Amadeo Bordiga foi o último comunista a desafiar Stálin na cara dele

Originalmente disponível em inglês no site da Jacobin.

Tradução por Leonardo Gabriel.

A entrevista a seguir, realizada pela Jacobin, aconteceu no contexto da primeira publicação em língua em inglesa de uma coleção das obras de Amadeo Bordiga, de 1912 a 1965, editada por Pietro Basso, o entrevistado. A entrevista explora temas como o apagamento do comunista italiano pelo PCI, que fundou, a contrarrevolução stalinista e seu “socialismo num só país”, o caráter capitalista da URSS, o imperialismo americano, o comunismo visto como um “plano de vida para a espécie”, as revoluções anticoloniais e as revoltas negras nos Estados Unidos.


David Broder: Bordiga é pouco conhecido nos países anglófonos, mas também na Itália. Isso se deve, parcialmente, à historiografia produzida pelo Partido Comunista, que no ápice do stalinismo o denunciou ou ignorou, e até mesmo a literatura ligada ao PCI nos anos 1970, como a biografia de Franco Livorsi, foi bastante desdenhosa. Por quê?

Pietro Basso: Na década de 1930, a difamação sistemática de Bordiga foi parte da “luta contra a oposição trotskista”, a qual ele foi acusado de apoiar. Na década de 1940, quando o regime fascista ruiu, os líderes do PCI ficaram preocupados com a possibilidade de Bordiga retornar à atividade política. O líder Palmiro Togliatti sabia que muitos quadros de baixo e médio escalão ainda poderiam ver Bordiga como uma autoridade; ele reconheceu que “excluir o bordiguismo” das fileiras do Partido era “algo mais difícil do que excluir Bordiga”.

Por “bordiguismo”, ele se referia à crítica afiada à linha que o PCI tinha adotado [especialmente nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial]. Sua política era agora erigida em torno da “unidade nacional”, em nome da reconstrução de uma “Itália democrática e antifascista” em conjunto com partidos burgueses e a classe capitalista. Daí a instrução de Togliatti: construir um muro físico, psicológico, ideológico e “moral” para dividir esses quadros de Bordiga e de suas posições.

A difamação de Bordiga se fez acompanhar da tentativa de apagá-lo recorrendo a falsificações grosseiras. Por exemplo, nas Cartas do Cárcere de Gramsci, Bordiga é mencionado dezoito vezes, simpaticamente – apesar de suas diferenças de formação e posições políticas, eles [Bordiga e Gramsci] tinham um vínculo de militância e sentimentos de amizade e respeito mútuo.

Mas na edição de 1947 destas cartas, de Felice Platone, o nome de Bordiga desapareceu ­– todas as passagens com referências a ele foram grosseiramente forjadas. Circulou uma foto falsa do “casamento da filha de Bordiga” (que nunca aconteceu), em que a suposta noiva e o noivo eram saudados por uma horda de camisas-negras fascistas…

Esse esforço sistemático só diminuiu nos anos 60, quando a Itália foi abalada por um despertar poderoso de lutas sociais e dos trabalhadores. Estas últimas expressaram uma – às vezes confusa e inconsistente – crítica ao PCI reformista e à sua crescente integração orgânica nas instituições burguesas e no capitalismo italiano. Neste novo contexto, cresceu o desejo de recuperar a verdadeira história do movimento comunista. Mas, mesmo em 1968, apenas uma pequena franja de militantes tinha espírito anti-conformista suficiente para se engajar diretamente com as posições de Bordiga.

David Broder: Tanto quanto para resistir à potencial influência de Bordiga, pode-se dizer que isso também foi funcional para construir uma certa visão de Gramsci – contrapondo-o de maneira simplista ao homem que havia fundado o Partido Comunista…

Pietro Basso: Sim. E é importante compreender o papel decisivo de Bordiga e da facção comunista abstencionista [anti-eleitoralista] na fundação do partido. A tentativa de apagar Bordiga chegou ao ponto de apresentar Gramsci como seu fundador. Isso era uma mentira completa – no congresso fundador em Livorno, em 1921, Gramsci nem sequer falou. A historiografia posterior pelo menos reconheceu o papel proeminente de Bodiga e dos “abstencionistas” na cisão comunista do Partido Socialista, depois de uma década de batalhas contra o reformismo.

