Thomas Sankara – Nós não importamos nossa revolução

Originalmente publicado no site Liberation School.

Tradução por Matheus Sousa.


Foto: Sede do partido Sankarista UNIR/PS, distrito de 1200 unidades habitacionais em Ouagadougou, Burkina Faso. Fonte: Wikicommons  

Introdução Editorial

Esta é a primeira tradução em inglês desta entrevista e a primeira parte, na Liberation School, de uma série de trabalhos de Thomas Sankara não traduzidos. Essa série de traduções é o resultado da colaboração com Thomas Sankara.net, uma plataforma online dedicada a arquivar trabalhos sobre e pelo grande revolucionário africano. Nós gostaríamos de expressar nossa gratidão a Bruno Jaffré por nos permitir estabelecer essa colaboração e por nos prover o direito de traduzir esse material para o Inglês pela primeira vez.

Thomas Sankara (1949-1987), muitas vezes conhecido como o “Che Guevara Africano”, foi o líder marxista-leninista da Revolução Burkinabe de 1983 até o seu assassinato, em 1987, que está finalmente sendo investigado [1]. Sankara fez grandes contribuições para a luta anti-imperialista e anti colonial, defesa de auto-determinação nacional, construção do internacionalismo socialista, libertação das mulheres, luta contra a destruição ambiental impulsionada pelo capitalismo, e muitos outros fronts da luta de classes pelo globo [2].

O texto abaixo foi originalmente publicado em L’Humanité, um jornal com fortes amarras históricas ao Partido Comunista Francês, antes de ser republicado em ThomasSankara.net [3].

“Nós não importamos a nossa revolução”

Em 23 de janeiro de 1984, o muito jovem “Presidente do Conselho Revolucionário Nacional da República de Alto Volta” foi “o convidado do L’Humanité.” Leia, na íntegra, a entrevista na qual Thomas Sankara escolheu dizer a verdade.

Ele é um homem sorridente, relaxado, bem humorado e franco que nos recebeu longamente em uma noite de domingo, em seu escritório no Conseil de L’Entente, no final de uma estadia de doze dias em Alto Volta [o país receberá o nome de Burkina Faso em Agosto de 1984 – nota do editor], o que nos permitiu encontrá-lo em três ocasiões. Ele insistiu em nos dizer após a entrevista que conhece o nosso jornal a muito tempo e aproveitaria essa oportunidade para “dizer olá a todos os nossos colegas leitores”.

André Brecourt: Muito foi escrito sobre a jovem revolução no Alto Volta. Seu estilo é surpreendente e incomoda muita gente. Pode nos dizer o por quê?

Thomas Sankara: É verdade que nossa revolução incomoda e surpreende um grande número de pessoas. É surpreendente no sentido de que quebrou muito claramente com os clichês geralmente aceitos, que transformam a chegada dos militares ao poder em um banal golpe de Estado. O que nós alcançamos aqui não foi o que você chama de golpe de Estado. Houve uma insurreição popular cuidadosamente preparada, na qual progressistas, revolucionários e democratas se uniram para acabar com um regime de submissão ao imperialismo. Isso é o que surpreendeu aqueles que não querem entender a direção em que a história do povo da África está evoluindo. O que também é surpreendente é que os soldados Voltaicos estão longe de serem os pobres soldados brutos que as pessoas conhecem em outros lugares, ou alguns imaginam aqui. A grande maioria dos soldados Voltaicos são muito politizados. Eles tem ligação com o seu povo e dividem suas aspirações e lutas diárias. Eles sabem que é seu principal inimigo e como combatê-lo.

Se nossa revolução preocupa alguns, é primariamente por causa do exemplo que ela pode dar e não só na nossa sub-região. Nós não importamos a nossa revolução, muito menos decidimos exportá-la. É o resultado de um processo histórico – cientificamente verificado e inevitável – na transformação das lutas que as classes sociais têm que travar umas contra as outras, para conseguir essa forma de revolução que só pede para ser aperfeiçoada, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, não importa o céu em que se encontre.

André Brecourt: Você pretende avançar rapidamente. De qualquer maneira, o feudalismo no campo continua poderoso, e o mesmo vale para a burguesia compradora. Ambos mantêm a vantagem sobre a economia. Que medidas você pretende tomar para limitar o poder deles?

Thomas Sankara: Está aí o primeiro passo, que consiste na emissão de decretos e portarias; nós rejeitamos isso porque é essencialmente burocrático. O segundo consiste em retirar as massas populares do obscurantismo. Essa é a medida que nos empenhamos em empreender. 

