bell hooks – Compromisso: que o amor seja o amor-próprio

Quarto capítulo do livro “Tudo sobre o amor” de bell hooks, publicado pela Editora Elefante.

Para comprar a obra completa, clique aqui.

Tradução por Stephanie Borges.


O compromisso é inerente a qualquer relacionamento genuinamente amoroso. Qualquer um que esteja realmente preocupado com o crescimento espiritual do outro sabe, consciente ou instintivamente, que só pode alimentar esse crescimento através de um relacionamento constante. – M. Scott Peck

O compromisso de dizer a verdade estabelece os fundamentos para a abertura e a honestidade, que são a pulsação do amor. Quando podemos nos ver como realmente somos, e nos aceitamos, construímos os fundamentos necessários para o amor-próprio. Todos já ouvimos a máxima: “Se você não se ama, não poderá amar mais ninguém”. Soa bem. No entanto, é muito comum sentirmos certo grau de confusão ao ouvir essa afirmação. A confusão surge pois a maioria das pessoas que pensam não serem dignas de receber amor tem essa percepção porque, em algum momento de sua vida, foi socializada por forças fora de seu controle para se ver indigna de amor. Nós não nascemos sabendo como amar alguém, quer se trate de nós mesmos ou de outra pessoa. Contudo, nascemos capazes de reagir ao carinho. Conforme crescemos, podemos dar e receber atenção, afeição e alegria. Aprender como nos amar e como amar os outros dependerá da existência de um ambiente amoroso.

O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar. Usar uma definição prática do amor como as ações que tomamos em favor de nosso crescimento espiritual ou o de outrem nos fornece um diagrama para trabalhar a questão do amor-próprio. Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos.

Muitas pessoas consideram útil examinar o passado de modo crítico, especialmente a infância, para mapear a internalização de mensagens que afirmavam que elas não tinham valor, não eram boas o suficiente, eram loucas, estúpidas, monstruosas, e por aí vai. Apenas entender como adquirimos esses sentimentos de inutilidade raramente nos permite mudar as coisas; em geral, é só uma etapa do processo. Assim como muitas outras pessoas, considerei útil examinar padrões de pensamento e comportamento negativos aprendidos na infância, especialmente aqueles que moldaram meu senso de self e identidade. Entretanto, esse processo sozinho não garantiu a autorrecuperação. Não foi suficiente. Compartilho isso porque é muito fácil ficar empacada na simples descrição, repetindo a própria história várias vezes, o que pode ser uma forma de se apegar ao luto ligado a esse passado ou a uma narrativa que põe a culpa nos outros.

Se é importante compreendermos as origens de uma autoestima frágil, também é possível ultrapassar esse estágio (a identificação de quando e onde recebemos socialização negativa) e ainda criar uma base para a construção do amor-próprio. Indivíduos que ultrapassam esse estágio tendem a avançar para o próximo, que consiste em introduzir ativamente em nossa vida padrões de pensamento e comportamento construtivos e positivos. Não é importante que as pessoas se lembrem dos detalhes do abuso. Quando a consequência desse abuso é um sentimento de falta de valor, elas ainda podem se envolver num processo de autorrecuperação ao encontrar formas de afirmar o próprio valor.

O coração ferido aprende o amor-próprio começando por superar a baixa autoestima. Em seu extenso livro Autoestima e os seus seis pilares, Nathaniel Branden destaca dimensões importantes da autoestima: “a prática de viver conscientemente, a autoaceitação, a autorresponsabilidade, a autoafirmação, viver com propósito e praticar a integridade pessoal”. Viver conscientemente significa pensar criticamente sobre nós mesmos e o mundo em que vivemos. Ousar fazer perguntas básicas a nós mesmos: quem, o quê, quando, onde e por quê. Responder a essas questões geralmente nos fornece um grau de consciência que nos ilumina. Branden afirma: “Viver conscientemente significa buscar estar consciente de tudo o que sustenta nossas ações, propósitos, valores e objetivos — para melhorar nossa habilidade, seja ela qual for — e nos comportarmos de acordo com o que vemos e sabemos”. Para viver conscientemente, temos que nos engajar em uma reflexão crítica a respeito do mundo em que vivemos e conhecê-lo mais intimamente.