A sua fundação se deu depois da luta “derrotista” contra a participação da Itália na Primeira Guerra Mundial e dois anos intensos de luta da classe trabalhadora – o que Bordiga chamou de 1919 vermelho e ardente 1920. Os futuros membros do Partido Comunista foram líderes nestas lutas; ele surgiu como um partido de trabalhadores, de jovens, com o apoio quase unânime da Juventude Socialista. O grupo de “jovens intelectuais” em torno do L’Ordine Nuovo também se juntou ativamente à fundação do novo partido, embora um pouco tardiamente.

Naturalmente, a Revolução Russa e a criação da Terceira Internacional foram fatores-chave. Na Itália, o primeiro a apreender a importância histórica e global da revolução foi o grupo em torno de Bordiga – é revelador que, em dezembro de 1918, tenham decidido chamar o seu jornal de Il Soviet. Mas a batalha destes camaradas contra o reformismo tinha começado já há anos; Bordiga corretamente chamou o bolchevismo de “planta para todos os climas”, internacional, mas não importada.

Apagar Bordiga ajudou a apagar o Gramsci revolucionário e substitui-lo por um Gramsci “democrata-patriota”. Gramsci foi uma figura complexa, no ponto de inflexão entre comunismo revolucionário e evolucionismo gradualista, idealismo e materialismo. Mas, em certo período, contrapô-lo frontalmente a Bordiga foi útil para apresentar Gramsci como o “pai nobre” da longa marcha do PCI nas instituições do Estado burguês. Mais tarde, [os herdeiros do partido] o rejeitaram como uma boneca de pano velha e o substituíram por diferentes tipos de pontos de referência, como Willy Brandt, [Tony] Blair e [Bill] Clinton…

David Broder: Muitos leitores conhecem Bordiga principalmente graças à polêmica de Lenin contra seu abstencionismo eleitoral em Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. Na sua introdução, você minimiza essa questão, embora o próprio Bordiga tenha cunhado o rótulo de “abstencionista” para a sua corrente. Você pode explicar por que essa questão foi – ou não – importante para a fundação e os primeiros anos do Partido Comunista?

Pietro Basso: O jovem Bordiga criticou o abstencionismo sindicalista ou anarquista, que ele via como abstenção da luta política em geral. Ele argumentou que a revolução social é uma questão política, que demanda uma preparação adequada no nível político. Mas a política não deveria ser identificada com o campo eleitoral – ou seja, o campo da delegação, da manipulação, da demagogia, do qual a ação política direta e própria dos proletários é excluída.

O ponto de partida de Bordiga foi que as eleições poderiam ser um meio para os socialistas divulgarem o seu programa entre a massa de trabalhadores, mas o sucesso eleitoral não poderia ser um fim em si mesmo. Sua experiência de quase uma década no Partido Socialista o confrontou diretamente com seus efeitos degenerativos, já que a “disputa” eleitoral se tornou a atividade definidora do partido, mas também as consequências “ignominiosas” de seus blocos com todos os tipos de democratas burgueses, liberais e maçons, especialmente no Sul [da Itália].

Esse repúdio ao eleitoralismo se acentuou na primavera/verão de 1919, quando a vitória eleitoral dos socialistas serviu como freio à radicalização de um movimento de classe que alcançava dimensões insurrecionais.

Mas nunca o abstencionismo se tornou uma questão de princípio para Bordiga. Sempre que se viu obrigado a escolher entre esta convicção e a disciplina partidária, ele optou sempre pela última. Ele o fez na hora das eleições de 1919; no Segundo Congresso da Comintern em 1920 [para o qual Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo foi preparado]; em 1921, enquanto líder do Partido Comunista, quando julgou correto concorrer às eleições numa fase de reação política; em 1924, quando estava na oposição dentro do partido, e mesmo quando o recém-nascido Partido Comunista Internacionalista concorreu nas eleições de 1946 e 1948.

