Retirado do livro “O que é deficiência” (2007), publicado pela coleção Primeiros Passos.
Transcrição por Angelo Ardonde.
Deficiência como opressão
Paul Hunt, um sociólogo deficiente físico, foi um dos precursores do modelo social da deficiência no Reino Unido nos anos 1960. Os primeiros escritos de Hunt procuravam compreender o fenômeno sociológico da deficiência partindo do conceito de estigma proposto por Erving Goffman [1]. Para Goffman, os corpos são espaços demarcados por sinais que antecipam papéis a serem exercidos pelos indivíduos. Um conjunto de valores simbólicos estaria associado aos sinais corporais, sendo a deficiência um dos atributos que mais fascinaram os teóricos do estigma.
De todas as obras de Hunt, o escrito de maior impacto foi a carta que ele remeteu ao jornal inglês The Guardian, em 20 de setembro de 1972. Nela se lia:
Senhor Editor, as pessoas com lesões físicas severas encontram-se em instituições sem as menores condições, onde suas ideias são ignoradas, onde estão sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruéis regimes. Proponho a formação de um grupo de pessoas que leve ao Parlamento as ideias das pessoas que, hoje, vivem nessas instituições e das que potencialmente irão substituí-las. Atenciosamente, Paul Hunt [2].
Hunt não imaginou que sua carta provocaria tantas reações. Várias pessoas responderam à sua proposta de formação de um grupo de deficientes, e quatro anos depois estava constituída a primeira organização política desse tipo: a Liga dos Lesados Físicos Contra a Segregação (Upias) [3]. Michael Oliver, também um sociólogo deficiente físico, foi um dos que imediatamente respondeu à carta de Hunt. Ainda hoje, ele é considerado um dos precursores e principais idealizadores do que ficou conhecido como modelo social da deficiência. Paul Abberley e Vic Finkelstein foram dois outros sociólogos deficientes que fizeram parte do grupo inicial de formação da Upias.
Reconhecer que a Upias foi a primeira organização de deficientes é algo que pode parecer estranho, pois há instituições para cegos, surdos e pessoas com restrições cognitivas há pelo menos dois séculos, além de centros onde pessoas com diferentes lesões foram internadas ou abandonadas. A Upias foi, na verdade, a primeira organização política sobre deficiência a ser formada e gerenciada por deficientes. Instituições antigas, como o Instituto Nacional para Cegos, talvez a mais antiga do mundo, no Reino Unidos, ou o Instituto Nacional de Educação de Surdos, no Brasil, eram entidades para os deficientes, isto é, locais onde só se confinavam pessoas com diferentes lesões físicas ou mentais, cuidando delas e lhes oferecendo educação. Em geral, o objetivo dessas instituições e centros era o de afastar as pessoas com lesões do convívio social ou o de normalizá-las para devolvê-las à família ou à sociedade.
A originalidade da Upias foi não somente ser uma entidade de e para deficientes, mas também ter articulado uma resistência política e intelectual ao modelo médico de compreensão da deficiência. Para o modelo médico, deficiência é consequência natural da lesão em um corpo, e a pessoa deficiente deve ser objeto de cuidados biomédicos. Em um primeiro momento, portanto, a Upias constituiu-se como uma rede política cujo principal objetivo era questionar essa compreensão tradicional da deficiência: diferentemente das abordagens biomédicas, deficiência não deveria ser entendida como um problema individual, uma “tragédia pessoal”, como ironizava Oliver, mas sim como uma questão eminentemente social [4]. A estratégia da Upias era provocativa, pois tirava do indivíduo a responsabilidade pela opressão experimentada pelos deficientes e a transferia para a incapacidade social em prever e incorporar a diversidade.
Nesse sentido, Oliver, Abberley, Finkelstein e tantos outros que responderam ao chamamento de Hunt provocaram uma reviravolta no debate biomédico: ao invés de internados para tratamento ou reabilitação, os deficientes estavam encarcerados; a experiência da deficiência não era resultado de suas lesões, mas do ambiente social hostil à diversidade física. O mais importante desse movimento político vigoroso de crítica social foi que a Upias foi responsável por um feito histórico, pois redefiniu lesão e deficiência em termos sociológicos, e não mais estritamente biomédicos.