Com frequência é por meio da reflexão que indivíduos que não se aceitavam tomam a decisão de parar de ouvir as vozes negativas, dentro e fora de si, que os rejeitam e os desvalorizam constantemente. Frases motivacionais funcionam para qualquer pessoa que esteja se esforçando para se aceitar. Embora durante anos eu tenha me interessado por formas terapêuticas de cura e autoajuda, frases motivacionais sempre me pareceram um pouco bregas. Minha irmã, que na época trabalhava como terapeuta na área de dependência química, me encorajou a dar uma chance para as frases motivacionais e ver se eu experimentaria mudanças concretas na minha percepção. Escrevi frases relevantes para o meu dia a dia e comecei a repeti-las como parte da minha meditação matinal. A primeira da minha lista era: “Estou rompendo com antigos padrões e seguindo adiante com a minha vida”. Eu não só descobri que elas me davam uma tremenda injeção de energia — uma maneira de começar o dia acentuando a positividade — como também achei útil repeti-las durante o dia caso eu me sentisse particularmente estressada ou caindo no abismo do pensamento negativo. As frases motivacionais me ajudaram a restaurar meu equilíbrio emocional.

A autoaceitação é difícil para muitos de nós. Há uma voz interna que julga constantemente, primeiro nós mesmos e então os outros. Essa voz gosta da indulgência de uma crítica negativa sem fim. Como aprendemos a acreditar que a negatividade é mais realista, ela parece mais real do que qualquer voz positiva. Uma vez que começamos a substituir o pensamento negativo pelo positivo, fica claro que, longe de ser realista, o pensamento negativo é totalmente incapacitante. Quando somos positivos, não só aceitamos e afirmamos quem somos, mas também somos capazes de afirmar e aceitar os outros.

Quanto mais nos aceitamos, mais estamos preparados para assumir responsabilidades em todas as áreas da nossa vida. Ao comentar esse terceiro pilar da autoestima, Branden define a autorresponsabilidade como a disposição de “assumir a responsabilidade pelas minhas ações e a realização dos meus objetivos, […] pela minha vida e pelo meu bem-estar”. Assumir a responsabilidade não significa negar a realidade da injustiça institucionalizada. Por exemplo, o racismo, o machismo e a homofobia criam barreiras e incidentes concretos de discriminação. Simplesmente assumir responsabilidade não significa que possamos impedir que atos discriminatórios ocorram. No entanto, podemos escolher como reagimos aos atos de injustiça. Assumir a responsabilidade significa que, diante de barreiras, ainda temos a capacidade de inventar nossa vida, de moldar nosso destino de formas que ampliem nosso bem-estar ao máximo. Todos os dias praticamos essa transmutação para lidar com realidades que não podemos mudar facilmente.

Muitas mulheres são casadas com homens que não as apoiaram quando decidiram investir em sua própria educação. A maioria dessas mulheres não abandonou os homens da sua vida; elas desenvolveram estratégias construtivas de resistência. Uma mulher com quem conversei estava inibida porque seu marido trabalhava numa fábrica e ela se sentia desconfortável por ter mais educação formal que ele. No entanto, ela queria voltar ao mercado de trabalho e, para isso, precisava de uma pós-graduação. Ela fez a escolha de assumir a responsabilidade por suas necessidades e seus desejos, acreditando que isso também melhoraria o bem-estar da família. Voltar a trabalhar aumentou sua autoestima e modificou a raiva passivo-agressiva e a depressão que ela havia desenvolvido como consequência do isolamento e da estagnação. Entretanto, tomar essa decisão e encontrar maneiras de realizá-la não foi um processo fácil. O marido e os filhos se mostravam desapontados quando a independência dela os forçava a aceitar mais responsabilidades em relação ao trabalho doméstico. No longo prazo, todos se beneficiaram. Sem falar que essas mudanças fortaleceram a autoestima dela de maneiras que lhe mostraram como o amor-próprio tornou possível estar disponível para os outros de um jeito construtivo. Ela estava mais feliz e todos ao seu redor também.

