Jaccques Camatte – A Mistificação Democrática

O texto a seguir corresponde à seção de abertura de La Mystification Démocratique, trabalho originalmente publicado em 1969, sem assinatura, na revista francesa Invariance, editada por Jacques Camatte. O trabalho, cujo conteúdo se trata de uma crítica marxista da democracia, notavelmente influenciada pela tradição da Esquerda Comunista italiana ligada à produção teórica de Amadeo Bordiga, fez parte de um projeto maior para a revista designado La Revolution Communiste – thèses de travail (daí a numeração das partes).

Optou-se por traduzir diretamente os excertos de outras obras citadas no texto para manter o melhor possível a sua coerência e a fidelidade ao autor. Apesar de o texto que deu origem à tradução se encontrar em inglês, ela também foi feita com recurso ao trabalho original em francês.

Tradução por Leonardo Gabriel.


5.1. O Fenômeno Histórico Geral

O ataque do proletariado às cidadelas do capital só tem chance de sucesso se o movimento revolucionário proletário acabar com a democracia de uma vez por todas. A democracia é o último refúgio de todas as negações e traições, porque é a primeira esperança daqueles que acreditam em purificar e revigorar o movimento atual, que está podre até a medula.

 “A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que desviaram a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na prática humana e na compreensão desta prática.”

(Marx, Oitava tese sobre Feuerbach)

5.1.1. Em linhas gerais, pode-se definir a democracia como o comportamento de humanos, a organização daqueles que perderam a sua unidade orgânica original com a comunidade. Assim, ela existe durante todo o período que separa o comunismo primitivo do comunismo científico.

5.1.2. A democracia nasceu a partir do momento em que houve uma divisão entre os homens e a alocação da posse. Ou seja, surgiu com a propriedade privada, os indivíduos e a divisão da sociedade em classes, com a formação do Estado. Segue-se que ela se torna cada vez mais pura à medida que a propriedade privada se torna mais geral e as classes aparecem mais distintamente na sociedade.

5.1.3. Ela pressupõe um bem comum que se divide. A democracia limitada na sociedade antiga pressupunha a existência do ager publicus e dos escravos, que não eram homens. Na sociedade moderna, esse bem comum é mais universal (toca um maior número de homens). Também é mais abstrato e ilusório: a pátria.

5.1.4. A democracia de forma alguma exclui autoridade, ditadura e, portanto, o Estado. Pelo contrário, precisa do Estado como fundamento. Quem pode garantir a alocação, quem pode regular as relações entre indivíduos e entre estes e o bem comum, senão o Estado?

Na sociedade capitalista plenamente desenvolvida, o Estado também se apresenta como o guardião da redistribuição sob dois ângulos diferentes: impede que o proletariado mordisque a mais-valia e garante a distribuição dessa mais-valia como lucro, juro, renda etc., entre as diferentes esferas capitalistas.

5.1.5. A democracia implica assim a existência de indivíduos, classes e o Estado; com o resultado de que é simultaneamente um modo de governo, um modo de dominação de uma classe e um mecanismo de união e conciliação.

Na verdade, no início, os processos econômicos dividiram os homens (processo de expropriação) que estavam unidos na comunidade primitiva. As relações sociais antigas foram destruídas. O ouro tornou-se um verdadeiro poder, substituindo a autoridade da comunidade. Os homens se opuseram uns aos outros por causa de antagonismos materiais que poderiam desmembrar a sociedade e torná-la impossível. A democracia pareceu ser um meio de reconciliação dos opostos, como a forma política mais adequada para unir o que estava dividido. Representava a conciliação entre a velha comunidade e a nova sociedade. A forma mistificadora estava na aparente reconstrução de uma unidade perdida. A mistificação foi progressiva.

Em nossos dias, no polo oposto da história, o processo econômico levou à socialização da produção e dos homens. A política, ao contrário, tende a dividi-los, para mantê-los como simples superfícies de troca para o capital. A forma comunista torna-se cada vez mais poderosa dentro do velho mundo capitalista. A democracia parece uma conciliação entre o passado, ainda atuando em nosso presente, e o futuro – a sociedade comunista. A mistificação é reacionária.