Bordiga, não obstante, manteve uma oposição inflexível em relação a todos os blocos com partidos burgueses. Daí a sua crítica à Secessão de Aventino em 1924 [quando os partidos da oposição deixaram o parlamento em protesto contra o assassinato do deputado social-democrata Giacomo Matteotti pelos camisas-negras]. Bordiga, com sucesso, pressionou para que os deputados comunistas rompessem com o bloco de Aventino, retornassem ao parlamento e montassem um ataque frontal ao fascismo – uma tarefa confiada, não por acaso, ao bordiguista Luigi Repossi.

Bordiga estava convencido de que a experiência russa tinha lições globais, mas que era um erro justapor sua situação às da Europa Ocidental. Nesses últimos países, era necessário ter em conta a capacidade da democracia de aplacar o conflito de classes e integrar a oposição, e não apenas por meios institucionais.

Ele resumiu essa posição depois de 1945: Lenin havia dito “entrem nos parlamentos e destruam-nos de dentro”, mas poucos realmente os usaram como tribunas para a revolução proletária. Paradoxalmente, embora nunca tenha sido deputado, como líder do partido, Bordiga foi um dos militantes que melhor aplicaram a tática de parlamentarismo revolucionário de Lenin.

David Broder: Aqui você toca num ponto interessante sobre o “marxismo ocidental”. Normalmente, a noção de que países ocidentais têm complexidades particulares é invocada como base justificativa para táticas mais “flexíveis” – alianças amplas, estágios democráticos intermediários entre capitalismo e socialismo e assim por diante. Mas, referindo-se tanto ao “problema do Sul” da Itália quanto à “diferença” [differentness] entre o Ocidente e a Rússia, para Bordiga, essas complexidades elevavam a necessidade de traçar nítidas divisões de classes – e montar um confronto frontal com as instituições democráticas.

Pietro Basso: Para Bordiga, a rejeição da participação eleitoral e (por princípio) de frentes com forças reformistas, democráticas e burguesas justificava-se pela necessidade de preservar a autonomia e o caráter revolucionário do Partido Comunista.

Pode-se certamente apontar deficiências táticas em Bordiga, como alguns dos seus seguidores mais perspicazes fizeram, ou, de fato, o seu erro ao afirmar que a burguesia italiana preferiria versões locais de Gustav Noske [sociais-democratas anticomunistas] do que Benito Mussolini.

Pode-se até – como Alessandro Mantovani – atribuir as posições antidemocráticas de Bordiga ao pensamento libertário, em vez de marxista, e apontar suas perigosas consequências em termos de “indiferença” em relação à necessária batalha pela defesa dos direitos democráticos. Mas, para avaliar a posição que Bordiga assumiu um século atrás, precisamos levar em conta o especial “poder histórico do parlamentarismo burguês”.

Bordiga estava certo ao dizer que as táticas adotadas na Rússia não podiam ser mecanicamente transferidas para a Europa Ocidental. Isso seria subestimar o fato de que os estados capitalistas liberais-parlamentares modernos são muito melhores em se defender e intervir no movimento dos trabalhadores do que os autocráticos.

E, historicamente falando, não se pode contestar a previsão de Bordiga de que a burguesia democrática abriria o caminho para o fascismo, o usaria e depois o jogaria fora; nem sua identificação das crescentes tendências burocrático-totalitárias nos estados democráticos e da estreita ligação entre democracia e militarismo (da qual os Estados Unidos são o melhor exemplo).

David Broder: Bordiga enfatizou vivamente o internacionalismo. O livro de Sandro Saggioro e Arturo Peregalli, La sconfitta e gli anni oscuri, comenta como Bordiga estava tudo menos deslumbrado com os sucessos da “construção socialista” na URSS, quando a visitou em 1920; na verdade, ele negou a possibilidade de “construir o socialismo” em um país atrasado.

No Sexto Executivo Ampliado da Comintern em Moscou, em fevereiro de 1926, ele criticou Stalin frente a frente, insistindo que todos os partidos da Comintern deveriam tomar decisões coletivamente sobre as questões “russas”, assim como fariam com as “italianas”…

Pietro Basso: O internacionalismo caracterizou a sua militância do começo ao fim – e, eu diria, isso tem extraordinária relevância nos dias de hoje. Ele foi um dos líderes da Comintern mais radicalmente convencidos de que o choque entre capitalismo e socialismo era um confronto global e teria um resultado global unitário.