Para fazer essas mudanças, ela precisou usar outro aspecto vital da autoestima, a “autoafirmação”, definida por Branden como “a disposição de se posicionar em favor de si mesmo, de ser quem sou abertamente, de me tratar com respeito em todos os encontros humanos”. Uma vez que muitos de nós fomos constrangidos na infância, fosse em nossas famílias de origem ou nos ambientes escolares, o curso de ação que comumente escolhemos para evitar conflitos era o padrão aprendido de seguir o fluxo e não fazer alarde. Quando éramos crianças, os conflitos via de regra compunham o contexto para desprezo e humilhações, ou seja, os espaços em que éramos constrangidos. Nossas tentativas de autoafirmação não funcionavam adequadamente como defesa. Muitos de nós aprendemos que a passividade reduzia a possibilidade de ataque.

A socialização machista ensina às mulheres que a autoafirmação é uma ameaça à feminilidade. Aceitar essa lógica equivocada prepara o terreno para a baixa autoestima. O medo de ser assertiva costuma emergir em mulheres que foram treinadas para ser boas meninas ou filhas prestativas. No lar da nossa infância, meu irmão nunca foi punido por retrucar. Afirmar suas opiniões era um sinal positivo de masculinidade. Quando minhas irmãs e eu expressávamos nossas opiniões, nossos pais diziam que esse comportamento era negativo e indesejável. Ouvíamos, especialmente do nosso pai, que a assertividade das mulheres não era feminina. Não escutávamos esses avisos. Embora nossa casa fosse um lar patriarcal, o fato de que as mulheres eram bem mais numerosas que os dois homens, meu pai e meu irmão, fazia com que fosse seguro expressar nossos pensamentos, retrucar. Por sorte, no momento em que nos tornamos jovens adultas, o movimento feminista já havia chegado e validado que ter voz e ser assertiva era necessário para construir autoestima.

Uma das razões pelas quais as mulheres tradicionalmente fofocam mais que os homens é o fato de a fofoca ser uma interação social na qual elas encontram conforto para dizer o que realmente pensam e sentem. Com frequência, em vez de afirmar o que pensam no momento apropriado, as mulheres dizem o que consideram que vai agradar o interlocutor. Depois, elas fofocam, expressando então seus pensamentos verdadeiros. Essa divisão entre um “eu” falso inventado para agradar os outros e um “eu” mais autêntico não existe quando cultivamos uma autoestima positiva.

***

O movimento feminista realmente ajudou as mulheres a compreender o poder pessoal que se adquire com uma autoafirmação positiva. A obra A revolução interior: um livro de autoestima, um best-seller de Gloria Steinem, alertou as mulheres quanto ao perigo de alcançar o sucesso sem estabelecer as bases necessárias para o amor-próprio e a autoestima. Ela descobriu que mulheres bem-sucedidas que ainda sofriam de auto-ódio internalizado invariavelmente agiam de formas que minavam suas realizações. E, caso a pessoa bem-sucedida que sofre de auto-ódio não tenha se sabotado, ela pode ter vivido num desespero particular, incapaz de dizer aos outros que o sucesso não põe fim, de fato, à falta de autoestima. Para complicar as coisas, as mulheres podem sentir necessidade de fingir que amam a si mesmas, para projetar confiança e poder para o mundo exterior e, como consequência, sentirem-se num conflito psicológico, desconectadas de seu “eu” verdadeiro. Envergonhadas pelo sentimento de que nunca poderão deixar ninguém saber quem realmente são, elas podem escolher o isolamento e a solidão por medo de serem desmascaradas.

