James Baldwin – Minha Masmorra Tremeu

Carta para meu sobrinho no centésimo aniversário da Emancipação.

Publicado no livro The Fire Next Time[1], The Dial Press New York, Junho de 1963 – 8ª impressão

My Dungeon Shook apareceu originalmente na The Progressive – Madison, Wisconsin[2]

Tradução por César O. P. Medeiros.


Querido James:

Eu comecei essa carta cinco vezes e a rasguei cinco vezes. Fico vendo o seu rosto, que é também o rosto do seu pai e meu irmão. Como ele, você é resistente, escuro, vulnerável, temperamental – com uma tendência bem definida em soar truculento porque não quer que ninguém pense que é fraco. Você pode ser como seu avô nisso, não sei, mas certamente ambos você e seu pai assemelham-se bastante a ele, fisicamente. Bem, ele está morto, ele nunca te viu, e ele teve uma vida terrível; ele foi derrotado muito antes de morrer pois, no fundo de seu coração, ele realmente acreditava no que as pessoas brancas diziam sobre ele. Essa é uma das razões pelas quais ele se tornou tão santificado. Tenho certeza que seu pai te contou alguma coisa sobre isso. Nem você ou seu pai exibem quaisquer tendências à santidade: vocês realmente são de outra era, parte do que aconteceu quando o Negro saiu da terra e virou o que o falecido E. Franklin Frazier chamou de “as cidades da destruição”. Você somente pode ser destruído ao acreditar que realmente é aquilo que o mundo branco chama de nigger. Eu te digo isso porque te amo, e por favor não se esqueça jamais disto.

Conheço vocês dois por todas as suas vidas e carreguei o seu Papai em meus braços e em meus ombros, beijei-o e o espanquei e o assisti aprender a andar. Eu não sei se você já conheceu alguém por tanto tempo assim; se já amou alguém por tanto tempo, primeiro enquanto infante, depois como criança e então como um homem. Você adquire uma perspectiva estranha sobre o tempo, a dor humana e o esforço. Outras pessoas não conseguem ver o que eu vejo quando olho para o rosto de seu pai, pois atrás de como é o rosto de seu pai hoje existem todos os outros rostos que foram dele. Deixe-o rir, e vejo um porão do qual o seu pai não se lembra e uma casa da qual ele não se lembra e ouço em sua risada atual, sua risada de criança. Deixe-o falar palavrão e me recordarei dele caindo dos degraus do porão, e gritando, e me recordarei, com dor, suas lágrimas, as quais a minha mão ou a de sua avó tão facilmente limpavam. Mas a mão de ninguém pode limpar as lágrimas que ele invisivelmente derrama hoje e que alguém ouve em sua risada e em sua fala e em suas canções. Eu sei o que o mundo fez com meu irmão e como ele sobreviveu por tão pouco a isso. E eu sei, o que é muito pior, e este é o crime pelo qual eu acuso o meu país e meus conterrâneos, e pelo qual nem eu, nem o tempo e tampouco a história irá jamais os perdoar, que eles destruíram e estão destruindo centenas de milhares de vidas e sequer sabem ou querem saber sobre. Alguém pode ser – aliás, alguém deve lutar para se tornar – resistente e filosoficamente voltado à destruição e morte, pois isso é no que a maioria da humanidade se tornou a melhor em fazer desde que o homem [3]existe (Mas lembre-se: a maioria da humanidade não é toda a humanidade.) Mas não é permissível que os autores da devastação também sejam inocentados. É a inocência que constitui o crime.

Agora, meu querido xará, essas pessoas inocentes e bem intencionadas, seus conterrâneos, causaram a você que nascesse sobre as condições não tão distantes daquelas descritas para nós por Charles Dickens em Londres há mais de cem anos atrás. (Eu ouço o coro dos inocentes gritando “Não! Isso não é verdade! Como você é ressentido[4]!” – mas escrevo essa carta para você, para tentar te contar um pouco sobre como lidar com eles, pois a maioria deles não sabe ainda realmente que você existe. Eu sei as condições sob as quais você nasceu, pois eu estava lá. Seus conterrâneos não estavam lá e não chegaram lá ainda. Sua avó estava lá também, e ninguém a acusou de ser ressentida. Eu sugiro que os inocentes a procurem. Ela não é difícil de encontrar. Seus conterrâneos não sabem que ela existe, também, mesmo que ela tenha trabalhado pra eles ao longo de todas as suas vidas.)

Bem, você nasceu, para cá você veio, em torno de quinze anos atrás; e ainda que seu pai, sua mãe e sua avó, olhando para as ruas pelas quais eles te carregavam, encarando as paredes para as quais te trouxeram, tiveram todos os motivos para estarem com os corações pesados [5], eles não estavam. Pois aqui você estava, Big James, nomeado em minha homenagem – você era um bebê grande, eu não – aqui você estava: para ser amado. Para ser amado, bebê, duramente, de uma vez, e pra sempre, para te fortalecer contra um mundo sem amor. Lembre-se disso: eu sei o quão escuro tudo parece ser pra você, hoje. Tudo parecia ruim naquele dia, também, sim, nós estávamos nos tremendo. Não paramos de tremer ainda, mas se não tivéssemos amados uns aos outros não teríamos sobrevivido. E agora você deve sobreviver porque te amamos, e pelos seus filhos e os filhos de seus filhos.