Isso não significou perder de vista a diversidade de contextos, situações e momentos. Por exemplo, Bordiga foi talvez o expoente mais convicto do chamado “comunismo ocidental” e o mais tenaz na defesa da Nova Política Econômica (NEP) na Rússia – sempre fazendo isso de uma perspectiva internacionalista.

No Sexto Executivo Ampliado em 1926, ele insistiu que a questão russa não era apenas russa. Isto é, as escolhas de política interna e externa do partido e do Estado russos – no desenvolvimento gradual de “elementos socialistas” da economia, ou em relação aos camponeses, aos NEPmen e à pequena burguesia – eram vitais para o resultado de um confronto mundial em curso entre revolução e contrarrevolução. Logo, as respostas tinham que ser decididas em conjunto, por toda a vanguarda comunista internacional.

Bordiga foi o único a sustentar esse argumento; já fazia alguns anos que se desenvolvia nos partidos comunistas uma política de marginalizar, intimidar e silenciar aqueles que não aceitavam o rumo que as coisas estavam tomando na Rússia e na Internacional. Mas ele colocou esse argumento mesmo assim. Quando historiadores como E. H. Carr reconhecem essa como uma grande batalha política que antecipou lucidamente o curso subsequente da Internacional, e sua russificação, eles se limitam a estes pontos óbvios.

Mas devemos acrescentar que, em sua crítica ao stalinismo, Bordiga evitou qualquer tipo de moralismo, individualização de questões ou idealização da democracia contra o burocratismo. Depois de 1945 – talvez escandalizando algumas pessoas – ele sustentou que, embora o stalinismo fosse contrarrevolucionário em termos políticos (e parte integrante da contrarrevolução burguesa global), ele desempenhou uma função revolucionária precisamente na medida em que estava construindo o capitalismo na Rússia.

Dabid Broder: Em 1930, Bordiga foi expulso do Partido e se retirou da vida política. Buscando explicar essa escolha, Saggioro e Peregalli comparam a sua situação com a de Marx após a derrota das revoluções de 1848. Bordiga caracterizou a derrota do final da década de 1920 como fundamental e duradoura – argumentando que o partido só poderia ser reconstruído após a mudança do período histórico. Em uma entrevista pouco antes da sua morte, quando perguntado por que ele não havia tentado travar uma luta de facções dentro da Internacional, ele respondeu “não havia nada a ser feito”. O que ele quis dizer com isso?

Pietro Basso: Essa era sempre a sua resposta. Porque os golpes que o fascismo infligiu ao Partido Comunista em 1923 e em 1926 tinham-no praticamente despedaçado. Na década de 1930, o PCI de Togliatti pouco ou nada fez em solo italiano. Gramsci foi preso como secretário do partido, mas foi gradualmente abandonado à própria sorte.

Pode-se certamente criticar Bordiga por romper laços mesmo com os seus camaradas mais próximos da esquerda comunista, tanto na Itália quanto entre aqueles que emigraram para a Bélgica, França e Estados Unidos. Como escreveu Paolo Turco, essa foi uma maneira questionável de entender a sua própria função como líder político. Pois na década de 1930 houve lutas de classes importantes – especialmente na Espanha, França e China –, e essa suspensão total da atividade levanta muitas perplexidades.

Mas, historicamente falando, a reversão contrarrevolucionária foi devastadora, tanto em profundidade quanto em velocidade, com a ascensão do nazismo na Alemanha, o extermínio da Velha Guarda bolchevique, o pacto Molotov-Ribbentrop, o assassinato de Trotsky, a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Isso também foi visível na divisão do mundo em Ialta, em 1945, com a chegada triunfante de um novo mestre da economia e da política mundial – o que Bordiga chamou de superimperialismo envolto em estrelas e listras. Diante de tal reversão, nem mesmo um lutador inabalável como Trotsky conseguiu grandes resultados.

