Originalmente publicado no Kátharsis.
Ilustração de Sandro Rybak.
A qualidade mais básica do ser humano, aquilo que o distingue de outros animais, é o trabalho. Mas o trabalho não é qualquer atividade: é uma atividade consciente, direcionada a um fim: é uma atividade na qual voltamos nossa consciência para o futuro, para o que pode vir a ser. É uma atividade que nos obriga não só a refletir sobre o que fazemos, mas também a conhecer o mundo ao redor. Põe o mundo como objeto da nossa ação e, consequentemente, nos permite voltar a consciência sobre nós mesmos, sobre nossos atos.
Trata-se de uma nova base sobre a qual os indivíduos alcançam alturas cada vez maiores no domínio da natureza externa e no autodomínio. No entanto, nos encontramos cada vez mais distantes desta aquisição histórica da humanidade. Na realidade, nos sentimos (e efetivamente estamos) cada vez menos no controle de nosso próprio destino, cada vez mais oprimidos por uma força que tem se mostrado onipotente e onipresente: o modo de produção capitalista.
O Capital, cada vez mais, passa a ser uma entidade que subjuga todas as esferas à sua lógica. Não há relação que não seja mercantilizada, não há objeto da criação ou da fruição humana que não se torne valor de troca. Não há temporalidade que não seja o tempo de trabalho. Cada um dos espaços da vivência humana é, em maior ou menor grau, contaminada e distorcida pela lógica da produção da mais-valia, com efeitos devastadores para o sujeito, para seu modo de viver, suas relações, seu psiquismo.
Com a reestruturação produtiva das últimas décadas, nos vemos cada vez mais em um processo de aceleração. Esta não é simplesmente uma percepção subjetiva, mas um fato objetivo no qual, devido a mecanismos da acumulação flexível, as fronteiras entre o trabalho e o lazer, a disponibilidade de mercadorias em maior quantidade (embora não necessariamente em qualidade) imprime uma marca específica sobre os sujeitos.
Nossas necessidades e nossos tempos se tornam cada vez mais individualizados. Porém, submetidos às relações e ao sociometabolismo do Capital, esta individualização, na realidade, produz uma fragmentação dos sujeitos e uma assincronia dos tempos. Fragmentados, os sujeitos se encontram em uma situação contraditória: possuem escolhas individualizadas, mas um menor poder efetivo de realizar escolhas e alternativas significativas.
Não é coincidência que, nesse contexto, o futuro tenha deixado de parecer algo a ser construído ativamente e se tornado algo que aguardamos passivamente ou buscamos evitar. O futuro não é só um olhar adiante de forma contemplativa. É um processo ativo e criativo no qual os sujeitos avaliam criticamente seus desejos e intenções em relação com suas próprias capacidades e potencialidades. Requer um complexo trabalho que envolve o sujeito como um todo, que o faça “sair” do presente em direção ao que ainda não é.
O futuro, como uma dimensão do tempo que revele as potencialidades dos sujeitos, é algo a ser conquistado. Se a dimensão histórica a longo prazo está completamente ausente da visão do modo de controle sociometabólico do capital, é condição inegociável a construção de uma alternativa radical centrada na criação de uma vida significativa como sujeitos reais de sua própria atividade vital, em unidade com as potencialidades cada vez mais intensificadas de sua sociedade.
Neste sentido, a unidade da consciência individual e da consciência social é pré-condição e consequência do processo de reconquista do futuro como dimensão do tempo na qual os sujeitos efetivam suas potencialidades cada vez mais amplas, ao invés de uma dimensão estranhada, fetichizada. É só através da construção de uma alternativa radical, na qual o tempo histórico seja recuperado, podemos superar a assincronia e a fragmentação dos tempos individualizados, em direção à construção coletiva do futuro.
“O tempo é tudo, o homem não é mais nada; quando muito, ele é a carcaça do tempo”.
Com estas palavras, o Marx de Miséria da Filosofia (1847) apontava muito acertadamente a dinâmica entre o tempo de trabalho e o tempo do indivíduo. O tempo (de trabalho) é tudo, o homem, o seu tempo enquanto tempo humanamente significativo, não é nada. O sujeito é apenas a carcaça do tempo, o invólucro do trabalho enquanto produtor de valor de troca.
A perda das dimensões do tempo humanamente significativas é uma consequência e uma necessidade nefasta do Capital. Reduzido à única dimensão válida para o modo de produção, perde-se o caráter de longo prazo, de planejamento do próprio tempo; a própria produção, voltada unicamente à acumulação e à autorreprodução do capital, perde qualquer capacidade de planejamento que se vincule à totalidade do gênero humano e às necessidades reais dos sujeitos, criando uma “racionalidade irracional”.
A nível individual, isto significa um completo desamparo e desesperança em relação ao futuro. Se entendemos o futuro como uma forma de idealizar as nossas potencialidades em relação com alternativas concretamente postas, é evidente que no momento histórico atual o futuro se apresente como uma dimensão fetichizada, que se impõe diante dos sujeitos, e não como uma dimensão que ofereça um olhar sobre os desejos e os objetivos verdadeiramente significativos dos sujeitos.
Por isso, cada vez mais, nos voltamos à esferas cada vez mais individualizadas da realidade, cada vez mais imediatas, enquanto os objetivos de longo prazo, os objetivos significativos coletivamente, vão perdendo sua força impulsionadora, jogadas de canto no campo de visão dos sujeitos e da sociedade.
Torna-se imprescindível, para recuperarmos o futuro como uma dimensão de potencial significativo individualmente e socialmente, uma reconquista do próprio tempo, uma reconquista de formas concretas de tomada de decisão e planejamento de acordo com motivos e fins verdadeiramente significativas para o gênero humano, e não para a autorreprodução do capital. É apenas desta forma que podemos recuperar o futuro.
REFERÊNCIAS
Mészáros, I. O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico. São Paulo: Editora Boitempo, 2007.
Rosa, H. Aceleração: A transformação das estruturas temporais na Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 2019.