Isso também ocorre com os homens. Quando homens poderosos alcançam o topo do reconhecimento profissional em sua carreira, frequentemente sabotam tudo o que construíram agindo de forma autodestrutiva. Homens que ocupam as posições mais baixas no totem da economia nacional fazem isso, assim como os do topo. O presidente Bill Clinton agiu de forma hipócrita, traindo tanto seus compromissos pessoais em relação à sua família como seu compromisso de ser um modelo dos valores estadunidenses para o povo deste país. Ele fez isso justamente quando sua popularidade estava no auge. Depois de passar boa parte da vida avançando contra todas as probabilidades, suas ações expuseram uma falha fundamental em sua autoestima. Embora ele seja um homem branco, educado em uma universidade de elite e economicamente abastado, privilegiado, com todas as mordomias, suas ações irresponsáveis eram uma forma de se desmascarar, de mostrar ao mundo que não era o “bom sujeito” que fingia ser. Ele criou o contexto para um escândalo público que, sem dúvidas, espelha momentos de vergonha da infância, quando alguma figura de autoridade em sua vida o fez sentir que não tinha valor, que nunca seria digno, não importa o que fizesse. Qualquer um que sofra de baixa autoestima pode aprender com esse exemplo. Se atingirmos o sucesso sem confrontar e alterar as bases trêmulas de ódio e desprezo nas quais nossa baixa autoestima está fundamentada, fraquejaremos ao longo do caminho.

***

Não por acaso, “viver com propósito” é o sexto elemento da autoestima. De acordo com Branden, isso implica assumir a responsabilidade de criar objetivos conscientemente, de identificar as ações necessárias para alcançá-los, garantir que nosso comportamento está alinhado com nossos objetivos e prestar atenção ao resultado de nossas ações para que vejamos se elas estão nos levando aonde queremos ir. A maioria das pessoas se preocupa em viver com propósito quando se trata da escolha profissional. Infelizmente, muitos trabalhadores sentem que têm pouquíssima liberdade de escolha em relação à profissão. A maioria das pessoas não cresce sabendo que o trabalho que escolhemos terá grande impacto em nossa capacidade de ter amor-próprio.

O trabalho ocupa muito de nosso tempo. Fazer um trabalho que odiamos ataca nossa autoestima e nossa autoconfiança. A maioria dos trabalhadores não pode fazer o trabalho que ama. Contudo, todos podemos aprimorar nossa capacidade de viver com propósito aprendendo como experimentar satisfação em qualquer profissão que desempenhemos. Encontramos essa satisfação ao nos comprometermos totalmente com o trabalho que temos, seja qual for. Quando tive um emprego de professora que odiava (o tipo de trabalho em que você deseja ficar doente para ter uma desculpa para não ir), o único modo que eu tinha de aliviar a profundidade da minha dor era dar meu melhor. Essa estratégia me permitia viver com propósito. Fazer bem o trabalho, ainda que não gostemos do que estamos fazendo, suscita um sentimento de bem-estar, mantém nossa autoestima intacta. Essa autoestima nos ajuda quando vamos em busca de um trabalho que pode ser mais compensador.

Ao longo da minha vida não me aventurei apenas em busca de um trabalho de que gostasse, mas também de trabalhar com pessoas que eu respeitasse, de quem gostasse ou amasse. A primeira vez em que declarei o desejo de trabalhar num ambiente de trabalho amoroso, meus amigos agiram como se eu estivesse louca. Para eles, amor e trabalho não andam juntos. No entanto, eu estava convencida de que trabalharia melhor em um ambiente moldado por uma ética amorosa. Hoje em dia, como o conceito budista de “modo de vida correto” é compreendido mais amplamente, mais pessoas abraçam a crença de que o trabalho que melhora o nosso bem-estar espiritual fortalece a nossa capacidade de amar. E quando trabalhamos com amor, criamos um ambiente de trabalho amoroso. Toda vez que entro num escritório, consigo sentir imediatamente, pela atmosfera e pelo humor geral, se os trabalhadores gostam ou não do que fazem. Em Siga sua vocação que o dinheiro vem, Marsha Sinetar escreve sobre esse conceito como forma de encorajar os leitores a correrem o risco de escolher um trabalho com o qual se importem, aprendendo com a experiência o significado de um modo de vida correto.