David Broder: Quando o líder do PCI, Togliatti, retornou a Nápoles em março de 1944, depois de quase duas décadas no exílio, uma das primeiras coisas que ele perguntou aos seus camaradas foi “o que Bordiga anda fazendo?”. Bordiga muitas vezes negou sua própria importância individual. Mas durante a Primeira Guerra Mundial ele havia sido um líder carismático do campo antiguerra, e novamente em 1943-44 ele poderia ter se tornado um ponto de referência para as oposições revolucionárias entre a base do PCI. Essas oposições eram muitas vezes politicamente confusas, mas afirmavam estar defendendo as tradições do partido fundado em 1921…

Pietro Basso: Naquele momento dramático, a memória dos primeiros anos do partido ainda estava viva entre muitos militantes e quadros, dentro ou nas margens da organização PCI. Mas parece que Bordiga foi contra encorajar os quadros proletários a deixar o PCI. Talvez ele esperasse a possibilidade de que não apenas pequenos grupos ou indivíduos se unissem às posições da Esquerda, mas uma parte combativa da classe. Eu digo “talvez” porque não há provas definitivas.

Mas, certamente, pessoas de todos os lados o estavam estimulando a retornar à política ativa. Ele resistiu a isso. Ele considerava a situação contrarrevolucionária e destinada a continuar assim por um tempo. Para ele, simplesmente não existiam as condições para um retorno ao início da década de 1920 e uma tentativa de “competir” com o “bom e velho PCI” de igual para igual. A reorganização dos revolucionários internacionalistas ainda estava em seus tortuosos estágios iniciais.

Do final de 1944 a 1965-66, Bordiga, não obstante, exerceu uma atividade intensa. Esta foi uma atividade muito diferente daquela do período de 1911-1926, embora tenha continuado a partir dela. Esta atividade teve como objetivo reapresentar o pensamento marxista e marxiano “não adulterado”.

David Broder: Bordiga sempre insistiu nessa necessidade de “retornar” a um marxismo clássico pré-estabelecido, referindo-se provocativamente às suas “Tábuas de Pedra”. De fato, ele é amplamente estereotipado como alguém que não fazia nada além de repetir inflexivelmente verdades invariáveis. Então, por que você argumenta que seus escritos do pós-guerra foram inovadores?

Pietro Basso: Vale a pena falar desse papel, mesmo que ele certamente o dispensaria com um dos seus comentários fulminantes. Pois a sua reapresentação do pensamento marxista é verdadeiramente original e antecipatória. Em seu texto de 1903, “Estagnação e progresso do marxismo”, Rosa Luxemburgo escreve que, diante de novas questões práticas, os revolucionários podem “mergulhar mais uma vez na riqueza do pensamento de Marx, para dele extrair e utilizar novos fragmentos da sua doutrina”.

Meio século depois, Bordiga e o coletivo de trabalho ao seu redor enfrentaram a colossal tarefa de restabelecer as pedras angulares da teoria marxista. Isso significava não só extrair “fragmentos” singulares, mas trabalhá-la de cima a baixo. Porque nada havia sobrevivido à adulteração levada a cabo pelo stalinismo e ao hábil uso capitalista dessa adulteração.

Bordiga usou as ferramentas do marxismo sobretudo para examinar a experiência de “construção do socialismo” na Rússia. Ele fez isso com as categorias da economia política marxista, indo direto à base econômica da vida social na Rússia de Stalin e questionando se as categorias do capitalismo ocidental também se aplicavam lá. Esse enorme esforço para pesquisar a evolução social da Rússia envolveu todo o coletivo Programma Comunista.

Para Bordiga e seus camaradas, o essencial não era a propriedade estatal ou privada dos meios de produção, mas a lucratividade e a extração de mais-valia. Esses eram os critérios-chave em torno dos quais a produção era organizada na Rússia, juntamente com a centralidade da empresa, produção de mercadoria, troca de mercado, compra e venda de força de trabalho, salários, contabilidade monetária, preços…

Se essas categorias permaneciam, não poderia haver planejamento socialista. Pois, em vez de a produção ocorrer com base em necessidades sociais previamente levantadas, o tão vangloriado plano era apenas uma espécie de registro ex post [posterior] dos resultados alcançados por empresas ou setores isolados, com alguma tentativa tímida de corrigir seus “desequilíbrios” excessivos.

Para Bordiga, o problema era a firma, não o fato de a firma ter um chefe. Pois o sustentáculo da produção capitalista é a produção (de lucros) em unidades separadas, cada uma das quais defende a sua própria existência no mercado nacional/global e expande seus negócios além do limite estendendo/intensificando sua exploração do trabalho vivo. Tal mecanismo é incompatível com um plano social racional de produção e consumo.