Lutar contra o obscurantismo significa permitir que cada indivíduo de Alto Volta eleve seu nível de consciência política. Isso significa ser um povo por si mesmo [un peuple pour soi] e não para outros [pour autrui], e isso não é fácil na medida em que o acesso ao conhecimento ainda é controlado pela burguesia e pelas forças feudais. Nós estamos determinados a confrontá-los, e para isso pretendemos acelerar o processo de democratização para expulsá-los.

Isso não acontece sem excessos; mas como poderia ser diferente? Estamos satisfeitos com as atualizações sobre o que está ocorrendo no campo. Pela primeira vez, os camponeses ousam informar as autoridades sobre os abusos que sofrem. Não vemos isso como uma delação, ao contrário de certas afirmações, mas sim como o início de uma consciência entre nossos camponeses, que agora pretendem participar efetivamente da gestão cotidiana do poder. 

Nós pretendemos desmistificar essas forças do passado e apresentá-las como elas são para o nosso povo. Por isso, somos a favor de uma imprensa responsável, militante, de um serviço de rádio que nos permita ser ouvidos nos cantos mais longínquos do país e nas línguas que os nossos compatriotas entendem. 

André Brecourt: Seu país vive a hora dos “Comitês de Defesa da Revolução”. De qualquer maneira, parece que também servem de refúgio para os contra-revolucionários. Como você planeja limpar as fileiras dos CDRs para que eles possam realmente desempenhar o seu papel? 

Thomas Sankara: É verdade que você pode encontrar um pouco de tudo nos CDRs. Você encontra reacionários, que inteligentemente se integraram, assim como oportunistas de esquerda. O problema não está limitado a essas duas categorias. É essencial entender que os CDRs constituem a arma principal, a tropa de choque da linha de frente na batalha que vai permitir que nossa revolução triunfe. Então nós estamos trabalhando para purificá-los, isso quer dizer que nós estamos trabalhando para nos livrar dos elementos contra-revolucionários. Isso só pode ser feito com o paciente, porém determinado, desenvolvimento da democratização das nossas estruturas.

Nós já notamos alguns resultados!

Foi assim que algumas antigas autoridades foram depostas, com base em fatos irrefutáveis apresentados pelos CDRs. Em contraste, outros CDRs tiveram suas práticas condenadas e foram obrigados a reeleger seus delegados e substituir seu pessoal de escritório. Existem também todo tipo de excessos. Isso é normal e era previsível.

Entre o executivo Voltaico, um intelectual, que deixa seu meio social pequeno-burguês para ingressar na revolução, e o trabalhador Voltaico que viveu por vinte e três anos sob um regime neocolonial, entre essas duas pessoas a compreensão da revolução, assim como a prática, não são iguais. Um pretende fazê-lo com luvas brancas e o outro pensa que a revolução deve dar-lhes a liberdade de satisfazer todos os seus caprichos. Nós entendemos esses comportamentos muito bem.

Nossa revolução derrotou o fatalismo. As pessoas, hoje, têm a possibilidade de se expressarem. Hoje, elas libertam seus instintos. Amanhã, serão as suas consciências que serão libertadas, mobilizadas.

André Brecourt: Qual deveria, em sua opinião, ser o lugar dos sindicatos nesse processo?

Thomas Sankara: Os sindicatos em Alto Volta tem uma longa tradição de luta, embora não sejam homogêneos. Tivemos sindicatos progressistas e também reacionários. Estes últimos foram as armas seculares de certos líderes de regimes anteriores. Na hora da revolução, nós não temos uma escolha. Nós não podemos poupar esforços para bloquear o caminho dos reacionários, qualquer que seja a organização em que se refugiem, sejam sindicatos ou partidos clandestinos, porque sabemos que eles não pouparão esforços em suas tentativas de nos destruir. [4] Além disso, logo após o 4 de agosto de 1983, um oficial desses “sindicatos” proclamou em alto e bom som que lutaria contra nossa revolução com sua espada desembainhada, se necessário.

Quanto aos sindicatos progressistas cujas ações atendem aos interesses das massas, contamos com seu apoio para avançar. Pela sua capacidade de mobilização, eles ocupam um espaço proeminente no nosso processo revolucionário. De qualquer maneira, nós não queremos o desenvolvimento de uma rivalidade entre esses sindicatos e os CDRs. Nós somos contra isso. Por agora, nós não achamos que deve ter, do ponto de vista dos princípios revolucionários, qualquer oposição entre esses sindicatos e os CDRs. Por outro lado, estamos convencidos de que podem existir, de um ponto de vista subjetivo, oposições, e teremos a coragem de combatê-los em plena luz do dia, porque os denunciamos como práticas de oportunismo de esquerda.

