Artigo de Beatriz Nascimento retirado do livro organizado por Alex Ratts Uma História Feita por Mãos Negras.
Transcrição por Ian Cartaxo.
Certa vez, em Salvador, eu conversava com um jovem chefe de família que tentava convencer-me de como a Bahia era o maior centro de tolerância racial do mundo. Ao justificar tal pretensão para o seu estado, mostrou-se um adepto apaixonado da miscigenação e recorreu ao seu exemplo. Mostrou-me os dois filhos pequenos, ambos mulatos, mas com diferenças de tonalidade de pele, e disse: “Está vendo? Este aqui saiu quase como eu (referindo-se ao menino mais escuro), mas este já saiu melhor; quase louro”. Dizendo isso, enquanto eu e o primeiro menino olhávamos atônitos para ele, concluiu: “Desse jeito o negro vai desaparecendo e não teremos conflito racial como nos Estados Unidos”.
Talvez estejam nesse último ponto os mal-entendidos quanto à tolerância racial brasileira, e isso não parte somente de homens comuns como meu interlocutor baiano. Constitui uma crença nacional que, por não terem existido recentemente, na nossa experiência social, os fatos de racismo virulento típicos da sociedade norte-americana, nós somos os destinatários de um sistema racial digno de causar inveja às nações mais civilizadas do mundo. Mas o que dizer de uma aspiração tão estranha como essa do jovem pai baiano, cujo objetivo final seria o desaparecimento físico de um grupo, este mesmo em relação ao qual se credita total tolerância no Brasil?
A recente bibliografia sobre relações raciais no Brasil, basicamente a estrangeira, está permeada de exemplos como o que acabo de citar, exemplos nos quais se demonstra que a negação do preconceito racial, antes de constituir a reflexão consciente de nossa situação, traduz uma certa urgência de aliviar os possíveis conflitos decorrentes do confronto de poder entre as etnias que formam nossa sociedade. Tal receio criou, no dizer de um jovem sociólogo do Rio de Janeiro, uma autoimagem do sistema de relações raciais brasileiro como uma “democracia racial”.
O inferno
Não foi resultado do raciocínio simples do homem comum a emergência do ideal de “democracia racial” entre nós, nem o surgimento, entre outras soluções para o possível conflito, da miscigenação em massa. Sua origem pode remontar aos primeiros séculos da colonização; Antonil, nosso primeiro ideólogo, já dizia algo que ficou como máxima entre nós: “O Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos”[1]. E a partir dele, desde o marquês de Pombal (que em carta régia aconselhava os portugueses a se cruzarem com os nativos e as mulatas para aumentar o povoamento do Brasil) até o nosso baiano, pensa-se transformar o Brasil num “paraíso” no qual o mais cômodo é o desaparecimento total dos que vivem no “inferno”. Tal raciocínio é o ponto crucial de uma ideologia nacional responsável pelo espaço social degradante em que se encontra a massa de negros no Brasil.
Grande ideólogo, a quem se atribuiu o termo “democracia racial”, Gilberto Freyre[2], em recentes pronunciamentos, vangloriava-se de que o Brasil fica cada vez mais moreninho.[3] Cabe a ele não só obra pioneira desse tipo de ideologia como grande parte da crença na tolerância racial brasileira. Sua obra influencia sobremodo estudos científicos, notadamente de cientistas estrangeiros, como Frank Tannenbaum[4], que garante, baseado em Freyre, que no período da escravidão no Brasil os senhores reconheciam a “pessoa moral” do escravo; ou seja, o Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, possui uma tradição de valorização da humanidade do negro. O ponto alto desse comportamento seria o respeito aos direitos civis dos negros após a abolição, o que não sucedeu com os negros norte-americanos.
Acontece que, após a abolição da escravatura, nós não temos um negro no centro de decisões do país, quando, às vésperas daquele evento, tínhamos pelo menos três negros de grande poder nas duas casas do Congresso, enquanto nos Estados Unidos deu-se o inverso — hoje há cada vez mais negros atuando nos diversos setores da sociedade. A que se atribui essa defasagem? Seria pertinente perguntarmos qual a cotação do reconhecimento da nossa pessoa moral entre a atual sociedade brasileira? Creio que sim, pois a atitude de complacência, quando não de aversão, em relação à nossa participação no seio da comunidade nacional (condições visíveis na obra de Gilberto Freyre e na ideologia de democracia racial) nos remete ao passado, em que à nódoa da escravidão se vinculou o nosso destino de grupo, como uma nódoa nacional.