Poucos marxistas demonstraram tão claramente que uma economia socialista é algo bem diferente de uma economia estatal. Como destacou Liliana Grilli, Bordiga também respondeu à questão de saber se é possível existir um “capitalismo sem capitalistas”.

A forma que o desenvolvimento social havia assumido na Rússia era nova. Mas, se Oronato Damen via isso como uma forma “última” de capitalismo, na leitura de Bordiga, a URSS de Stalin estava tendendo ao capitalismo pleno. Não era a sua forma mais avançada; em vez disso, o capitalismo americano estava na vanguarda.

Bordiga mostrou que, por trás das suas armadilhas estatistas, o grande industrialismo de estado na URSS era tudo menos “totalitário” – continha e até exigia muitos elementos do negócio privado, como a terceirização em empresas menores, e a tendência geral na URSS era de uma redução de elementos estatais. Ele já estava escrevendo isso na década de 1950!

Nesse contexto, figuras capitalistas clássicas – empresários privados individuais – foram tomando forma nas teias que ligavam empresa e mercado e o processo despótico de extração de mais-valia. Eles ainda não admitiam tal papel, mas a “confissão” viria, na íntegra, nos anos da perestroika de Mikhail Gorbachev e depois. Os tubarões da era [Boris] Yeltsin não precisaram ser lançados de paraquedas do exterior.

David Broder: Mas Bordiga também se interessou por essa “vanguarda” do capitalismo nos Estados Unidos?

Pietro Basso: Sim, nas décadas do pós-guerra o outro campo principal de aplicação da crítica de Bordiga – e as ferramentas reafiadas do “marxismo clássico” – foram os Estados Unidos. País líder do capitalismo ocidental e global, decolou após a Segunda Guerra Mundial, difundindo (até além da Cortina de Ferro) a utopia de um capitalismo abundante, popular, capaz de superar na prática a polarização de classes.

Para esta antologia, selecionei dez textos de 1947 a 1957 que discutem os Estados Unidos, desde o seu “assalto à Europa” até a guerra na Coreia e o modelo social americano. Já na década de 1950, Bordiga se concentrou na tentativa dos EUA de “promover” o proletário à categoria de consumidor, forçando-o a assumir dívidas por meio do mecanismo maníaco disciplinador do “frequentemente nocivo consumo padronizado e pronto para uso” – uma tentativa que acabaria se provando um danoso blefe.

Esses textos se sobrepõem com outros que mostram os diferentes cursos da evolução do capitalismo após a Segunda Guerra Mundial, destacando o divórcio entre propriedade e capital, a mudança do centro de gravidade do capital da produção para manobras do mercado especulativo, e a inflação do Estado (exatamente o oposto da promessa burguesa de “governo barato”).

Aqui temos a economia capitalista enquadrada como uma “economia do desastre” e uma crítica à economia perdulária que não encontra paralelo em outros marxistas, se não de forma mais acadêmica como em István Mészáros e alguns outros depois dele (todos ignorantes em relação a Bordiga).

David Broder: …Por exemplo, em seu Assassinato dos Mortos

Pietro Basso: Exatamente. E isso foi muito antes da atual – e muito interessante – recuperação da dimensão ecológica do pensamento de Marx por [John Bellamy] Foster, [Paul] Burkett, [Kohei] Saito e assim por diante.

Ele mostrou que no “marxismo original” o ataque capitalista ao trabalho vivo e o ataque do capital à natureza eram dois lados da mesma moeda. Usando esse critério, ele identificou a “fome feroz de catástrofe e ruína” do capitalismo tardio.

Esta é uma antologia – eu tive que fazer escolhas e deixar muitas coisas de fora. Mas eu incluí uma série de passagens de Bordiga sobre a pilhagem capitalista da natureza, sobre o fato de que a terra e os recursos naturais não devem ser propriedade de ninguém, nem mesmo propriedade coletiva, mas administrados de acordo com o interesse da espécie. Isso não se trata de um anticapitalismo banal: pelo contrário, há uma atenção crítica e não romântica também às formas que precederam a produção capitalista (bem sumarizadas pelo seu colaborador, Roger Dangeville).