André Brecourt: No dia 28 de outubro, pouco antes de sua partida para Niamey, você relatou, em uma declaração amplamente divulgada, que houveram tentativas de desestabilizar o Estado de Alto Volta. Você poderia nos contar mais sobre isso?

Thomas Sankara: Não, eu não quero fazer isso. Não queremos colocar nosso povo contra outras pessoas. Mas as atividades subversivas contra o Alto Volta são muito reais, constantes. Elas são nacionais e internacionais. Nós temos provas disso. Mas não pensamos que seria apropriado divulgar neste momento já que não queremos criar uma atmosfera de xenofobia entre nosso povo.

Queremos circunscrever o mal e suas origens, e desassociar claramente aqueles que nos atacam de seus povos, os quais nós consideramos como nossos irmãos, nossos amigos. Essa é a razão pela qual realmente não queremos compartilhar as evidências, pois isso significaria apontar o dedo para a nacionalidade em questão. Dito isso, confirmo solenemente a realidade dessas tramas. Elas não derivam de uma análise lógica simples; essa realidade é óbvia para todos, exceto aqueles que pretendem demonstrar sua miopia. Resulta de investigações que conduzimos e de informações que militantes simpatizantes nos forneceram.

Pudemos assim ver que uma revolução justa nunca está isolada. E isso é, para nós, um grande conforto.

André Brecourt: Como você enxerga a sua relação com a França?

Thomas Sankara: Nós queremos uma cooperação dinâmica de auto-realização que permita a França e o povo voltaico de se abrirem um ao outro. Esse tipo de cooperação só verá a luz do dia se os franceses e os voltaicos se livrarem dos cálculos frios que se escondem por trás dos interesses de um Estado para com o outro. Isso só irá acontecer se estiverem ambos convencidos de que qualquer forma de neocolonialismo, imperialismo e paternalismo devem ser excluídas desse tipo de relação.

Isso significa que nossa dignidade deve ser respeitada, assim como a nossa soberania. Isso também significa que, acima de tudo, que devemos trabalhar essencialmente para aproximar os nossos dois povos e não para cultivar relações oficiais e formais. É somente desse modo que seremos capazes de ter uma política substancial em ambas as partes. A França emergiu a partir de 10 de maio de 1981 [o dia em que o Partido Socialista conquistou o poder com a eleição de François Mittérand como presidente da França – nota do tradutor de Liberation School] fez belas declarações que conquistaram a simpatia dos povos africanos. Mas nós queremos é que a realidade cotidiana esteja à altura dessas declarações, das promessas feitas. Lembre-se daqueles feitos pelo Partido Socialista antes de 10 de maio de 1981, e compare-os com o que está acontecendo em termos concretos hoje. Certamente não subestimo o peso do capitalismo internacional, com tudo que isso implica, mas ainda assim.

O comportamento do governo francês é surpreendente, vai de encontro às nossas convicções e esperanças quando continua a manter relações com a África do Sul [sob regime do Aparthied na altura – nota do editor de L’Humanité], quando envia tropas ao Chade para apoiar o regime de Hissène Habré. São esses fatos que nos ferem. Dizemo-los aos franceses num acto de amizade, com toda a franqueza, para que nos compreendam melhor, tal como esperamos que nos critiquem, para nos dizerem como sermos melhor compreendidos por eles. A cooperação entre França e Alto Volta pode ser bela e exemplar, desde que aceitemos que nossos inimigos sejam condenados onde quer que se encontrem, mesmo que nos prejudique por nossas alianças paralelas.

Referências

[1] See Miernecki. Katie. (2021). “34 years after Sankara’s assassination, killers finally stand trial.” Liberation News, October 15. Disponível aqui.

[2] For a general overview of Sankara’s work, see Malott, Curry. (2020). “Thomas Sankara: Leadership and action that inspires 71 years later.” Liberation School, December 21. Disponível aqui;  e Bakupa-Kanyinda, Balufu. (2018). “Thomas Sankara: A film by Balufu Bakupa-Kanyinda.” Liberation School, August 23. Disponível aqui.

[3] This interview was originally published in French as Brécourt, André. (2017). “Thomas Sankara: ‘Nous n’avons pas importé notre révolution.” L’Humanité, October 12. Disponível aqui. Isso foi republicado aqui em ThomasSankara.net.

[4] Embora os erros menores fossem fáceis de corrigir, a formulação no início desta frase parece contraditória e, portanto, a modificamos de acordo com o sentido geral da passagem. Literalmente, está escrito: “Não podemos poupar, não bloquear o caminho para os reacionários [Nous ne pouvons ménager, ne pas barrer la route aux réactionnaires]” – nota do tradutor.

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