5.1.6. Costuma-se dizer que as sementes (ou, alguns até dizem, as formas) de democracia são encontradas nas origens da vida da nossa espécie, no comunismo primitivo. No entanto, é um equívoco ver a manifestação das sementes de uma forma superior aparecendo esporadicamente em uma forma inferior. Essa “democracia” aparecia em circunstâncias muito específicas. Assim que elas terminavam, havia um retorno ao modo de organização anterior. Por exemplo: a democracia militar nos seus primórdios. A eleição do líder ocorria em um momento determinado e para tarefas específicas. Uma vez que estas eram cumpridas, o líder era reabsorvido na comunidade. A democracia que aparecia temporariamente era reabsorvida. Era o mesmo para aquelas formas de capital que Marx chamou de antediluvianas. A usura era a forma arcaica de capital monetário que podia aparecer nas sociedades antigas. Mas sua existência sempre foi precária, porque a sociedade se defendeu de seus efeitos solventes e a baniu. Foi somente quando o homem se tornou uma mercadoria que o capital pôde se desenvolver sobre uma base segura e não pôde mais ser reabsorvido. A democracia só pode surgir realmente a partir do momento em que os homens estejam completamente divididos e o cordão umbilical que os liga à comunidade tenha sido cortado; isto é, quando há indivíduos.

O comunismo às vezes pode se manifestar nesta sociedade, mas é sempre reabsorvido. Ele só poderá se desenvolver realmente a partir do momento em que a comunidade material estiver destruída.

5.1.7. O fenômeno democrático aparece com clareza em dois períodos históricos: no momento da dissolução da comunidade primitiva na Grécia; e no momento da dissolução da sociedade feudal na Europa Ocidental. É incontestável que nesse segundo período o fenômeno tenha aparecido com maior intensidade, porque os homens haviam realmente sido reduzidos à condição de indivíduos e as antigas relações sociais não podiam mais uni-los. A revolução burguesa sempre aparece como a colocação das massas em movimento. Daí surge o problema burguês: como unificá-las e fixá-las em novas formas sociais. Disso decorre a mania institucional e a erupção do direito na sociedade burguesa. A revolução burguesa é uma revolução social com uma alma política.

Durante a revolução comunista, as massas já terão sido organizadas pela sociedade capitalista. Não buscarão novas formas de organização, mas estruturarão um novo ser coletivo, a comunidade humana. Isso aparece claramente quando a classe atua como um ser histórico, quando se constitui como partido.

Já foi dito várias vezes no movimento comunista que a revolução não é um problema de formas de organização. Para a sociedade capitalista, ao contrário, tudo é uma questão organizacional. No início do seu desenvolvimento, isso aparece como a busca de boas instituições; no final, como a busca das melhores estruturas para encerrar os homens nas prisões do capital: o fascismo. Em ambos os extremos, a democracia está no centro dessa busca: primeiro a democracia política, depois a democracia social.

5.1.8. A mistificação não é um fenômeno planejado pelos membros da classe dominante, uma farsa que eles perpetram. Nesse caso, bastaria uma simples propaganda adequada para erradicá-la das mentes dos homens. Na verdade, ela atua nas profundezas da estrutura social, nas relações sociais:

“Uma relação social de produção aparece como algo existente à parte dos seres humanos individuais, e as relações distintivas em que eles entram no curso da produção na sociedade aparecem como propriedades específicas de uma coisa – é essa aparência deturpada, essa mistificação prosaicamente real, e de modo algum imaginária, que é característica de todas as formas sociais do trabalho criador do valor de troca.”

(Marx – ‘Contribuição à Crítica da Economia Política”, Obras Escolhidas v. 29 p. 289)

É necessário, portanto, explicar de que maneiras a realidade é mistificadora e como essa simples mistificação do início se torna cada vez maior e atinge o seu máximo com o capitalismo.

5.1.9. Originalmente, a comunidade humana estava sujeita à ditadura da natureza, tendo que lutar contra ela para sobreviver. A ditadura era direta e a comunidade em sua totalidade foi submetida a ela.