A gramática da deficiência foi refeita após a emergência e consolidação da Upias em 1976. Foram quatro anos de comunicações secretas entre a comunidade imaginada por Hunt em suas cartas. Nessa época, era comum que deficientes físicos fossem institucionalizados. Havia intensa vigilância sobre a vida deles, e os contatos com o ambiente externo eram não apenas controlados como esparsos. A Upias surgiu exatamente dessa incomunicabilidade entre os deficientes, o que torna seu processo de formação ainda mais espetacular. E foi também por causa da dificuldade de comunicação que esse processo foi tão lento: “algo que muitos não-deficientes esperariam concluir em poucas semanas ou meses, nos exigiu quatro anos”, disseram Oliver e Colin Barnes [5].
O principal objetivo da Upias era redefinir a deficiência em termos de exclusão social. A deficiência passou a ser entendido como uma forma particular de opressão social, como a sofrida por outros grupos minoritários, como as mulheres ou os negros. O marco teórico do grupo de sociólogos deficientes que criaram a Upias foi o materialismo histórico, o que os conduziu a formular a tese política de que a discriminação pela deficiência era uma forma de opressão social. Oliver e Barnes, em Deficientes e política social: da exclusão para a inclusão, definem a experiência da opressão sofrida pelos deficientes como uma “situação coletiva de discriminação institucionalizada”. E foi nesses termos que os conceitos de lesão e deficiência foram politicamente redefinidos [6].
Lesão e deficiência
Quem é deficiente para o modelo social da deficiência? Para responder a essa pergunta, foi preciso enfrentar a tensão entre corpo e sociedade. Seria um corpo com lesão o que limitaria a participação social ou seriam os contextos pouco sensíveis à diversidade o que segregaria o deficiente? O desafio era avaliar se a experiência de opressão e exclusão denunciada pela Upias decorreria das limitações corporais, como grande parte da biomedicina defendida, ou se seria resultado de organizações sociais e políticas pouco sensíveis à diversidade corporal.
Originalmente, a Upias propunha uma definição de lesão e deficiência amparada em uma perspectiva política de exclusão social:
Lesão: ausência parcial ou total de um membro, ou membro, organismo ou mecanismo corporal defeituoso; deficiência: desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea, que pouco ou nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social [7].
Para a Upias, a lesão seria um dado corporal isento de valor, ao passo que a deficiência seria o resultado da interação de um corpo com lesão em uma sociedade discriminatória.
A definição da Upias provocou um extenso debate sobre as limitações do vocabulário biomédico para descrever a deficiência. A iniciativa da Upias representou a primeira tentativa de autoclassificação dos movimentos de deficientes. Jenny Morris, uma das poucas mulheres deficientes ativas na formação do modelo social, considera que esse foi um processo de libertação semelhante ao que o feminismo propiciou às mulheres: articulou-se uma nova linguagem para descrever a experiência de discriminação sofrida pelos deficientes [8].
Os objetivos da Upias eram:
- Diferenciar natureza de sociedade pelo argumento de que a opressão não era resultado da lesão, mas de ordenamentos sociais excludentes. Lesão era uma expressão da biologia humana isenta de sentido, ao passo que deficiência era resultado da discriminação social. Ao retirar qualquer sentido pejorativo das lesões, o alvo da Upias era aproximar os deficientes de outras minorias sociais, grupos nos quais a tensão entre os conceitos de natureza e sociedade era também intensa. O objetivo era desessencializar a lesão, denunciando as construções sociológicas que a descreviam como desvantagem natural;
- Assumir a deficiência como uma questão sociológica, retirando-a do controle discursivo dos saberes biomédicos. Foi nessa disputa por autoridade discursiva que se estruturou o modelo social da deficiência em contraposição ao modelo médico. O modelo social definia deficiência não como uma desigualdade natural, mas como uma opressão exercida sobre o corpo deficiente. Ou seja, o tema da deficiência não deveria ser matéria exclusiva dos saberes biomédicos, mas principalmente de ações políticas e de intervenção do Estado.