Embora existam muitos insights significativos no livro de Sinetar, também é verdade que podemos seguir nossas vocações e nem sempre o dinheiro virá. Apesar de ser totalmente decepcionante, isso pode também nos dar a consciência prática de que fazer o que se ama é mais importante do que ganhar muito dinheiro. Por vezes, como tem sido na minha vida, tive que trabalhar em empregos que não traziam satisfação para ter condições de fazer o trabalho que amo. A certa altura de uma carreira profissional muito heterogênea, trabalhei como cozinheira numa casa noturna. Eu odiava o barulho e a fumaça. No entanto, trabalhar à noite me deixava livre para escrever durante o dia, para fazer o trabalho que eu realmente queria fazer. Cada experiência aprimorava o valor da outra. Meu emprego noturno me ajudou a aproveitar a tranquila serenidade do meu dia e apreciar o tempo sozinha, tão essencial para a escrita.

Sempre que possível, é melhor procurar um emprego que amamos e evitar um que odiamos. Entretanto, às vezes aprendemos o que precisamos evitar justamente fazendo-o. Indivíduos que podem ser economicamente autossuficientes fazendo o que amam são abençoados. Suas experiências servem como um farol para todos nós, mostrando as maneiras como o modo de vida correto é capaz de fortalecer o amor-próprio, garantindo a paz e o contentamento na vida que levamos para além do trabalho.

É comum que os trabalhadores acreditem que, se sua vida doméstica for boa, não importa que eles se sintam desumanizados e explorados no trabalho. Muitos empregos corroem o amor-próprio porque exigem que os funcionários provem seu valor constantemente. Indivíduos insatisfeitos e infelizes no trabalho trazem essa energia negativa para casa. Claramente, muito da violência na vida doméstica, tanto física como verbal, está relacionada à infelicidade com o trabalho. Nós podemos estimular amigos e pessoas que amamos a se moverem em direção a mais amor-próprio, apoiando-os em qualquer esforço para deixar um emprego que ataque seu bem-estar.

Pessoas que não fazem parte da força de trabalho remunerada, mulheres e homens que realizam trabalho doméstico sem receber, assim como todas as outras pessoas desempregadas e satisfeitas com isso, geralmente estão fazendo o que querem. Embora não sejam recompensadas com um salário, seu dia a dia frequentemente lhes oferece mais satisfação do que se trabalhassem em um emprego bem pago num ambiente estressante e desumanizante. Donas e donos de casa satisfeitos, as mulheres e os raros homens que escolheram ficar em casa, têm muito a ensinar a todos nós a respeito das alegrias que vêm da autorrealização. Eles são seus próprios chefes, estabelecendo as condições de seu trabalho e a medida de suas recompensas. Mais que qualquer um de nós, têm liberdade para desenvolver o modo de vida correto.

Muitos de nós não aprendemos na juventude que nossa capacidade de amar a nós mesmos seria moldada pelo trabalho que fazemos ou que o trabalho aumenta o nosso bem-estar. Não surpreende que tenhamos nos tornado uma nação onde muitos trabalhadores se sentem mal. Empregos deprimem o espírito. Em vez de aprimorar a autoestima, o trabalho é percebido como um fardo, uma necessidade negativa. Trazer amor para o ambiente de trabalho pode criar a transformação necessária para que qualquer trabalho que façamos, não importa quão subalterno, se torne um âmbito em que os trabalhadores possam expressar seu melhor. Quando trabalhamos com amor, renovamos nosso espírito; essa renovação é um ato de amor-próprio que alimenta nosso crescimento. Não é o que você faz, mas como faz.

Em The Knitting Sutra: Crafts as a Spiritual Practice [O sutra do tricô: artesanato como prática espiritual], Susan Lydon descreve o trabalho de tricotar como uma atividade manual escolhida livremente que aumentou sua consciência do valor do modo de vida correto. Ela afirma: “O que descobri nesse pequeno mundo doméstico do tricô é infinito; ele se amplia e se aprofunda mais do que qualquer um possa imaginar. É infinito e aparentemente inesgotável em sua capacidade de inspirar, excitar e provocar insights criativos”. Lydon vê o mundo que tradicionalmente consideramos “trabalho de mulher” como um lugar para descobrir a devoção por meio do êxtase da criação doméstica. Um lar feliz é um lugar onde o amor pode florescer.