Com o desenvolvimento da sociedade de classes, o Estado se apresenta como representante da comunidade e pretende encarnar a luta do homem contra a natureza. No entanto, dada a debilidade do desenvolvimento das forças produtivas, a ditadura da natureza é sempre eficaz. Ela é indireta e mediada pelo Estado e pesa especialmente sobre as camadas mais desfavorecidas. Quando o Estado define o homem, toma o homem da classe dominante como substrato da sua definição. A mistificação está completa.

5.1.10. Sob o capitalismo, há um primeiro período em que, embora a burguesia tenha tomado o poder, o capital só domina formalmente. Persistem muitos resquícios de formações sociais anteriores, dificultando a dominação do capital sobre toda a sociedade. Esta é a época da democracia política, quando há a apologia da liberdade individual e da livre concorrência. A burguesia apresenta isso como um meio de libertação para os homens. No entanto, isto é uma mistificação porque:

“Na livre concorrência, é o capital que se liberta, não os indivíduos.”

(Marx, ‘Grundrisse’, Obras Escolhidas v. 29 p. 38)

“Daí… o absurdo de considerar a livre concorrência como o desenvolvimento último da liberdade humana, e a negação da livre concorrência como equivalente à negação da liberdade individual e da produção social baseada na liberdade individual. Ela é apenas o tipo de livre desenvolvimento possível na base limitada da dominação do capital. Este tipo de liberdade individual é, portanto, ao mesmo tempo, a abolição mais vasta de toda a liberdade individual e a completa submissão da individualidade a condições sociais que assumem a forma de poderes objetivos, de objetos verdadeiramente avassaladores – objetos independentes dos indivíduos em relação uns com os outros. Trazer à tona a essência da livre concorrência é a única resposta racional à sua glorificação pelos profetas da classe média e à sua anatematização pelos socialistas.”

(Marx, ‘Grundrisse’, Obras Escolhidas v. 29 p. 40)

5.1.11.

“A democracia e o parlamentarismo são indispensáveis para a burguesia depois da sua vitória pela força e pelo terror porque a burguesia quer governar uma sociedade dividida em classes.”

(‘Battaglia Communista’ no. 18, 1951)

Era necessária conciliação para poder dominar, pois era impossível que a dominação se sustentasse apenas através do terror. Após sua conquista do poder pela violência e pelo terror, o proletariado não precisa da democracia, não porque as classes desaparecem de um dia para o outro, mas porque não deve mais haver mascaramento ou mistificação. A ditadura é necessária para evitar qualquer retorno da classe oposta. Além disso, a chegada do proletariado ao Estado é a sua própria negação enquanto classe, assim como a negação das demais classes. É o início da unificação da espécie, da formação da comunidade. Exigir democracia implicaria a necessidade de conciliação entre classes e isso equivaleria a duvidar que o comunismo seja a solução para todos os antagonismos, que seja a reconciliação do homem consigo mesmo.

5.1.12. Com o capital, o movimento econômico não está mais separado do movimento social. A união se deu com a compra e venda da força de trabalho, mas levou à submissão dos homens ao capital. O capital se constitui como comunidade material e não há mais política, pois é o próprio capital que organiza os homens como escravos.

Até esta etapa histórica, havia uma separação mais ou menos clara entre produção e distribuição. A democracia política poderia ser encarada como um meio de distribuir produtos de forma mais equitativa. Mas quando a comunidade material é alcançada, produção e distribuição estão indissoluvelmente ligadas. Os imperativos da circulação condicionam assim a distribuição. No entanto, a circulação já não é algo completamente externo à produção, mas é, para o capital, um momento essencial do seu processo total. É, portanto, o próprio capital que condiciona a distribuição.

Todos os homens cumprem uma função para o capital que pressupõe fundamentalmente sua existência. Em relação à execução desta função, os homens recebem uma certa distribuição de produtos por intermédio de um salário. Temos uma democracia social. A política de rendimentos é um meio para a atingir.

5.1.13. No período da dominação formal do capital (democracia política), a democracia não é uma forma de organização oposta enquanto tal ao capital, é um mecanismo utilizado pela classe capitalista para obter dominação sobre a sociedade. Durante este período, todas as formas organizativas incluídas nesta luta alcançaram este mesmo resultado. É por isso que o proletariado também pode, por um certo tempo, intervir neste terreno. Por outro lado, as oposições também podem ocorrer no interior de uma mesma classe, entre as burguesias industrial e financeira, por exemplo. O parlamento é, portanto, uma arena onde esses vários interesses se chocam. O proletariado pode usar o parlamento como plataforma para denunciar a mistificação democrática e pode usar o sufrágio universal como um meio de organizar a classe.

