É a Síndrome de Impostor? Ou somos todos impostores?

Texto de Raquel S. Benedict

Originalmente disponível no site Bloodknife.

Tradução por Hilary Valente.


A síndrome do impostor, conforme nos dizem, é uma epidemia entre jovens profissionais, especialmente aqueles oriundos de grupos marginalizados. Indústrias de prestígio como a academia, a produção editorial e a medicina despejam colunas de aconselhamento e sediam seminários para ajudar membros em ascensão a superarem esse mal psicológico. Mulheres, especialmente aquelas em posições elevadas e almejadas, compadecem-se do sentimento de insuficiência partilhada entre si. Tina Fey sofre disso. Assim como Meryl Streep.

As psicólogas Pauline Rose Clance e Suzanne Imes identificaram pela primeira vez o que chamaram de “Fenômeno do Impostor” em  um artigo de 1978 na Psychotherapy Theory, Research and Practice. Elas culparam pais que superestimavam ou subestimavam a inteligência das filhas. Publicações e estudos recentes, que expandem o fenômeno da Síndrome do Impostor para pessoas de todos os gêneros, nomeiam fatores adicionais: transtornos de humor, perfeccionismo, famílias que colocam muita pressão sobre os filhos para alcançarem sucesso, uma cultura individualista focada em conquistas pessoais a todo custo e — para aqueles em grupos marginalizados — o fardo psicológico do preconceito e da discriminação estrutural.

Os especialistas dizem que você foi traumatizada de modo a desvalorizar seus próprios talentos. Dizem que foi influenciada a acreditar que é uma fraude.

Mas e se seus temores estiverem corretos?

E se você realmente for uma impostora e isso não for mesmo uma síndrome?

“Eles não são reais. Você entende isso, certo? Nenhum deles é real. Os críticos não são reais. Os clientes não são reais. Porque isto não é real. Você não é real. … Por que se importa com essas pessoas? Elas não se importam com você. Nenhuma delas. Elas nem o conhecem. Porque não mostrou para elas. Todo dia você acordará e haverá menos de si. Você vive sua vida por eles e eles nem o veem. Nem você vê a si mesmo. Não temos muito que realmente importe.”

Todos nós em indústrias de colarinho-branco confortáveis somos impostores. Fingimos que nossos trabalhos são unicamente difíceis. Não são. A maioria de nós passa ao menos uma hora do dia batendo papo com colegas de trabalho, navegando pela internet, fazendo pausas espontâneas para um cafezinho e tentando parecer ocupado. Fingimos merecer recompensas que trabalhadores do varejo e da hotelaria não recebem: plano de saúde, aposentadoria, auxílio-doença, férias, a possibilidade de sentar durante um turno de oito horas. Não merecemos. Fingimos que nossos diplomas de ensino superior são necessários para esses trabalhos e não um método arbitrário para prevenir a ascensão social dos jovens de classes mais baixas. Não são necessários. Nunca precisei do meu conhecimento em Linguística para desempenhar as tarefas do meu cargo. Alguém com ensino médio completo e um entendimento básico de Microsoft Office poderia certamente fazer meu trabalho, mas essa pessoa nunca será contratada. 

Muitos de nós não sabem explicar bem para outras pessoas o que é o nosso trabalho ou por que ele é necessário. Exatamente o que faz um gerente de conexões de marca e de relacionamento com clientes? Não importa. Aqueles com trabalhos reais que fazem sentido e produzem valor genuíno para a sociedade —  professor, agricultor, bombeiro, cozinheiro, caminhoneiro  — ganham bem menos dinheiro e trabalham sob condições mais perigosas.

“Muitos de nós não sabem explicar bem para outras pessoas o que é o nosso trabalho ou por que ele é necessário.”

A ilusão fica mais nítida à medida que escalamos a pirâmide. CEOs, que ganham milhares de vezes o que seus empregados recebem, dizem trabalhar 55 horas por semana. Uma pesquisa de 2012 do Wall Street Journal descobriu que 18 dessas horas são usadas em reuniões (rituais que, como qualquer funcionário de escritório sabe, não servem para nada). CEOs dedicam outras cinco horas da sua semana de trabalho a refeições. Eles passam outras 20 horas em viagens, exercícios, compromissos pessoais e outras atividades. CEOs declaram aulas de Pilates, trajetos diários, sessões de terapia e compartilhar memes como horas trabalhadas e guardar rancor contra sites de humor. O restante de nós não pode fazer isso. Ao todo, o tempo produtivo de um CEO é limitado a 12 horas por semana: bem menos do que o de um bartender comum. Mas CEOs não podem admitir isso. Eles precisam fingir que trabalham muito mais e utilizam o tempo de forma muito mais produtiva do que seus subordinados para justificar que seus salários sejam tão mais altos. Eles são impostores.

Nosso maior serviço de transporte, o Uber, não tem nenhum carro. Nosso maior serviço de hospedagem, o AirBNB, não mantém propriedades. O homem mais rico do mundo é dono de uma empresa que, de fato, às vezes fabrica carros, mas eles têm um péssimo hábito de virar aleatoriamente na direção de multidões de pedestres e explodir. A Tesla apresenta-se como uma solução para a crise climática, mas muito de seu lucro vem de vendas de créditos de carbono para que outras empresas possam continuar emitindo gases de efeito estufa.

