Nelson Werneck Sodré – A verdade sobre o modernismo

Originalmente publicado no livro “Depoimento de uma geração arquitetura moderna brasileira”, organizado por Alberto Xavier. São Paulo Cosac Naify, 2003.

Transcrição por Andrey Santiago.


Quando o modernismo apareceu, as lutas políticas refletiam sensivelmente as mudanças sociais e políticas. Desde o advento da República, a pequena burguesia funcionava como vanguarda da burguesia que disputava uma parcela do poder e chegava a conquistá-la, em alguns casos. Ao seu impulso, entretanto, opunha-se poderosamente a classe territorial, que dominava inteiramente o regime e, portanto, o sistema da escolha para o legislativo e para o executivo, travando aquele impulso de participação. O domínio absoluto do sistema fazia-se pelo consenso praticamente unânime das forças regionais que constituíam a classe territorial. Dessa unanimidade consensual e da debilidade e transigência da burguesia derivava a estabilidade relativa do regime republicano brasileiro. No momento em que aquelas forças regionais divergissem umas das outras e em que a burguesia se tornasse mais aguerrida, mobilizando ativamente a pequena burguesia, o sistema estaria ameaçado. A introdução de relações capitalistas no campo, na zona mais rica do país, geraria aquelas divergências. A urbanização, sempre estreitamente ligada à industrialização, provocaria o crescimento da pequena burguesia e o aparecimento da classe operária. Era a ruptura da estabilidade que se anunciava, disfarçada, apenas pela rotina.

Essa mudança na paisagem social brasileira estava ligada a razões endógenas e exógenas. As convenções historiográficas estabeleceram, com justa razão, o fim do primeiro grande conflito militar do século XIX. Isto era válido para o Brasil por todos os motivos. O escravismo fora extinto há menos de três décadas, o novo regime político não estava isento de crises que denunciavam a presença de graves contradições, que se aprofundavam agora. Em escala universal, assistia-se à crise do capitalismo. A Revolução de Outubro e a consolidação subsequente do poder soviético abalavam o mundo.

No Brasil, que recebia os reflexos das gigantescas transformações em processo, as mudanças acompanhavam o que ocorria no exterior, mas refletiam também o avanço da acumulação capitalista e a necessidade de maior participação da burguesia no poder. O aparelho de Estado precisava sofrer as transformações correspondentes. A pressão nesse sentido traduz-se, no país, em episódios que, coincidentes até no ano — o de 1922_—, pertenciam à mesma etapa do processo histórico: a fundação do Partido Comunista, a rebelião tenentista de Copacabana, a Semana de Arte Moderna. São peças do mosaico amplíssimo configurado pela etapa da revolução burguesa brasileira, revolução que daria, na referida etapa, um dos seus primeiros passos.

O quadro político, particularmente no que se ligava aos choques da sucessão presidencial, era de grandes lutas, envolvendo correntes apaixonadas de opinião. A estrutura institucional estava gravemente ameaçada. Os movimentos de rebeldia militar denunciariam a profundidade dessa ameaça. Não seria surpreendente que a tormenta atingisse o campo das artes e particularmente o da literatura.

A historiografia brasileira convencionou a realização das manifestações da Semana da Arte Moderna como início de uma nova etapa em nosso desenvolvimento literário, a do movimento modernista ou modernismo. A Semana tem sido superestimada sem dúvida alguma, pois sua importância, meramente episódica, embora característica, sob muitos aspectos do verdadeiro caráter do movimento, foi muito menor do que pretendem alguns de seus participantes e alguns de seus cronistas.

Trata-se de uma série de atividades artísticas realizadas em São Paulo, em fevereiro de 1922, com grande alarde e no intuito de provocar escândalo. Seus participantes pretendiam subverter os padrões estéticos dominantes: o escândalo destinava-se a chamar a atenção do público para as novas manifestações. Era uma ruptura com as ideias vigentes, mas uma ruptura sob proteção das representações mais consagradas do regime, as mais austeras, as mais conservadoras.

A burguesia brasileira, sempre conciliadora com o latifúndio, impulsionava a subversão nas artes e a patrocinava. Sem pretender relação direta, linear, sincrônica – os processos culturais são sempre complexos -, é possível verificar como o longo domínio oligárquico, forma assumida pela classe dos proprietários territoriais, senhores do latifúndio aqui, condicionava a quietude, a monotonia, a rotina do que se convencionou conhecer, então, como passadismo, em oposição a modernismo, enquanto a ruptura dos renovadores, na Semana e depois, vinha condicionada pelo avanço da burguesia brasileira, ascendendo novo patamar, na sua revolução por etapas, sempre recusando as viradas raciais. Sem proletariado organizado, numeroso, atuante, que a pressionasse para elas, a burguesia dava passos cautelosos. No caso, queimava alguns quadros de sua vanguarda artística, recrutados, como era natural, na pequena burguesia.

A consciência que os participantes ou assistentes tinham do processo e daquele episódio revela singular variedade e ainda nisso é característica. Desde a crueza do julgamento de Di Cavalcanti, para quem o episódio não passava de uma “semana de escândalos literários e artísticos de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulistana”, até aquela constatação melancólica de Alceu Amoroso Lima: “O modernismo, na sua fase inicial, iria ser, acima de tudo, um movimento contra“. Os participantes valorizaram-se sempre. O mesmo Di Cavalcanti, em outra oportunidade, diria: “Para a cultura literária brasileira, já se repetiu suficientemente, foi o movimento da operação cirúrgica necessária”. Oswald de Andrade frisaria o seu sentido de libertação: “Dentro da renovação literária trazida pela Semana exprimiram-se todas as cores do Brasil político destes vinte anos”. Manuel Bandeira ressaltou o lado escandaloso: “A realização, tumultuária e escandalosa, constituiu um impacto emocional de benéficas consequências, pois despertou o interesse dos jornais para um debate até então confinado a uns círculos restritos de intelectuais jovens e ainda pouco conhecidos do grande público”.

É pouco mais ou menos a opinião de Guilherme de Almeida: “Como e por – que se fez a Semana? Como e por que costumam os moços a fazer das suas: dançar o twist ou jogar um Volkswagen na roleta russa. Éramos os playboys intelectuais de 1922: ano do centenário da Independência ou Morte. Para manter aquela e destruir esta, inventamos uma fórmula: um pouco de idealismo, muito de curiosidade e muitíssimo de gozação“. Mas Américo Facó, examinando de fora, seria objetivo em seu juízo: “A Semana foi apenas um movimento de exaltação; o que se fez, bem que poderia ser feito sem ela”, esclarecendo quanto há de errôneo em marcá-la como início do movimento modernista. E Sérgio Milliet, de participação discreta na Semana, confessaria “a que ponto certas informações literárias da época eram insuficientes, senão puramente palpiteiras”, para rematar: “Com exceção de Mário de Andrade, que lera quase tudo, ninguém sabia nada do que se escrevia na Europa e os que liam, liam mal”.

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