Discurso realizado em 22 de maio de 1983, no Colégio Mills em Oakland, Califórnia.
Originalmente disponível no site Ursula K. Le Guin.
Tradução por Felipe Andrei.
Ursula K. Le Guin (1929 – 2018) foi vencedora dos prêmios Hugo, Nebula, Gandalf, Kafka e National Book*, e autora de vários livros maravilhosos.
Eu quero agradecer a turma de ‘83 do Mills College por me oferecer uma chance rara: falar alto em público no idioma das mulheres.
Eu sei que há homens se formando e não tenho intenção de exclui-los, pelo contrário. Há uma tragédia grega em que o grego diz para o estrangeiro: “Se você não entende grego, por favor, acene para indicar.” De qualquer modo, as formaturas geralmente operam sob um acordo implícito de que todo formando é homem ou deveria ser. É por isso que estamos todas vestindo estas roupas do século XX que ficam tão bem nos homens e fazem as mulheres parecerem um cogumelo ou uma cegonha grávida. A tradição intelectual é masculina. Discursos públicos são feitos na língua pública, a língua nacional ou tribal, e a língua da nossa tribo é a língua dos homens. É claro que as mulheres aprendem. Nós não somos tontas. Se você consegue diferenciar a Margaret Thatcher do Ronald Reagan, ou a Indira Gandhi do General Somoza, por algo do que eles dizem, me conte como. Este é um mundo masculino, então se fala a língua dos homens. Todas as palavras são palavras de poder. Você percorreu um longo caminho, querida, mas nenhum caminho é longo o bastante. Você não consegue chegar lá nem se vendendo: porque o “lá” é deles, não seu.
Talvez nós já tenhamos palavras de poder o suficiente e falamos demais da batalha da vida. Talvez nós precisemos de algumas palavras de fraqueza. Ao invés de dizer que agora eu espero que vocês todas saiam desta torre de marfim da faculdade e vão para o Mundo Real, e construam uma carreira de triunfo, ou pelo menos ajudem seus maridos a manter nosso país forte, e que tenham êxito em todas as coisas — ao invés de falar em poder, e se eu falasse como uma mulher aqui em público? Não vai parecer apropriado. Vai ser terrível. E se eu dissesse que o que espero para vocês é que, primeiro, se — apenas se — vocês quiserem ter filhos, eu espero que tenham. Não hordas de filhos. Alguns, o suficiente. Espero que eles sejam lindos. Eu espero que vocês e eles tenham o suficiente para comer, e um lugar quente e limpo para morar, e amigos, e um trabalho que vocês gostem. Bom, é para isso que vocês vieram para a faculdade? Isso é tudo? E quanto ao sucesso?
O sucesso é o fracasso de outra pessoa. Sucesso é o Sonho Americano que podemos continuar sonhando, porque a maior parte das pessoas na maioria dos lugares, incluindo trinta milhões de nós mesmos, vivem bem despertos na terrível realidade da pobreza. Não, eu não lhes desejo sucesso. Eu nem mesmo quero falar disso. Eu quero falar de fracasso.
Como são seres humanos, vocês vão encontrar o fracasso. Vocês vão encontrar decepção, injustiça, traição e perdas irreparáveis. Vocês vão descobrir que são fracas no que pensaram ser fortes. Vocês vão trabalhar para ter posses e descobrirão que são elas que possuem vocês. Vocês vão se encontrar — como sei que já se encontraram — em lugares sombrios, solitários, e terão medo.
O que eu desejo para vocês, para todas minhas irmãs e filhas, irmãos e filhos, é que vocês sejam capazes de viver lá, no lugar sombrio. De viver no lugar que a nossa cultura racionalizante de sucesso renega, chamando de local de exílio, inabitável, estrangeiro.
Bom, nós já somos estrangeiras. As mulheres por si só são amplamente excluídas, alheias às autodeclaradas normas masculinas da sociedade, em que seres humanos são chamados de Homens, o único deus respeitável é masculino, a única direção é para cima. Então este é o território deles, vamos explorar o nosso. Eu não estou falando de sexo, esse é um outro universo, em que todos os homens e mulheres estão por conta própria. Eu estou falando de sociedade, o que é chamado de mundo dos homens de competição institucionalizada, agressão, violência, autoridade e poder. Se queremos viver como mulheres, um nível de separatismo é imposto a nós: O Mills College é uma sábia encarnação desse separatismo. O mundo dos jogos de guerra não foi feito por nós ou para nós, nós nem conseguimos respirar o ar de lá sem máscaras. E se você colocar a máscara, vai ser bem difícil conseguir tirar. Então, que tal continuar fazendo as coisas do nosso jeito, como de certa forma vocês fizeram aqui na Mills? Não para os homens e a hierarquia de poder masculino — esse é o jogo deles. Nem contra os homens também — isso ainda seria jogar sob as regras deles. Mas com qualquer homem que esteja conosco: é esse o nosso jogo. Por que uma mulher livre com educação superior deve lutar com o machão ou servi-lo? Por que ela deveria viver uma vida sob as regras dele?
