Amanda Palha – TRAVESTI x MULHER TRANSEXUAL: afinal, qual a diferença?

Originalmente publicado no Medium “Caderno de Palha“.

Arte da capa por Vulcanica Pokaropa (@vulknik no Instagram)


Confusão, confusão, confusão! Quem não queria uma moeda pra cada vez que ouve essa pergunta? Pois bem, essa é a minha explicação preferida. Pra entender esse rolê melhor (e uma série de outros que derivam dele), é fundamental que a gente entenda a construção histórica desses termos. Bora?

Eu acho muito mais divertido contar essa história da forma que eu vou contar porque explicita o absurdo da forma como a sociedade nos trata, então com a desculpa antecipada dos termos, vale avisar que contém deboche.

No início, era a viadagem (me ouça com voz de Cid Moreira). Era só viado e sapatão. Aí, desses viado, tinha os viado que era só viado, os viado que se montava pra fazer show e os viado que se montava 24 horas (majoritariamente na prostituição), que botava peito (silicone industrial), mudava o corpo e tals. Esses últimos frequentemente também se tratavam no feminino e usavam nomes sociais femininos. Esses últimos eram as travesti, que eram viado, mas que eram travesti antes. E aí era só isso: os viado, as sapatão e as travesti.

Aí láááá atrás, conforme começa a nascer uma militância “de homossexuais” e o movimento “gay”, os viados que eram só viado sentiram a necessidade de brigar pra se diferenciar das travesti, pra que não fossem mais confundidos com aquele bando de puta, de vagabunda, de gente suja que manchava a imagem dos viado e impedia que a sociedade visse os viado como iguais (na cabeça deles, pelo menos). Essa briga de fato existiu e se intensificou tanto durante a ditadura quanto conforme o movimento foi ganhando força, de forma que a cisão entre os viado que é só viado e as travesti, que “não eram viado porque viado é limpinho”, foi tomando força e levando pro discurso e pras práticas de luta algo que já era verdade objetivamente há muito tempo (porque é assim mesmo que a história acontece): a travestilidade como um gênero [feminino] em si.

E aí o primeiro ponto é isso: travestis, ainda que estejamos no campo da feminilidade e que nossas relações de trabalho e de gênero se dêem pautadas nos elementos mais violentos do “ser mulher”, somos um gênero específico. Olha só: temos lugar específico na organização do trabalho, conjunto específico de signos e estéticas distintivos e mesmo um referencial corpóreo específico (a “mulher de peito e pau”). O próprio senso comum, ainda que nos trate no masculino e ainda nos chame de frango, entende isso: se nos olham na rua, não apontam um homem ou uma mulher, mas “o traveco”; se querem nos ofender, ao contrário dos xingamentos no feminino direcionados aos gays, nos chamam de viado, de traveco, no masculino. Ou faz algum sentido a imagem de uma cara passando no carro e chamando a travesti de “mulherzinha”? Porque compreendem, ainda que não racionalizem, que nós somos “outra coisa” — uma coisa que pra ele não é humana, que não cabe na alteridade, mas ainda assim outra coisa, e uma “outra coisa” feminina.

Primeiro ponto tá aí, então: travestilidade é um gênero. Um gênero feminino, “do campo” do “ser mulher”, mas um gênero específico.

Aííí, em determinado ponto dessa história, as ciências psi resolvem perscrutar o mundo dessa gente muito loca e descobrem que uma parte das travesti “achava que era mulher”, e que essa galera tinha uma relação muito violenta de negação do próprio corpo dito masculino. Tinha umas que tava de boa, mas tinha essas que tavam na bad monstra com o próprio corpo. Descobriram que entre as sapatão isso também rolava, aliás: que tinha as sapa que tava de boas, mas que tinha as sapa que achava TANTO que era ome que viviam o mesmo sofrimento violento de negação do próprio corpo, que assumiam nomes masculinos e tudo o mais. A partir dessa “descoberta”, a ciência começa a estudar mais essa galera da bad monstra, que vai acabar sendo batizada de transexuais por entender que o distintivo dessa gente é a negação do genital e a vontade de ter outro para ser “do outro sexo”. As outras continuamos sendo as travesti. Não contente a ciência burguesa, sempre genial, resolve separar também as travesti entre as que se vestem só pra gozar e as que são tão loca do cu que botam peito e vivem como travesti 24h: as primeiras viram portadoras de “travestismo fetichista” e as segundas, de “travestismo bivalente”. Parece bizarro (e é), mas vale dizer que essa é a catalogação atual e vigente do nosso CID (Código Internacional de Doenças). Eu tenho CID10 F-64.1: Travestismo Bivalente. Loco, né?

Bom, o ponto é: enquanto as travesti continuaram sendo só as travesti mesmo, as travesti que viraram transexuais pra ciência deixaram de ser substantivo pra virar adjetivo: são mulheres transexuais. Na real, oficialmente eram chamadas de transexuais masculinos (nasceu com pipi), em oposição aos transexuais femininos (nasceu com ppk) — mas o reconhecimento do trânsito “de um sexo para o outro” contido nesse termo legitimou que essas mulheres transexuais passassem a se reconhecer, declarar e reivindicar mulheres. Esse é um primeiro elemento distintivo importante: mulheres transexuais se reconhecem mulheres e os esforços de luta são também no sentido de se legitimarem mulheres, tanto através das alterações que julgam necessárias em seus corpos quanto através do reconhecimento da sociedade e do Estado. As travestis continuam as travestis.

E aí é importante não deixar de colocar que enquanto a transexualidade, como categoria de análise, parte da auto-percepção da pessoa e trata da materialização dessa auto-percepção, a travestilidade é o oposto: é o nome dado não a uma auto-percepção, mas a uma existência específica de gênero, um lugar específico das relações de gênero e da organização social de forma mais ampla. A consequência disso é que enquanto há alguma homogeneidade entre as mulheres transexuais, no sentido de que todas se reconhecem mulheres, entre as travestis as “auto-identificações” são MUITO variadas: há travestis que se reconhecem travestis e se compreendem mulheres, há travestis que se compreendem homens gays (ainda que usem nome feminino e muitas vezes pronome feminino também), há travestis que se compreendem “nem homem nem mulher”, ou os dois ao mesmo tempo, etc — o que há de comum entre nós, no entanto, é que independente de como rola a auto-compreensão no detalhe, todas nos compreendemos travestis em primeiro lugar. Antes de qualquer outra coisa, nos entendemos travestis. E aí, considerando que o ponto de partida das duas categorias são distintos, também há mulheres transexuais que também se compreendem travestis, muitas até por perceber que é assim que a sociedade enxerga e trata todas nós.

E pra arrematar: pra efeito de militância e luta por políticas públicas, o Estado ainda considera como distinção que mulheres transexuais desejam a transgenitalização (“mudar de sexo”) e que travestis não. É uma distinção limitada, mas historicamente importante e que não devia ser desconsiderada (inclusive porque encontra algum acordo na história dessas categorias). Mas na prática, a coisa tá longe de ser bem assim.

Simples assim? Não, tem mais. Muito mais. Mas pra começar tá de bom tamanho.

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