Criar felicidade doméstica é especialmente útil para pessoas que moram sozinhas e estão aprendendo a amar a si mesmas. Quando nos esforçamos intencionalmente para tornar a nossa casa um lugar onde estamos prontos para dar e receber amor, cada objeto que colocamos ali aumenta o nosso bem-estar. Eu crio temas para minhas casas. Meu apartamento na cidade tem como tema “lugar de encontrar o amor”. Como uma pessoa de cidade pequena que se mudou para a cidade grande, achei que precisava que o meu ambiente realmente se parecesse com um santuário. Como meu apartamento de um quarto é muito menor que os lugares onde me habituei a morar, decidi levar apenas objetos que eu realmente amava — as coisas sem as quais eu sentia que não poderia ficar. É impressionante a quantidade de coisas das quais podemos nos desapegar. Minha casa no interior tem como tema o deserto. Eu a chamo de “soledad hermosa“, a beleza de estar só. Vou para lá para ficar calma e sossegada, para ter a experiência do divino, para me renovar.

***

De todos os capítulos deste livro, este foi o mais difícil de escrever. Quando falei com amigos e conhecidos sobre amor-próprio, fiquei surpresa em ver como muitos de nós se sentem inquietos diante dessa noção, como se a simples ideia implicasse narcisismo ou egoísmo demais. Todos nós precisamos nos livrar de ideias equivocadas a respeito do amor-próprio. Precisamos parar de igualar covardemente o amor-próprio a egoísmo ou egocentrismo.

Amor-próprio é a base de nossa prática amorosa. Sem ele, nossos outros esforços amorosos falham. Ao dar amor a nós mesmos, concedemos ao nosso ser interior a oportunidade de ter o amor incondicional que talvez tenhamos sempre desejado receber de outra pessoa. Quando interagimos com os outros, o amor que damos e recebemos sempre é necessariamente condicional. Embora não seja impossível, é muito difícil e raro que sejamos capazes de estender o amor incondicional aos outros, em grande parte porque não temos como exercer controle sobre o comportamento deles e não podemos prever ou controlar totalmente nossas reações a suas ações. Podemos, contudo, exercitar controle sobre as nossas. Podemos nos dar o amor incondicional que é o fundamento para a aceitação e a afirmação sustentadas. Quando nos damos esse presente precioso, somos capazes de alcançar os outros a partir de um lugar de satisfação, e não de falta.

Um dos melhores guias para amar a si mesmo é nos dar o amor que geralmente sonhamos receber dos outros. Houve uma época, depois dos quarenta, em que eu me sentia péssima em relação ao meu corpo, me considerava muito gorda, muito isso, muito aquilo. No entanto, eu fantasiava encontrar um amante que me daria o presente de ser amada como sou. É bobo que eu sonhasse com outra pessoa me oferecendo a aceitação e a afirmação que eu mesma me negava, não é? Esse foi um momento em que a máxima “Se você não se ama, não poderá amar mais ninguém” fez todo sentido. E acrescento: “Não espere receber de outra pessoa o amor que você não dá a si mesma”.

Em um mundo ideal, todos aprenderíamos na infância a amarmos a nós mesmos. Cresceríamos seguros de nosso valor e merecimento, espalhando amor aonde quer que fôssemos, deixando nossa luz brilhar. Se não aprendemos o amor-próprio na juventude, ainda há esperança. A luz do amor está sempre em nós, não importa quão fria esteja a chama. Ele está sempre presente, esperando uma fagulha que o inflame, esperando que o coração desperte e nos leve de volta para a primeira lembrança de ser a força da vida dentro de um lugar escuro esperando para nascer — esperando para ver a luz.

2 comentários em “bell hooks – Compromisso: que o amor seja o amor-próprio

    1. Que texto primoroso!
      Me afetou de muitas formas. Me identifiquei muito! Obrigada!

      Curtir

Deixe um comentário

search previous next tag category expand menu location phone mail time cart zoom edit close