Esses dois objetivos abriram caminho para um novo olhar sobre a deficiência. Para o modelo social da deficiência, as causas da segregação e da opressão sofrida por Oliver, por exemplo, deveriam ser buscadas não nas sequelas da poliomielite contraída na infância, mas nas barreiras sociais que dificultavam ou impediam sua locomoção em cadeiras de rodas. Sua dificuldade de locomoção não deveria ser entendida como uma tragédia pessoal fruto da loteria da natureza, mas como um ato de discriminação permanente contra um grupo de pessoas com expressões corporais diversas.
Nesse sentido, um deficiente como Oliver diria: “minha lesão não está em não poder andar. Minha deficiência está na inacessibilidade dos ônibus” [9]. Assim, as alternativas para romper com o ciclo de segregação e opressão não deveriam ser buscadas nos recursos biomédicos, mas especialmente na ação política capaz de denunciar a ideologia que oprimia os deficientes. Ao afirmar que a resposta para a segregação e para a opressão estava na política e na sociologia, os teóricos do modelo social não recusavam os benefícios dos avanços biomédicos para o tratamento do corpo com lesões. A ideia era simplesmente ir além da medicalização da lesão e atingir as políticas públicas para a deficiência [10]. O resultado foi a separação radical entre lesão e deficiência: a primeira seria o objeto das ações biomédicas no corpo, ao passo que a segunda seria entendida como uma questão da ordem dos direitos, da justiça social e das políticas de bem-estar.
Deficiente, pessoa deficiente ou pessoa com deficiência?
Deficiência passou a ser um conceito político: a expressão da desvantagem social sofrida pelas pessoas com deficiência com diferentes lesões. E, nesse movimento de redefinição da deficiência, termos como “pessoa portadora de deficiência”, “pessoa com deficiência”, “pessoa com necessidades especiais” e outros agressivos, como “aleijado”, “débil-mental”, “retardado”, “mongolóide”, “manco” e “coxo” foram colocados na mesa de discussões. Exceto pelo abandono das expressões mais claramente insultantes, ainda hoje não há consenso sobre quais os melhores termos descritivos.
Entre os seguidores da Upias e teóricos do modelo social de deficiência, em especial na linha britânica, é possível reconhecer a preferência por expressões que denotem a identidade na deficiência, e por isso é mais comum o uso do termo “deficiente”. Segundo Oliver e Barnes, “a expressão pessoa com deficiência sempre sugere que a deficiência é propriedade do indivíduo e não da sociedade”, ao passo que “‘pessoa deficiente’ ou ‘deficiente’ demonstram que a deficiência é parte constitutiva da identidade das pessoas, e não um detalhe” [11].
Oliver critica duramente a expressão composta “pessoa com deficiência”, adotada pela tradição estadunidense, pois considera que:
Essa visão liberal e humanista vai ao encontro da realidade tal como ela é experimentada pelos deficientes, que sustentam ser a deficiência parte essencial da constituição de suas identidades e não meramente um apêndice. Nesse contexto, não faz sentido falar sobre pessoas e deficiência separadamente. Em consequência, os deficientes demandam aceitação como são, isto é, como deficientes [12].
“Deficiente” seria, portanto, um termo politicamente mais forte que “pessoas com deficiência”, muito embora alguns autores utilizem ambos de modo indiscriminado. Vale lembrar que o objetivo não era transformar o vocabulário por questões estéticas, mas politizá-lo retirando expressões que não estivessem de acordo com a guinada teórica proposta pelo modelo social.
Essa redescrição conceitual tinha um alvo: abalar a autoridade discursiva dos saberes biomédicos e promover a autoridade da experiência vivida pelo corpo deficiente no debate acadêmico [13]. Foi assim que, mesmo diante das críticas que o acusavam de estruturar o modelo social em torno de uma única forma de deficiência, os primeiros teóricos acreditaram poder agregar as diferentes comunidades de deficientes em torno de um projeto político único:
Todos os deficientes experimentam a deficiência como uma restrição social, não importando se essas restrições ocorrem em consequência de ambientes inacessíveis, de noções questionáveis de inteligência e competência social, da inabilidade da população em geral de utilizar a linguagem de sinais, da falta de material em braile ou das atitudes públicas hostis das pessoas que não têm lesões visíveis [14].