Quando o capital atingiu a sua dominação real e se constituiu como comunidade material, a questão ficou resolvida: ele tomou conta do Estado. A conquista do Estado por dentro já não se coloca porque ele não é mais do que:

“uma formalidade, um haut gôut [requinte] da vida popular, uma cerimônia. O elemento estamental é a mentira sancionada, legal, dos Estados constitucionais, a mentira de que o Estado é o interesse do povo ou que o povo é o interesse do Estado.” (Marx, ‘Crítica da Filosofia do Direito de Hegel’, Obras Escolhidas v. 3 p. 65).

5.1.14. O Estado democrático representa a ilusão de controle sobre a sociedade pelo homem (que o homem pode dirigir o fenômeno econômico). Ele proclama o homem soberano. O Estado fascista é a realização desta mistificação (neste sentido, pode aparecer como a sua negação). O homem não é soberano. Ao mesmo tempo, esta é, de fato, a forma real reconhecida do Estado capitalista: a dominação absoluta do capital. A unidade social não pode existir com um divórcio entre teoria e prática. A teoria disse: o homem é soberano; a prática afirmou: é o capital. Somente na medida em que este não chegasse a dominar a sociedade de forma absoluta, haveria possibilidade de desequilíbrio. No Estado fascista, a realidade subjuga a ideia para fazer dela uma ideia real. No Estado democrático, a ideia subjuga a realidade para torná-la uma realidade imaginária. A democracia dos escravos do capital suprime a mistificação para melhor realizá-la.Os democratas desejam realçá-la quando acreditam que ela pode reconciliar o proletariado com o capital.

Tendo a sociedade encontrado o ser de sua opressão (que abole a dualidade, a distorção realidade/pensamento), é necessário opor-lhe o ser libertador que representa a comunidade humana: o partido comunista.

5.1.15. Por isso a maioria dos teóricos do século XIX eram estatistas. Eles pensavam que poderiam resolver os fatos sociais ao nível do Estado. Eles eram mediatistas.

Mas eles não entenderam que o proletariado não só tinha que destruir a velha máquina estatal, mas também colocar outra em seu lugar. Muitos socialistas acreditavam que era possível conquistar o Estado por dentro e os anarquistas acreditavam que era possível aboli-lo de um dia para o outro.

Os teóricos do século XX são corporativistas porque pensam que se trata apenas de organizar a produção e humanizá-la para resolver todos os problemas. Eles são imediatistas. Esta é uma prova indireta da teoria do proletariado. Dizer que é preciso conciliar o proletariado com o movimento econômico é reconhecer que uma solução só pode surgir neste terreno. Esse imediatismo decorre do fato de que a sociedade comunista está sempre se fortalecendo dentro do próprio capitalismo. Não se trata de reconciliar os dois, mas de destruir o poder do capital, sua força organizada, o Estado capitalista, que mantém o monopólio privado quando todos os mecanismos econômicos tendem a fazê-lo desaparecer. A solução comunista é mediata. A realidade parece evadir-se do Estado, é necessário destacá-lo e, ao mesmo tempo, indicar a necessidade de outro Estado transitório: a ditadura do proletariado.

5.1.16. O desenvolvimento em direção à democracia social foi desacreditado desde o início:

“Enquanto o poder do dinheiro não for o elo entre as coisas e os homens, as relações sociais devem ser organizadas política e religiosamente.”

(Marx)

Marx sempre denunciou o embuste da política e desnudou as relações reais:

“Portanto, a necessidade natural, as propriedades essencialmente humanas, por mais estranhas que possam parecer, e o interesse mantêm a coesão entre os membros da sociedade civil; e a vida civil, e não a vida política, é o seu vínculo real.

