Originalmente disponível no site New York Times.
Tradução por Rodrigo Guimaraes Queiroz.
O Partido dos Panteras Negras foi fundado 50 anos atrás em Oakland, no dia 15 de outubro de 1966, com dois anos de existência já contava com células pelo país. O New York Times tem vê como oportuno explorar o legado do partido, a partir do uso icônico da imagem por estes e como ele era coberto nas nossas próprias páginas.
O Partido dos Panteras Negras é frequentemente associado com resistência armada, mas uma das armas mais potentes na divulgação para a população negra pelo país era seu trabalho artístico. Em posters, panfletos e no seu popular jornal, The Black Panther, a estética do partido era guiada pela visão de Emory Douglas, o seu ministro da cultura.
A arte de Emory emana de várias origens. Como adolescente em San Francisco durante o final da década de 1950 e início de 1960, ele se encontrava “preso” na escola de treinamento para jovens em Ontario, Califórnia, lá ele trabalhou na reprografia. Decidiu estudar design gráfico em San Francisco College, onde se desenvolveu seu interesse profundo pelo Black Arts Movement, nome dado ao braço artistíco do movimento Black Power.
Seu passado único, uma combinação de: Arte, conhecimento de impressão e ativismo, eventualmente atraíram os olhos de Bobby Seale, cofundador dos Panteras Negras, como resultado Emory Douglas se tornou uma figura central do partido. A circulação do jornal eventualmente escalou para mais de 200.000, sendo assim um dos jornais negros mais populares dos seus dias. Anos após o fim do partido, os posters do senhor Douglas ficaram conhecidos como ícones da sua era.
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Para criar uma conversa entre o passado e o presente e explorar a relevância e a importância das artes criadas para os Panteras Negras 50 anos depois, entrevistamos o Sr. Douglas, que agora está aposentado, mas ainda cria arte, viaja e mora em São Francisco, junto com com dois jovens artistas que muitas vezes o procuram em busca de inspiração: Ms. Casteel e Fahamu Pecou, […]. Seus comentários abaixo foram levemente editados para espaço e clareza.
Guerra e protesto
Emory Douglas: A reação à minha arte da Guerra do Vietnã foi positiva. Foi uma mensagem para os G.I.s (Movimento de protesto ao envolvimento militar estadunidense nos estados unidos) e para a comunidade em geral que os abusos, assassinatos e linchamentos de pessoas em nossa comunidade não foram causados pelo Vietnã ou pelos vietnamitas. Nossa luta não era no Vietnã, nossa luta era aqui nos Estados Unidos. As lágrimas na imagem refletem a dor e o sofrimento que ouvi quando conversei com as pessoas na luta ou nas forças armadas.
Jordan Casteel: Essa imagem de um homem negro chorando desafia nossas percepções de masculinidade e força em nossa comunidade. Reconhece os negros lutando em uma guerra, mas questionando: “Qual é a nossa guerra? Em que batalhas devemos estar? E como tomamos essas decisões? Que guerra é a nossa? O que significa estar em batalha com seu próprio país?” A evidência está nas fotos do capacete: estamos sendo mortos nas ruas aqui, mas também sendo solicitados a matar ou ser mortos em outro país. É tão chocante para mim. Isso me fez sentir desconfortável, mas de todas as maneiras certas.
Fahamu Pecou: Um dos principais princípios de sua agenda era moldar sua própria imagem na mídia, em vez de ter sua imagem dominada pela mídia hegemônica. Então, criar os panfletos e o jornal The Black Panther fazia parte dessa agenda: “Se esperarmos que alguém conte nossa história, eles vão pintar um retrato nosso que não reflete nossos valores, não refletem nossa agenda. Então temos que estar à frente deles em mostrar o que é o Partido dos Panteras Negras.” E é daí que essas imagens realmente vêm.
Mulheres Poderosas
Emory Douglas: A mãe da minha filha trabalhou comigo no design para o jornal The Black Panther. Teve também Tarika Lewis, que foi a primeira artista que trabalhou comigo no jornal como artista. E depois havia muitas outras mulheres que contribuíram para a produção do jornal. As mulheres retratadas na minha arte são um reflexo do partido. As mulheres foram para a prisão e estavam em cargos de liderança. As mulheres também começaram células e núcleos do Partido dos Panteras Negras. Quando líamos algumas das histórias, você via mulheres na luta do Vietnã e da Palestina e no movimento de libertação da África. As mulheres eram parte integrante desses movimentos, então tudo isso contribuiu para a forma como eu as expressei em minha própria arte.
Fahamu Pecou: Em meu próprio trabalho, muitas vezes estou trabalhando em uma posição de mudar a perspectiva que nós, como negros, temos sobre o que podemos fazer com nossos corpos e que tipo de poder realmente possuímos. Então, tentando nos mover de uma percepção de nós mesmos como vitimizados para nos ver como empoderados e capazes de fazer as mudanças que queremos ver. E acho que isso dá muito trabalho, mudar a forma como as pessoas se veem. Quando temos várias atrocidades que acontecem dentro da comunidade negra e com a comunidade negra, continuamos a sobreviver, continuamos a prosperar – isso traz a você um reflexo do poder que está dentro de nós. Então, estou interessado nessa ideia: que podemos mudar a maneira como nos movemos no mundo, mudando a maneira como pensamos e nos vemos nesta sociedade.