Houve, de fato, um viés inicial no movimento social, pois a Upias era formada apenas por deficientes físicos. No entanto, o novo vocabulário tinha potencial para não desagradar as comunidades de deficientes. A crítica inicial de que a Upias era formada pela elite dos deficientes, isto é, homens jovens saudáveis e com lesões físicas, foi rapidamente reconhecida pelos precursores do movimento social. A estratégia era não mais assentar a experiência da deficiência em termos de lesões específicas, mas sair à procura de termos políticos que agregassem o maior número possível de deficientes. A ideia foi mostrar que, a despeito da variedade de lesões, havia um fator que unia todos os deficientes: a experiência da opressão.
Ideologia da opressão pela deficiência
A deficiência passou a ser compreendida como uma experiência de opressão compartilhada por pessoas com diferentes tipos de lesões. O desafio seguinte era mostrar evidências de quem se beneficiaria com a segregação dos deficientes da vida social. A resposta foi dada pelo marxismo, principal influência da primeira geração de teóricos do modelo social: “o capitalismo é quem se beneficia, pois os deficientes cumprem uma função econômica como parte do exército de reserva e uma função ideológica mantendo-os na posição de inferioridade” [15].
Esse foi o argumento considerado mais radical pelos teóricos do modelo social, pois se acreditava, segundo Harlan Hahn, que “deficiência é aquilo que a política diz que seja” [16]. Isto é, diferentemente do modelo médico da deficiência, que estabelecia uma relação de causalidade entre lesão e deficiência e transformava esta última em objeto de controle biomédico, o modelo social resistia à tese de que a experiência da opressão era condição natural de um corpo com lesões. O modelo médico, ainda hoje hegemônico para as políticas de bem-estar voltadas para os deficientes, afirmava que a experiência de segregação, desemprego e baixa escolaridade, entre tantas outras variações da opressão, era causada pela inabilidade do corpo lesado para o trabalho produtivo.
Se para o modelo médico o problema estava na lesão, para o modelo social, a deficiência era o resultado do ordenamento político e econômico capitalista, que pressupunha um tipo ideal de sujeito produtivo. Houve, portanto, uma inversão na lógica da causalidade da deficiência entre o modelo médico e o social: para o primeiro, a deficiência era resultado da lesão, ao passo que, para o segundo, ela decorria dos arranjos sociais opressivos às pessoas com lesão. Para o modelo médico, lesão levava à deficiência; para o modelo social, sistemas sociais opressivos levavam pessoas com lesões a experimentarem a deficiência.
Mas em um ponto os modelos social e médico coincidiam: ambos concordavam que a lesão era um tema da alçada dos cuidados biomédicos. O desafio era não apenas rever a lógica de causalidade proposta pelo modelo médico, mas também introduzir uma nova divisão social do trabalho que incorporasse a deficiência. Dessa forma, seria possível desbancar a autoridade daqueles que tradicionalmente administravam a deficiência, para então determinar as prioridades políticas públicas voltadas para os deficientes. Mas, para isso, era preciso deixar claro o que o modelo social entendia por opressão pela deficiência.
Abberley, assim como Oliver, tornou-se deficiente físico por poliomielite, e já era professor de sociologia quando respondeu à carta de Hunt. Com Finkelstein, um sociólogo deficiente sul-africano exilado no Reino Unido, Abberley foi um dos principais teóricos da tese da opressão pela deficiência. Antes de se unir ao grupo inicial da Upias, Abberley considerava-se um “deficiente de sucesso”, isto é, um deficiente que havia passado boa parte da vida sublimando a deficiência [17]. Seus escritos foram uma referência obrigatória para os estudos sobre deficiência. Ainda hoje, o artigo “O Conceito de Opressão e o Desenvolvimento da Teoria Social da Deficiência”, publicado em 1987 na recém-criada revista Disability, Handicap and Society, é uma referência conceitual para o debate [18].
O objetivo da Abberley era duplo: por um lado, diferenciar opressão de exploração; por outro, apresentar a lesão como uma consequência perversa, porém previsível, do capitalismo [19]. A tese de Abberley, uma espécie de ironia ao modelo médico da deficiência, era que a relação de causalidade deveria ser capitalismo-lesão-deficiência, e não lesão-deficiência-segregação. Para comprovar seu argumento, Abberley fez uso de uma série de estatísticas de saúde disponíveis sobre a década de 1980 no Reino Unido, em que diferentes formas de artrite apareciam como a primeira causa de lesões: 31% dos casos mais severos eram provocados por artrite [20].