(‘A Sagrada Família’, Obras Escolhidas v. 4 p. 120)

“Precisamente a escravidão da sociedade civil é, em aparência, a maior liberdade, por ser, em aparência, a independência plenamente desenvolvida do indivíduo, que considera como sua própria liberdade o movimento desenfreado dos elementos estranhados da sua vida, não mais vinculado por um vínculo comum nem pelo homem, por exemplo, a propriedade, a indústria, a religião, etc., enquanto na verdade esta é a sua escravidão e inumanidade plenamente desenvolvidas. O privilégio é, aqui, substituído pelo direito.”

(‘A Sagrada Família’, Obras Escolhidas vol. 4 p. 116)

A questão da democracia só permanece em outra forma como a falsa oposição entre competição e monopólio. A comunidade material integra os dois. Com o fascismo (= democracia social), a democracia e a ditadura também se integram. É um meio para superar a anarquia.

“A anarquia é a lei da sociedade civil emancipada de privilégios diversos, e a anarquia da sociedade civil é a base do sistema público moderno, assim como o sistema público, por sua vez, é a garantia dessa anarquia. Na medida em que se opõem, também se determinam.”

(‘A Sagrada Família’, Obras Escolhidas vol. 4 p. 117)

5.1.17 Agora que a classe burguesa, que liderou a revolução que permitiu o desenvolvimento do capital, desapareceu e foi substituída pela classe capitalista que vive do capital e do seu processo de valorização, a dominação do capital está assegurada (fascismo) e por isso não há mais a necessidade de uma conciliação política, já que é supérflua, mas de uma conciliação econômica (corporativismo, doutrina das necessidades etc.), e são as classes médias que são adeptas da democracia. Só que quanto mais o capitalismo cresce, mais se desvanece a ilusão de poder compartilhar a gestão com o capital. Tudo o que resta é a demanda por uma democracia social com pretensões políticas:  planejamento democrático, pleno emprego etc. No entanto, ao criar seguridade social, ao mesmo tempo em que tenta manter o pleno emprego que reivindica, a sociedade capitalista alcança a democracia social em questão: a de escravos do capital.

Com o desenvolvimento das novas classes médias, a demanda por democracia assume um tom – somente – de comunismo.

5.1.18. O que foi escrito acima trata do espaço europeu/norte-americano e não tem validade para os países onde o modo de produção asiático por muito tempo predominou (Ásia, África) ou onde ainda predomina (por exemplo, Índia). Nesses países, o indivíduo ainda não foi produzido. A propriedade privada pode aparecer, mas não pode se autonomizar; o mesmo vale para o indivíduo. Isso está relacionado com as condições geossociais desses países e explica a impossibilidade de o capital se desenvolver ali, enquanto não se constituir como comunidade. Dito de outra forma, é apenas quando atingir esse estágio que o capitalismo poderá substituir a antiga comunidade e, assim, conquistar imensas zonas. Só que nesses países os homens não podem se comportar como no Ocidente. A democracia política é necessariamente evitada. Pode-se ter, no máximo, apenas a democracia social.

É por isso que nos países mais atormentados pela implantação do capitalismo temos um duplo fenômeno: uma conciliação entre o movimento real e a comunidade antiga, e outra com a comunidade futura: o comunismo. Daí a dificuldade em lidar com essas sociedades.

Em outras palavras, toda uma imensa parte da humanidade não conhecerá a mistificação democrática tal como ela é conhecida no Ocidente. Este é um fato positivo para a revolução vindoura.

Em relação à Rússia, temos um caso intermediário. Podemos notar com que dificuldade o capitalismo se estabeleceu ali. Precisava de uma revolução proletária. Também lá, a democracia política ocidental não tinha uma base para o desenvolvimento e podemos notar que não pode florescer lá. Como no Ocidente contemporâneo, teremos a democracia social. Infelizmente também lá, a contrarrevolução trouxe veneno sob a forma de democracia proletária e, para muitos, a involução da revolução deve ser buscada na não realização da democracia.

A revolução comunista começará novamente, reconhecendo esses fatos e concedendo-lhes toda a sua importância. O proletariado se reconstituirá como classe e, portanto, como partido, superando assim os limites apertados de todas as sociedades de classes. A espécie humana finalmente será unificada e formará um único ser.