Esse país inocente que te colocou num gueto no qual, de fato, pretendia que você morresse. Deixe-me soletrar precisamente o que quero dizer com isso, pois o coração da questão está aqui, e a raiz da minha disputa com meu país. Você nasceu aonde nasceu e enfrentou o futuro que você enfrentou porque você era negro e por nenhuma outra razão. Os limites de sua ambição foram, portanto, esperados a serem definidos pra sempre. Você nasceu em uma sociedade que soletrou com uma claridade brutal, e de várias maneiras possíveis, que você é um ser humano sem qualquer valor. Você não era esperado a aspirar à excelência: era esperado que você fizesse as pazes com a mediocridade. Em qualquer lugar que você fosse, James, em seu curto período nesta terra, lhe foi dito aonde você poderia ir e o que você poderia fazer (e como você poderia fazer) e aonde você poderia morar e com quem você poderia se casar. Eu sei que seus conterrâneos não concordam comigo nisto, e os ouço dizendo, “Você exagera.” Eles não conhecem o Harlem[6], eu sim. Você também conhece. Não aceite a palavra de ninguém sobre nada, incluindo a minha – mas confie em sua experiência. Conheça de onde você veio. Se você sabe de onde veio, não existe realmente nenhum limite para onde você pode ir. Os detalhes e símbolos de sua vida tem sido deliberadamente construídos para que você acredite no que as pessoas brancas dizem de você. Por favor tente se lembrar que o que eles acreditam, assim como o que eles realizam e fazem você suportar, não atesta a sua inferioridade, mas a desumanidade e o medo deles. Por favor tente ser claro, querido James, atravessando a tempestade que assola a sua jovem cabeça de hoje, sobre a realidade que existe por trás das palavras aceitação e integração. Não existe nenhuma razão para que você tente se tornar como as pessoas brancas e não há quaisquer bases para a suposição impertinente deles de que eles devem aceitar você. A coisa realmente terrível, velho amigo, é que você deve aceitar eles. E eu digo isso seriamente. Você deve aceitar eles, e aceitar eles com amor. Porque essas pessoas inocentes não tem qualquer outro tipo de esperança. Eles estão, na realidade, ainda presos em uma história pela qual eles não compreendem; e até que compreendam, eles não poderão ser libertados dela. Eles tiveram que acreditar por muitos anos, e por razões inumeráveis, que homens negros são inferiores a homens brancos. Muitos deles, de fato, são mais espertos, mas, conforme você irá descobrir, as pessoas acham muito difícil tomar ações sobre o que elas tem conhecimento. Agir é ser comprometido, e ser comprometido é estar em perigo. Neste caso, o perigo, nas mentes da maioria dos brancos Americanos, é a perda de suas identidades. Tente imaginar como você iria se sentir se acordasse numa manhã e encontrasse o sol brilhando [7]e todas as estrelas em chamas. Você ficaria apavorado porque está fora da ordem da natureza. Qualquer agitação no universo é apavorante pois ataca profundamente o senso de alguém de sua própria realidade. Bem, o homem negro tem funcionado no mundo do homem branco como uma estrela fixa, como um pilar imóvel: e quando ele move-se de seu lugar, o céu e a terra estremecem em suas fundações. Você, não tenha medo. Eu disse que era pretendido que você morresse no gueto, morresse em nunca ser permitido a ir além das definições do homem branco, em nunca conseguir soletrar o seu próprio nome. Você tem, e muitos de nós temos, derrotado essa intenção; e, por uma lei terrível, um paradoxo terrível, esses inocentes que acreditavam que o seu aprisionamento os asseguravam estão perdendo suas compreensões da realidade. Mas esses homens são seus irmãos – seus irmãos mais jovens e perdidos. E se a palavra integração significa algo, isso é o que significa: que nós, com amor, devemos forçar nossos irmãos a se verem assim como são, que parem de fugirem da realidade e comecem a mudá-la. Por esse ser seu lar, meu amigo, não seja expulso dele; grandes homens realizaram grandes feitos aqui, e irão novamente, e podemos fazer a América ser o que a América deve ser. Vai ser duro, James, mas você vem de homens firmes, de origem rural[8], que colhiam algodão e represaram rios e construíram ferrovias, e, nas garras das probabilidades mais terríveis, conquistaram uma dignidade indiscutível e monumental. Você vem de uma longa linhagem de grandes poetas, alguns dos melhores poetas desde Homero. Um deles disse “No exato momento em que pensei estar perdido, Minha masmorra tremeu e minhas correntes caíram.”

Você sabe, e eu sei, que o país está celebrando cem anos de liberdade cem anos mais cedo que deveria. Não podemos estar livres até que eles estejam livres. Deus te abençoe, James e que Deus te acompanhe.

Do seu tio,

James.

Notas de Rodapé

[1] https://en.wikipedia.org/wiki/The_Fire_Next_Time

[2] Uma versão – com algumas diferenças – do texto pode ser encontrado online no site https://progressive.org/magazine/letter-nephew/

[3] No livro The Fire Next Time está como “since we have heard of man”, na versão online da revista The Progressive, está como “since we have heard of war”, desde que a guerra existe, em português.

[4] Bitter: também pode ser traduzido como mesquinho, cruel.

[5] To be heavyhearted: estarem com os corações pesados – tristes, melancólicos, inconsolados.

[6] Bairro majoritariamente habitado pela população negra da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos.

[7] No livro The Fire Next Time está como “to find the sun shining”, na versão online da revista The Progressive, está como “to find the sun shivering”, encontrasse o sol tremendo, em português.

[8] No original “peasant stock”.

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