Da posse do argumento biomédico aceito na época de que grande parte dos casos de artrite era motivada por desgaste no trabalho, Abberley propôs um argumento bipartido, que deve ser entendido como fundamento do modelo social: 1. não se deve explicar o fenômeno da deficiência pela esfera natural ou individual, mas pelo contexto socioeconômico no qual as pessoas com lesão vivem; e 2. é preciso estender os conceitos de lesão e deficiência a outros grupos sociais, como os idosos. A alta prevalência de artrite, especialmente entre idosos, bem como suas consequências debilitantes constituíam um caso paradigmático para o argumento de Abberley: por um lado, mostrava-se que a lesão não era uma tragédia pessoal, mas o resultado da organização social do trabalho; por outro, ampliava-se a compreensão do significado da lesão forma a torná-la um fato ordinário na vida social. A proposta de Abberley não era ingênua, pois não ignorava:
o papel dos germes, genes ou trauma, mas chamava a atenção para o fato de que seus efeitos somente são aparentes em sociedades reais e contextos históricos específicos, cuja natureza é determinada por uma interação complexa de fatores materiais e não-materiais [21].
A ideia não era abandonar o acaso como agente provocador das lesões, mas mostrar que aquilo que mais causava lesões era exatamente o sistema ideológico que oprimia os deficientes, isto é, o capitalismo.
Com esse quadro, Abberley analisou a eficácia da analogia entre a opressão sofrida pelos deficientes e a opressão sofrida pelas mulheres ou os negros. Muito embora estivesse convencido de que as situações de opressão eram semelhantes, Abberley argumentava que a rejeição à lesão era um fato tão difundido na maioria das sociedades industrializadas que a separação entre natureza e sociedade não seria facilmente aceita nas negociações políticas relativas aos deficientes. Diferentemente das discussões sobre desigualdade de gênero, nas quais há consenso político de que a biologia não determina a desvantagem social, no campo da deficiência, Abberley acreditava que esse seria um argumento pouco simpático.
Há uma crença largamente difundida de que a lesão representa “a desvantagem real e natural”, ou seja, a desvantagem provocada pela lesão é universal, absoluta e independente dos arranjos sociais [22]. Ciente dessa resistência ideológica em desnaturalizar a lesão, a proposta de Abberley foi “uma teoria social da lesão”, cujo fundamento era a estrutura do capitalismo, em especial o ordenamento social em torno do trabalho produtivo. O objetivo dessa volta à lesão era assumir que o corpo era um espaço de expressão da desigualdade que precisava ser colocado no centro dos debates sobre justiça social para os deficientes.
Para a teoria social da lesão, o exemplo da artrite era paradigmático. Os que sofriam dessa doença eram pessoas produtivas, sem qualquer forma de lesão, mas que, após anos de sujeição ao trabalho mecânico, adquiriam lesões e experimentavam a deficiência. Intencionalmente, Abberley incluiu na categoria de deficientes grupos tradicionalmente não considerados como tal, como é o caso dos idosos. A desconstrução da simbologia hegemônica do deficiente, que foi iniciada por Abberley, vem sendo uma tarefa contínua dos defensores do modelo social. A aproximação da deficiência ao envelhecimento foi um argumento estratégico adotado pelos primeiros teóricos do modelo social e aprofundado pelas gerações seguintes [23].
O deficiente representado nos sinais de trânsito e em espaços públicos é uma minoria entre os deficientes. A estratégia de desconstrução simbólica propunha a representação de outras formas de deficiência, e não apenas a lesão medular. Nesse processo de revisão da representação da deficiência, Abberley estava ciente de o quanto o grupo dos idosos facilitaria a guinada argumentativa: a lesão é algo recorrente no ciclo da vida humana, e não algo inesperado. A ideia não era banalizar a lesão e a deficiência por meio da tese vulgar de que “todos somos deficientes”. O objetivo era, na verdade, político: ampliava-se o grupo a ser representado, retirava-se a deficiência da esfera do inesperado e, consequentemente, reconheciam-se as demandas dos deficientes como demandas de justiça social.