5.1.19. Todas as formas históricas de democracia corresponderam a estágios de desenvolvimento onde a produção era limitada. As várias revoluções que se sucederam foram revoluções parciais. O progresso econômico não poderia acontecer e avançar sem que ocorresse a exploração de uma classe. Podemos notar que desde a antiguidade as revoluções contribuíram para a emancipação de uma parcela cada vez maior da humanidade. Daí surgiu a ideia de que caminhamos para uma democracia perfeita, uma democracia que congregue todos os homens. Como resultado, muitos se apressam em fazer a equação: socialismo = democracia. É verdade que se pode dizer que, com a revolução comunista e a ditadura do proletariado, uma parcela maior da humanidade do que antes entra no domínio dessa democracia ideal; e que ao generalizar a condição proletária para toda a sociedade, o proletariado abole as classes e conquista a democracia (o ‘Manifesto Comunista’ afirmou que a revolução é a conquista da democracia). No entanto, é necessário acrescentar que esta passagem ao limite, esta generalização, é ao mesmo tempo a destruição da democracia. Porque, ao mesmo tempo, a massa humana não fica constituída com o estatuto de um simples somatório de indivíduos, todos equivalentes em direito, senão de fato. Isso só pode ser uma realidade por um momento muito curto da história, devido à equalização forçada. A humanidade se constituirá em um ser coletivo, a Gemeinwesen [comunidade]. Isso nasce fora do fenômeno democrático, e é o proletariado constituído como partido que transmite isso para a sociedade. Quando se passa para a sociedade futura, há uma mudança qualitativa, e não meramente quantitativa. Pois a democracia é “o domínio antimarxista dessa quantidade impotente, por toda a eternidade, para se tornar qualidade”. Exigir democracia para a sociedade pós-revolucionária é exigir impotência. Além disso, a revolução comunista não é mais uma revolução parcial. Com ela termina a emancipação progressiva e se alcança a emancipação radical. Aqui, novamente, há um salto qualitativo.

5.1.20. A democracia é baseada em um dualismo, e é o meio para transpô-lo. Assim, ela resolve o dualismo entre espírito e matéria, que é equivalente àquele entre os grandes homens e a massa, através da delegação de poderes; aquela entre o cidadão e o homem, através da cédula de voto e do sufrágio universal. De fato, a pretexto do acesso à realidade do ser total, há uma delegação da soberania do homem ao Estado. O homem se despoja de seu poder humano.

A separação dos poderes requer a sua unidade e isso sempre é feito pela violação de uma constituição. Esta violação é fundada em um divórcio entre a situação de fato e a situação de direito. A passagem de uma para a outra é assegurada pela violência.

O princípio democrático na realidade é apenas a aceitação de um fato dado: a cisão da realidade, o dualismo ligado à sociedade de classes.

5.1.21. Muitas vezes alguns querem opor a democracia em geral, um conceito vazio, a uma forma de democracia que seria a chave para a emancipação humana. Ora, o que é um fato cuja característica não só está em contradição com seu conceito geral, mas deve ser sua negação? Na realidade, teorizar uma democracia particular (democracia proletária, por exemplo) ainda ignora o salto qualitativo.  De fato, ou a forma democrática em questão realmente contradiz o conceito geral de democracia e, portanto, é realmente outra coisa (por que, então, chamá-la de democracia?), ou é compatível com esse conceito, e só pode haver uma contradição de natureza quantitativa (por exemplo, incluir um maior número de homens), e, por isso, não ultrapassa os limites do conceito, mesmo que tenda a empurrá-los.

Esta tese aparece muitas vezes sob a forma: democracia proletária não é democracia burguesa, e falar-se-á de democracia direta para mostrar que enquanto a segunda precisa de uma quebra, uma dualidade (delegação de poderes), a primeira a nega. A sociedade futura é assim definida como sendo a realização da democracia direta.

Esta é apenas uma negação negativa da sociedade burguesa, e não sua negação positiva. Ela quer, ainda, definir o comunismo como um modo de organização mais adequado às diversas manifestações humanas. Mas o comunismo é a afirmação de um ser, a verdadeira Gemeinwesen do homem. A democracia direta parece ser um meio para alcançar o comunismo. No entanto, o comunismo não precisa de tal mediação. Não é uma questão de ter ou de fazer, mas de ser.

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