Jordan Casteel: Emory trabalhava para levar informação para as pessoas através de sua linguagem visual, e essa necessidade era muito mais pungente naquela época. Agora as informações podem ser entregues imediatamente. Você pode tirar uma fotografia, enviá-la para o Instagram ou Facebook e dizer: “Isso aconteceu”. Então, de repente, nas mídias sociais, estamos todos entrando em uma linguagem visual e tentando tomar uma posição. Usar design gráfico e imagens gráficas como forma de se posicionar por trás de algo ainda pertence a minha geração.
Pequenos Panteras
Emory Douglas: O perfilamento racial ocorria naquela época e está ocorrendo agora também. Então, eu queria expressar (pela arte) o abuso policial na comunidade. A fotografia à direita foi tirada quando levávamos os pequenos panteras ao tribunal, onde eles seriam revistados pela segurança de lá. Acho que essa imagem também se conecta nos dias de hoje no contexto do Black Lives Matter e estar mais ciente do perfilamento que existe neste país. As pessoas podem ver como é frustrante para quem lida com perfilamento e como isso cria as condições para a resistência.
Jordan Casteel: Crianças representam uma inocência, e Tamir Rice é tudo o que consigo pensar ao olhar para isso. Ele era um menino que estava apenas brincando, e sua vida foi tirada. Penso nos meus sobrinhos também, porque eles estão sendo criados em um momento em que o que significa ser um jovem racializado está em questão. Mas é importante ainda criar possibilidades e sonhos. Eles devem ser o que quiserem ser e nós temos que criar esse mundo para eles.
Fahamu Pecou: Essas imagens que apresentam crianças eu acho que são muito, muito impactantes. Ser capaz de usar sua plataforma como uma forma de iniciar as crianças em uma maneira de pensar sobre si mesmas no mundo, ou pensar sobre o que o Partido dos Panteras Negras estava fazendo, acho que foi realmente uma prática brilhante. O trabalho do Partido dos Panteras Negras com crianças também os ajudou a chamar a atenção dos adultos, porque os adultos viram que essas pessoas realmente investiam no sustento dessa comunidade. Eles não estão apenas arranjando problemas com os policiais. Eles estão realmente fazendo algo para ajudar a salvar os bebês.
Todo poder ao povo
Emory Douglas: Quando Huey Newton e Bobby Seale vinham para San Francisco para organizar a comunidade, eles eram frequentemente confrontados pela polícia e então eles começaram a chamá-los de suínos e porcos. De suas conversas sobre a polícia veio a definição de um porco: uma besta sem nação que não respeita os direitos, a lei ou a justiça e morde a mão que o alimenta. Então, um dia, Huey e Bobby me deram esse clipart de um porco de quatro patas que eles queriam que eu desenhasse. Na cultura americana, os porcos são animais que chafurdam na sujeira e na imundice. Então eu peguei essa ideia e apliquei no desenho do porco em si. Então, uma vez que eu coloquei o porco em duas pernas, dei-lhe um distintivo e fiz as moscas voarem, ele transcendeu os limites da comunidade afro-americana e se tornou um ícone internacional que todos identificaram como um símbolo de opressão pelo governo e pela polícia. No contexto de hoje, se uma imagem de porco fosse usada de forma contemporânea, tenho certeza que teria o mesmo tipo de impacto.
Fahamu Pecou: Era sobre ser capaz de falar com as pessoas em vários níveis, então é claro que você tinha a linguagem, o texto, que era informativo e explicava muito claramente o que o Partido dos Panteras Negras representava. Mas essas imagens também funcionaram para operar em um estado intelectual e psicológico diferente que entraria na mente das pessoas e as ajudaria não apenas a ler sobre si mesmas ou a se conhecer, mas a se verem empoderadas, a se verem como agentes de mudança. Veja-se como heróis e veja os vilões como eles eram. E eu acho que esses tipos de coisas são realmente poderosos. Realmente fala do poder da arte visual, de operar como uma espécie de texto em si.
Jordan Casteel: Acho que tudo aqui é sobre esperança. Mesmo que as armas estejam presentes, a revolução nem sempre é sobre destruição. É sobre recriação. É sobre ressurreição. É sobre novos começos.
Procurando por justiça
Emory Douglas: Mesmo que possamos planejar o progresso, de muitas maneiras ainda existe racismo estrutural e racismo institucional que existe hoje e precisa ser resolvido. Então é isso que eu tento continuar a fazer com a arte em si é tentar dar uma contribuição para essas questões. Cinquenta anos depois, porém, isso me faz pensar que a luta continua.
Jordan Casteel: O que significa ser uma pessoa que literalmente se sente hiper visível e invisível ao mesmo tempo? Corpos negros e pardos são obrigados a lidar com isso todos os dias. Em algum momento você tem que fazer escolhas sobre como quer ser projetado nesse estado de ser visto e invisível. Como artistas, temos a opção de contribuir com essa linguagem visual e contribuir com uma possível mudança em sua compreensão, medo, amor ou história. E Emory fez isso. Ele participou e contribuiu para essa história.