Bordiga esteve entre os primeiros a elaborar um comentário sobre os Grundrisse de Marx – já dez anos antes de Roman Rosdolsky –, do qual extraí uma parte intitulada “Quem Tem Medo da Automação?”. Na década de 1950, Bordiga explicou que os marxistas seriam as últimas pessoas a ter esse medo.

Em sua análise do capitalismo contemporâneo, sua hipertrofia financeira, especulativa, consumista, carregada de dívidas, sua monstruosa hipertrofia militarista, sua destruição do meio ambiente, sua opressão necolonial de pessoas de cor, e assim por diante, Bordiga foi clarividente.

E a sua crítica às características degenerativas do “supercapitalismo” estadunidense não tinha nenhum traço de antiamericanismo; antes, era uma crítica às tendências gerais do modo de produção capitalista e os danos crescentes que este causava à vida humana e natural. Esta é uma crítica particularmente relevante para os dias de hoje. De fato, foi um acadêmico estadunidense que entendeu isso, argumentando que Bordiga é contra o produtivismo…

David Broder: Você quer dizer Loren Goldner?

Pietro Basso: Sim, a ênfase que ele coloca nisso é muito interessante. Na era stalinista havia uma espécie de identificação entre o socialismo marxista e o desenvolvimento das forças produtivas. Bordiga rejeita sumariamente tal identificação, mesmo que haja partes do mundo em que as forças produtivas precisem ser desenvolvidas.

Em 1953 ele elaborou um programa imediato para as primeiras transformações revolucionárias a realizar nos países capitalistas desenvolvidos. No centro disso estava a subprodução: cortar bilhões de horas de produção nociva ou sem sentido, desinvestir, aumentar os custos de produção e erradicar o superconsumo. Não se tratava apenas de repropor o Manifesto Comunista

Para Bordiga, o fundamental era a redução drástica da jornada de trabalho e a explosão do tempo de vida da espécie. A partir do seu estudo profundo de Marx e do marxismo – incluindo textos negligenciados ou recentemente descobertos –, ele passou a definir o comunismo como um plano de vida para a espécie humana. Isso significava um plano unitário e internacional de produção e consumo, baseado na satisfação de necessidades humanas genuínas. Ele “antecipou” esses temas – aqueles dramaticamente caindo sobre nós hoje.

David Broder: Sobre os temas atuais, vale destacar a seção deste volume dedicada ao “Gigante Movimento pela Emancipação dos Povos de Cor”. É fácil imaginar que Bordiga não via nada além do confronto final entre burguesia e proletariado. Mas ele reconheceu o poder disruptivo das revoluções anticoloniais (mesmo que não pensasse que elas estavam construindo o socialismo) e rejeitou qualquer visão “plana” e indiferenciada do mundo. De onde surgiu esse interesse?

Pietro Basso: Não há nada hagiográfico na minha apresentação de Bordiga. Portanto, eu não tinha a necessidade de esconder a realidade de que no Segundo Congresso da Comintern, em 1920, Bordiga, como o colega delegado italiano Giacinto Serrati, ficou perplexo com as teses que passou sobre a questão colonial. Não tendo estudado esta questão, ele temia que ela encorajasse o enfraquecimento do papel do proletariado e dos partidos comunistas nos países coloniais ou semicoloniais. Mas, depois da Segunda Guerra Mundial, com a poderosa insurreição anticolonial em três continentes, Bordiga se corrigiu e adotou plenamente, eu diria, a visão em relação à qual havia sido antes hesitante.

Um dos fatores que separaram Bordiga de alguns dos seus camaradas (e não apenas na Itália) no início dos anos 1950 foi a substancial indiferença dos últimos em relação às revoluções anticoloniais. Bordiga, junto com vários camaradas, empreendeu uma leitura sistemática dessas revoluções, que ele via como autênticas revoluções sociais – mas agrárias, antifeudais, nacionais, limitadas a estabelecer relações sociais burguesas.

Daí a sua crítica paralela à fraseologia socialista dos seus líderes. Mas, ao ampliar o espaço das relações sociais capitalistas, em forte contradição com a hegemonia das grandes potências, e ao trazer vastas massas de explorados para a arena da política global, elas acabaram por representar um fator favorável ao renascimento do movimento proletário internacional.