O resultado desse percurso analítico foi a construção de uma teoria da deficiência como opressão pautada em cinco argumentos: 1. a ênfase nas origens sociais das lesões; 2. o reconhecimento das desvantagens sociais, econômicas, ambientais e psicológicas provocadas nas pessoas com lesões, bem como a resistência a tais desvantagens; 3. o reconhecimento de que a origem social da lesão e as desvantagens sofridas pelos deficientes são produtos históricos, e não resultado da natureza; 4. o reconhecimento do valor da vida dos deficientes, mas também a crítica à produção social das lesões e 5. a adoção de uma perspectiva política capaz de garantir justiça aos deficientes [24]. Essa teoria de Abberley tanto respondia à pergunta inicial que motivou a formação da Upias – por que os deficientes são excluídos da sociedade? – quanto lançava luzes sobre a maneira de romper esse processo de exclusão [25].
Notas:
[1] HUNT, Paul (Ed.). Stigma: the experience of disability. London: Geoffrey Chapman, 1966. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
[2] CAMPBELL, Jane. Growing Pains: Disability politics – the journey explained and described. In: BARTON, Len; OLIVER, Michael. Disability Studies: past, present and future. Leeds: The Disability Press, 1997, p. 82.
[3] UPIAS. Fundamental Principles of Disability. London: Union of the Physically Impaired Against Segregation, 1976.
[4] OLIVER, Michael. The Politics of Disablement. London: MacMillan, 1990.
[5] OLIVER, Michael. BARNES, Colin. Disabled People and Social Policy: from exclusion to inclusion. London: Longman, 1998, p. xii.
[6] Op. cit., p. 3.
[7] UPIAS, op. cit., pp. 3–4.
[8] MORRIS, Jenny. Impairment and Disability: constructing an ethics of care that promotes human rights. Hypathia, v. 16, n. 4, Fall 2001.
[9] Op. cit., p. 5.
[10] O título do livro “Políticas para a Deficiência” remetia à ideia de que haveria políticas, deliberadas ou não, que provocariam ou promoveriam a lesão ou a deficiência (OLIVER, Michael. The Politics of Disablement. London: MacMillan, 1990).
[11] OLIVER; Michael; BARNES, Colin, op. cit., p. 18.
[12] OLIVER, Michael. Introduction. In: ____. The Politics of Disablement. London: MacMillan, 1990, p. xii. Sobre essa discussão terminológica, vida também BARNES, Colin. Disability Studies: new or not so new directions? Disability & Society, v. 14, n. 4, pp. 577-580, 1999.
[13] ALBRECHT, Gary L.; SEELMAN, Katherine D.; BURY, Michael. Introduction. In: ____. Handbook of Disability Studies. London: Sage, 2001, pp. 1-10.
[14] OLIVER, Michael, op. cit., p. 70.
[15] OLIVER, Michael; BARNES, Colin, op. cit., p. 70.
[16] HAHN, Harlan. Disability Policy and the Problem of Discrimination. American Behavioural Scientist, v. 28, n. 3, 1985, p. 294.
[17] ABBERLEY, Paul. The Concept of Oppression and the Development of a Social Theory of Disability. Disability, Handicap & Society, v. 2, n. 1, 1987, p. 5.
[18] Op. cit., pp. 5-19.
[19] Idem, ibidem.
[20] Op. cit., p. 15.
[21] Op. cit., p. 12.
[22] Op. cit., p. 8.
[23] WENDELL, Susan. The Rejected Body: feminist philosophical reflections on disability. New York: Routledge, 1996. MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Debora. Envelhecimento e deficiência. In: Camarano, Ana Amélia. Muito além dos 60: os novos idosos brasileiros. Rio de Janeiro: Ipea, 2004, pp. 107-120.
[24] Op. cit., p. 17.
[25] CAMPBELL, Jane, op. cit., p. 79. Nesse artigo, Campbell conta a história da formação da Upias por meio de entrevistas realizadas com 31 dos participantes mais ativos do movimento social da deficiência nos anos 1980 e 1990 no Reino Unido. Segundo Campbell, todos os entrevistados reconheceram a Upias como a origem do movimento social da deficiência.