Meu próprio trabalho surgiu de perceber as diferenças entre o que eu via naqueles que eu amava, principalmente homens negros como meus irmãos e meu pai, e como eles eram retratados pelo mundo. Estes retratos estavam cheios de medo ou suposições que eu nunca entendi. Então, usei minhas pinturas para esclarecer e informar, mas também criar genuinamente um senso de empatia por esses homens – para realmente vê-los.
Fahamu Pecou: Acho que esse sentimento de “revolução em nossa vida” é algo que realmente ecoa com o movimento de hoje. Parece haver muito pouca paciência para a mudança – nós realmente queremos ver isso. Muitos de nós lidamos com promessas por muitos e muitos anos de nossos chamados líderes políticos e outros que continuaram tentando nos convencer a esperar a mudança acontecer, ou a ser pacientes com o processo, ou a permitir que justiça siga seu curso. E como vimos em vários desses tiroteios policiais, são apenas diferentes tipos de imposições, tipo parar e revistar, toda essa noção de justiça seguindo seu curso não está indo na direção em que nós estamos nos movendo.
Nova era, mesma voz
Emory Douglas: Às vezes, há pessoas na comunidade que se sentem fortes, mas podem não ser capazes de agir com força, então você demonstra isso na obra de arte. A arte é uma linguagem, comunicando-se com a comunidade. O senso de urgência demonstrado vem do que vimos e estamos fazendo. O fato era que poderíamos ser varridos do mapa a qualquer momento. A urgência na obra de arte era um reflexo da urgência da corrida cotidiana e do medo que as pessoas tinham. Você tinha que ser acessível à comunidade e interpretá-los na arte como fazer as pessoas heróis no palco. Há também um senso de urgência hoje, é claro, só se expressa de uma maneira diferente.
Jordan Casteel: Uma mulher mais velha e um homem mais velho falando sobre “Aproveite o tempo” é bastante fenomenal e revelador. O que significa sair da escravidão e agora tomar a própria voz? Diz: “Quero ser visto, quero ser ouvido”. Essas armas são símbolos de guerra e carnificina, sim. Mas a carnificina já ocorreu para os negros e continua a ocorrer.
Fahamu Pecou: Sendo um artista que brinca muito com o texto no meu trabalho, certamente sou atraído pelo uso do texto por Douglas. Para mim, as coisas que realmente se destacam são aquelas frases como “revolução em nossa vida” ou “aproveite o tempo”. O imediatismo dessas frases em relação à política na imagem é algo que realmente ecoa: o que precisa acontecer, o que queremos que aconteça, tem que acontecer – agora, não depois, não no relógio de outra pessoa, mas agora. É por causa das crianças. Em todas essas imagens, você sempre vê crianças. O broche que o irmão está usando na frente tem uma criança nele. Assim, a importância dessa noção de revolução é ressaltada por uma reflexão de como ela impactará nossas crianças. E eu acho isso muito poderoso.
Jordan Casteel: Eu falo sobre como eu cresci na época do Black Lives Matter e foi importante assim como minha mãe se lembra de seu afro e prende um adesivo “Free Angela” (Liberte Angela Davis) em sua geladeira. Estamos todos falando das mesmas coisas. Quando chegamos ao cerne disso intergeracionalmente, todos nós ainda estamos lutando pela mesma voz.
Sinais de esperança
Emory Douglas: Esta imagem era sobre esperança. Todos os dias estávamos em torno das crianças da comunidade e das escolas. Essas crianças eram filhotes de pantera que cresceram no partido, moravam em coletivos e foram para a escola alternativa, onde as crianças foram ensinadas a pensar e não o que pensar para que pudessem analisar por si mesmas e criticar por si mesmas. Portanto, esse espírito de crescimento, desenvolvimento e sobrevivência era o que se tratava. E eu queria refletir esse espírito na arte. Se os jovens pudessem continuar a obter conhecimento, sobreviveriam.
Jordan Casteel: Esse trabalho foi o que mais senti inicialmente, por causa desse desejo de compartilhar um exemplo de algo diferente, bonito e transformador. Acho que ambos desejamos, no final, transformar uma mentalidade ou um modo de pensar que tem sido destrutivo para nossas comunidades.
Fahamu Pecou: O poder do visual é realmente o que permite que algumas das mensagens do partido realmente interajam com as pessoas. Era mais do que retórica política. Foi uma ação clandestina, em um esforço para salvar, proteger e criar nossos filhos para serem adultos fortes, saudáveis e funcionais.
Jordan Casteel: Neste trabalho em particular, é incrível como Douglas projeta os raios do sol. Parecem raios de sol para mim por causa do botton circular de um menino no topo do chapéu; é tão reminiscente de um sol. Esses raios ascendentes geram, para mim, um começo ao invés de um fim. É um nascer do sol. Há muitas pistas de esperança. Emory manteve o minimalismo e a beleza do que criou. Ele fez algo do nada. Isso é real. Isso é limonada. E é por isso que somos artistas.