O mundo das artes e do entretenimento prometem uma fuga à feiura das indústrias mundanas, uma verdadeira meritocracia em que aqueles com paixão, talento e motivação podem realizar seus sonhos. Não é verdade. A maioria das listas dos 30-abaixo-de-30 é populada por filhos de produtores, diretores e executivos ricos. 

Ano passado, Lin Manuel Miranda, um dos artistas latines mais proeminentes nos Estados Unidos, fez um filme lamentando a gentrificação de Brooklyn Heights. O pai de Miranda é um barão ladrão que construiu uma carreira tirando bens públicos de Porto Rico e vendendo-os para investidores americanos. Os filhos dos gentrificadores têm as finanças e conexões para fazerem filmes — os filhos dos gentrificados, não. Scarlett Johansson e Kate Winslet, feministas proeminentes de Hollywood, trabalharam de bom grado com Woody Allen e Roman Polansky apesar de acusações públicas de violência sexual. A autora de Má Feminista, Roxane Gay, que ministrou recentemente uma Master Class sobre escrita para justiça social, publicou um ensaio em sua revista que forçou uma sobrevivente de abuso sexual infantil a expôr-se publicamente. Outra escritora feminista proeminente, que lançou um livro de ensaios em 2019 intitulado Trick Mirror: Reflections on Self-Delusion (Espelho Traiçoeiro: Reflexões Sobre a Auto-ilusão, tradução livre), sofreu reveses apenas temporários em sua carreira após ser revelado ao público que seus pais ricos tinham envolvimento com tráfico humano. E por aí vai.

“Até recentemente, a forma mais lucrativa de arte era propagar jpegs toscos para nerds.”

Todos esses artistas apresentam-se como vozes destemidas em favor da justiça social. Nenhum deles é. Eles são impostores.

Até bem recentemente, a forma mais lucrativa de arte não era literatura, cinema ou música. Era lançar jpegs toscos gerados por algoritmo e convencer nerds a gastarem dezenas de milhares de dólares neles. O fato de terem entrado em colapso ao longo dos últimos dois meses é tão inevitável quanto aparentemente irrelevante. O que são NFTs? Muitos de seus devotos não poderiam explicar. Não importava. Eles não eram reais. Porém, eles geravam lucro de certa forma, ao menos temporariamente, e por alguma razão também geravam gases de efeito estufa, e empresas de entretenimento e artistas proeminentes correram para vendê-los — assim como inevitavelmente correrão para vender o próximo esquema do momento destinado ao fracasso.

Tudo é falso. Todos são impostores. Nada é real.

Então por que a síndrome do impostor atinge pessoas marginalizadas com mais força? Perspectiva, provavelmente. Se você vem de um grupo marginalizado, você viveu no mundo real. Talvez trabalhou em um emprego horrível que não podia dar-se ao luxo de largar. Talvez precisou dividir um apartamento precário com outra pessoa. Talvez tenha sofrido abuso sem qualquer direito de regresso. Talvez precisou depender de sua inteligência e habilidades genuínas mais do que de seu aparente valor. E agora você chegou lá. Tem uma carreira decente, uma hipoteca, mas não se sente fundamentalmente transformada da pessoa que era antes. Sabe que, lá no fundo, não é muito diferente dos antigos vizinhos, amigos ou membros da família que não chegaram até aqui, e a linha do status social separando vocês é uma grandiosa ilusão. 

Você sabe que não é real porque sabe o que real é, e não é isso.

Homens brancos de famílias abastadas podem não ter tido essa experiência. Bill Gates, cuja mãe executiva corporativa influente convenceu a IBM a investir no novo negócio do filho que desistiu dos estudos, não passou por isso. Jeff Bezos, cujos pais deram-lhe um quarto de um milhão de dólares para ajudar a começar seu negócio, não passou por isso. Elon Musk, cujo pai era dono de uma mina de esmeraldas na África do Sul durante o apartheid, definitivamente não passou por isso. Porém, em seu âmago, eles também sabem que são impostores.

Homens privilegiados passaram milênios construindo defesas psicológicas sofisticadas contra essa revelação desconfortável: a Maldição de Eva, a Maldição de Cam, o Direito Divino dos Reis, Darwinismo Social, Frenologia e sua encarnação do século XXI, a Psicologia Evolucionista. Um homem realmente seguro de si não precisa justificar sua posição na vida com diagramas em forma de crânio e hipóteses ad hoc sobre frutos silvestres. Essas são as desculpas desajeitadas de um vigarista flagrado na mentira.

E o que deve fazer com esse sentimento? Você poderia usar o relativo poder e influência que tem para tentar desmantelar o sistema por dentro. Isso é o que faria uma pessoa real que acredita de verdade na justiça social. No entanto, isso é muito, muito difícil e perigoso, e provavelmente vai levá-la à lista negra da sua indústria, à prisão ou a tomar um tiro. É melhor fazer as pazes com seu eu impostor. Vá àquele seminário. Fale com um terapeuta. Assista a Sombra e Ossos por algum motivo como essa mulher adulta fez. Escreva um ensaio lacrando nas pessoas com síndrome do impostor sem fazer nada fundamentalmente diferente dos alvos de sua crítica. Siga com a farsa e jamais, jamais seja apanhada.

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