Já que estamos falando de questões de relevância atual, acrescento que a antologia também contém um texto marcante sobre os Motins de Watts de agosto de 1965. Este artigo sobre como A Raiva “Negra” Abalou os Pilares Podres da Civilização Burguesa e Democrática também é um dos últimos textos de Bordiga antes de sua morte, em 1970. A questão racial é enquadrada como uma questão social, e a revolta negra como uma revolta proletária.

Ele acolheu isso com “grande entusiasmo”, também porque rasgou o tecido das ficções jurídicas e da hipocrisia democrática. Permita-me citar uma passagem desse texto – poderíamos dizer, a saudação do próprio Bordiga ao grande movimento que se seguiu ao assassinato de George Floyd. Como ele disse em 1965,

havia algo profundamente novo nesse ardente episódio de raiva. Para aqueles que o seguiram não com fria objetividade, mas com paixão e esperança, o episódio não foi apenas vagamente popular, mas proletário. E é isso que nos faz dizer: a revolta dos negros foi esmagada. Vida longa à revolta dos negros! O que é novo – para a história das lutas de emancipação do trabalhador negro mal pago, certamente não para a história da luta de classes em geral – é a quase exata coincidência entre a pomposa e retórica proclamação presidencial de direitos civis e políticos e a explosão de uma fúria subversiva anônima, coletiva, “incivilizada” por parte dos “beneficiários” do gesto “magnânimo”; entre a enésima tentativa de seduzir o escravo atormentado com uma miserável cenoura, que não custou nada, e a recusa instintiva desse escravo de se deixar vendar e de se curvar novamente.

“Sem consciência teórica”, continuou ele,

sem a necessidade de expressá-la em linguagem articulada, mas fazendo sua declaração com seus corpos e suas ações, eles clamaram que não pode haver igualdade civil e política enquanto houver desigualdade econômica, e que a maneira de acabar com essa desigualdade não é com leis, decretos, palestras e sermões, mas derrubando pela força as bases de uma sociedade dividida em classes. É essa laceração brutal do tecido de ficções jurídicas e hipocrisias democráticas que desconcertou a burguesia (e como poderia ser diferente!). Foi isso que despertou tanto entusiasmo em nós marxistas (e como poderia ser diferente!). Isso é o que deve dar o que pensar aos proletários apáticos, cochilando sob o falso mimo das metrópoles de um capitalismo historicamente nascido de pele branca.

Como disse recentemente Tithi Bhattacharya, o capitalismo não pode deixar de ser racista (e acho que demonstrei a mesma coisa em meu próprio livro, Razzismo di Stato). Também sobre este tema, Bordiga foi além das suas próprias posições iniciais, adotando e aplicando a perspectiva de Lenin em relação ao “Oriente”.

David Broder: Finalmente, o que a republicação desses textos pode alcançar?

Pietro Basso: Há cerca de uma década, Peter Thomas apropriadamente identificou o Momento Gramsciano – um momento que, eu acrescentaria, foi concomitante à ascensão de governos progressistas, especialmente na América Latina, que gerou a ilusão de um caminho gradual e “frente-amplista” rumo a um “socialismo do século XXI”.

Nos últimos anos, especialmente nos países anglófonos, temos visto cada vez mais um “retorno direto a Marx”. Isso se explica pelo advento de uma crise histórica do capitalismo e, portanto, de agudas lutas de classes.

Invariavelmente, nesta fase, há uma tentativa de redescobrir a experiência revolucionária do passado, em toda a sua riqueza e cores caleidoscópicas. Isso significa buscar tirar lições e pistas da reflexão do passado (também sobre as forças, os recursos e os métodos da contrarrevolução; e um dos julgamentos aparentemente paradoxais de Bordiga sustentou que “o marxismo é uma teoria das contrarrevoluções”).

É por isso que podemos dizer que a expectativa de um “Momento Bordiguista” não é tão distante. Contra a imagem que Bordiga queria dar de si mesmo, de um homem que estava simplesmente martelando velhos pregos, ele será finalmente redescoberto como um marxista do e para o futuro.

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