O machão tem medo das nossas regras, que não são totalmente racionais, positivas, competitivas etc. Então, ele nos ensinou a desprezá-las e rejeitá-las. Em nossa sociedade, as mulheres viveram e foram desprezadas por viver todo o lado da vida que inclui e assume responsabilidade pelo desamparo, fraqueza, e doença, pelo irracional e o irreparável, por tudo que é obscuro, passivo, incontrolável, animal, impuro — o vale das sombras, o profundo, as profundezas da vida. Tudo que o Guerreiro rejeita e recusa é deixado para nós e para os homens que compartilham isso conosco, e que assim como nós, não podem ser médicos, só enfermeiros, não podem ser guerreiros, apenas civis, não podem ser caciques, apenas indígenas. Bom, esse é o nosso país. O lado noturno do nosso país. Se há um lado diurno, com serras altas, planícies de gramado reluzente, só conhecemos pelas histórias de pioneiros, ainda não chegamos lá. Nós nunca vamos chegar lá imitando o Machão. Nós só vamos chegar lá seguindo o nosso próprio caminho, vivendo lá, vivendo a noite do nosso próprio país.
Então, o que eu espero para vocês é que não vivam lá como prisioneiras, com vergonha de serem mulheres, prisioneiras consentidas de um sistema social psicopata, mas como nativas. Que se sintam em casa, cuidem da casa, sejam donas de si, com um quarto só de vocês. Que tenham seu trabalho, no que quer que sejam boas fazendo: arte, ciência, tecnologia, administrando uma empresa ou varrendo debaixo da cama. E quando eles disserem que isso é um trabalho de segunda classe porque é uma mulher que está fazendo, eu espero que vocês os mandem para o inferno, e enquanto estiverem indo, que lhes deem um pagamento igualitário pelo seu tempo. Eu espero que vocês vivam sem a necessidade de dominar, e sem a necessidade de serem dominadas. Eu espero que nunca sejam vítimas, mas espero que não tenham poder sobre outras pessoas. E quando falharem, e estiverem derrotadas, com dor, na escuridão, então espero que se lembrem de que a escuridão é o seu território, onde vocês vivem, onde nenhuma guerra é travada e nenhuma guerra é vencida, mas é onde o futuro está. Nossas raízes estão na escuridão, a terra é o nosso território. Por que olhamos para cima a procura de bendição — ao invés de olhar para os lados e para baixo? Que esperança temos lá? Não no céu cheio de olhos espiando e armamentos orbitando, mas na terra para a qual olhamos com desdém. Não de cima, mas de baixo. Não na luz que cega, mas no escuro que nos alimentou, onde os seres humanos cultivam almas humanas.
*O discurso de aceitação de Le Guin para o National Book Award (Prêmio Nacional do Livro), em 19 de novembro de 2014, incluía o seguinte:
“Tempos difíceis estão por vir, em que vamos querer as vozes dos escritores que conseguem ver alternativas ao nosso modo de vida atual, que conseguem olhar através da nossa sociedade amedrontada e de suas tecnologias obsessivas, e ver outras formas de existir, e até imaginar motivos reais para esperança. Vamos precisar de escritores que conseguem se lembrar da liberdade — poetas, visionários — realistas de uma realidade maior.
Neste momento, precisamos de escritores que sabem a diferença entre a produção de uma mercadoria e a prática de uma arte. Desenvolver materiais escritos que se adequem às estratégias de venda para maximizar o lucro corporativo e a receita de publicidade não é a mesma coisa que publicação ou autoria de livros responsável.
No entanto, vejo departamentos de vendas tendo controle sobre o editorial. Eu vejo minhas próprias editoras, em um desespero bobo de ignorância e ganância, cobrando de bibliotecas públicas seis ou sete vezes mais por um e-book do que cobram dos clientes. Acabamos de ver um aproveitador tentar punir uma editora por desobediência, e escritores ameaçados por fátua corporativa. E eu vejo muitos de nós, os produtores, que escrevem e fazem os livros, aceitando isso — deixando que os aproveitadores do mercado nos vendam como desodorante e nos digam o que publicar, o que escrever.
Livros não são só mercadorias, a motivação pelo lucro muitas vezes é conflitante com os objetivos da arte. Nós vivemos no capitalismo, e seu poder parece inescapável — mas o direito divino dos reis também era. Qualquer poder humano pode ser resistido e mudado por seres humanos. Resistência e mudança geralmente começam na arte. Muitas vezes, na nossa arte, a arte das palavras.
Eu tive uma longa carreira como escritora, e uma boa carreira, em boa companhia. Agora, no fim dela, eu não quero assistir à literatura americana ser traída dessa forma. Nós, que vivemos da escrita e da publicação queremos e devemos exigir uma parte justa dos resultados. Mas o belo nome da nossa recompensa não é lucro. Seu nome é liberdade.”