonstra a revisão histórica que se operava no aparelho partidário soviético em meados daquela década de 20.
    Sobre sua influência no exército, comenta Trotsky em sua autobiografia (perdoem a longa transcrição):
    “Em janeiro de 1925, fui exonerado de minha função de comissário do povo para a Guerra. Essa decisão fora cuidadosamente preparada pela luta que a precedera. Os epigonos temiam não apenas as tradições de Outubro, mas particularmente a tradição da guerra civil e minha vinculação ao exército. Cedi meu posto militar sem luta e com certo agrado, pois isso impediria os epigonos de me acusarem de uso do exército para meus próprios fins. Para justificar seus atos, atribuíram-me desejos fantasiosos desde tipo e, no final das contas, passaram a acreditar em sua própria mentira. Desde 1921, todavia, eu interessava-me por outro domínio. A guerra tinha acabado, o exército de 5.300.000 homens estava reduzido a 600.000. Os trabalhos do Comissariado da Guerra eram meramente burocráticos. Os principais problemas do país eram de economia, e, no momento em que acabaram os conflitos, entrei de cabeça e profundamente nessas questões.

    Em maio de 1925, fui nomeado presidente do Comitê de Concessões, chefe da direção eletrotécnica e presidente da direção científica e técnica da indústria. Esses três domínios não tinham nada de comum entre eles. Decidiram minha participação neles sem que eu soubesse e com razões muito específicas: tratava-se de me isolar do partido, sobrecarregar-me de trabalho corrente, submeter-me a um controle especial etc.

    Entretanto, esforcei-me conscientemente para entrar nessas novas funções. Mergulhei de cabeça no trabalho dessas três instituições que eu não conhecia. O que mais me interessava eram os institutos científicos e técnicos, os quais, graças à centralização da indústria, obtinham entre nós uma expansão bastante considerável (…)
    Eu fazia conferências e publicava livros e brochuras sobre os novos problemas que tinha de resolver. Meus adversários não podiam nem queriam aceitar a batalha nesse novo terreno. Formulavam o problema, entre eles do seguinte modo: Trotsky criou uma nova fortaleza. A direção eletrotécnica e as instituições científicas e técnicas os inquietavam quase tanto quanto o Comissariado da Guerra antes. O aparelho de Stalin seguia minhas pegadas. Todo avanço prático de minha parte dava ensejo a uma complicada intriga de bastidores. Cada conclusão teórica a que eu chegava vinha alimentar a mitologia dos ignorantes inventores do “trotskismo”.”

    Assim, a figura de Trotsky enquanto essa “napoleônica”, “individualista” e “predestinada” figura, se desfaz muito facilmente consultando o próprio Trotsky.

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