Após a abolição da escravatura, fomos integrados ao todo nacional, mas, sem dúvida, com a esperança simplória de, através do filtro das relações de casamento ou concubinato, irmos “melhorando a raça” até o ponto de a nação ficar cada vez mais moreninha e, com o auxílio da imigração europeia, cada vez mais branca.
Ceticismo
Mas é como conflito não manifesto que atualmente se encaram o preconceito e a discriminação racial no Brasil. Não dispomos de meios eficazes para ao menos reagir contra o preconceito de cor, muito menos para irmos de encontro à discriminação gritante nos terrenos da educação e do mercado de trabalho, perpetuando-se, enquanto isso, opções do tipo jogador de futebol e sambista para aqueles que lutam por uma ascensão social.
Mediante mecanismos seletivos, a sociedade brasileira reduz o espaço dedicado ao negro dentro da escala social. Uma vez que esse espaço se apresenta como parte incorporada à cultura dos negros, nada mais cômodo do que unir o útil ao agradável. Quando se questionar a ausência do negro em posições de relevo social, basta mencionar Pelé ou algum dos poucos sambistas atualmente em boas condições financeiras. Quanto à grande maioria marginalizada, o mais fácil será recorrer à explicação econômica ou de classe, não esquecendo a herança escravagista, que, segundo alguns eminentes teóricos, faz do negro um ser ainda não preparado para integrar uma sociedade competitiva.
Entretanto, nós, os negros, vamos acompanhando esse poço de contradições e esse emaranhado de sutilezas com uma visão bastante cética. Lá se vão noventa anos de abolição da escravatura, e não consta que os imigrantes que vieram nos substituir na lavoura cafeeira estivessem mais aptos a entrar numa sociedade capitalista (que ainda não se tinha formado por volta de 1930) do que nós. Por meio de que milagre sua situação social ficou melhor que a nossa? Se somos parte integrante de uma democracia racial, por que nossas oportunidades sociais são mínimas em comparação com os brancos? A resposta nos parece clara, embora discorrer sobre os fatores que nos levaram a isso constitua ainda hoje um tabu, e (o mais sério) esbarramos com um total despreparo para enfrentar os problemas advindos da prática da discriminação. Despreparo cuja origem está principalmente na falta de oportunidades no terreno da educação, o que reduz nossa capacidade de organização em torno do objetivo comum. Essa impotência parece legitimar a crença num sistema de relações raciais pacífico, reforçando a ideologia de “democracia racial”.
Entretanto, não vemos tudo perdido, pois a duras penas já possuímos consciência, principalmente entre as novas gerações dos principais centros urbanos, de que as soluções apressadas e simplórias, como a da maior miscigenação, não são verdadeiras. É necessário muito mais que isso. Marvin Harris, em seu trabalho Padrões raciais nas Américas, diz uma frase esclarecedora: “Já é tempo de as pessoas adultas deixarem de pensar em relações raciais de acordo com a cama”[5]. E demonstra estatisticamente como Estados Unidos e África do Sul possuem tão ou maior contingente de mestiços do que o Brasil.
É certo que não podemos colocar no mesmo plano a sociedade brasileira e a sul-africana. Realmente não tivemos a experiência do gueto e dos linchamentos, mas nem por isso nossa situação é ideal. Desse modo, cabe lembrar às consciências de brancos e negros no Brasil uma frase que só o gênio de Lévi-Strauss poderia produzir: “A tolerância não é uma posição contemplativa dispensando indulgências ao que foi e ao que é, é uma atitude dinâmica, que consiste em prever, em compreender e em promover o que quer ser”[6]. Portanto, resta começar a tolerar.
[1] ANTONIL, A. J. Cultura e opulência no Brasil. São Paulo: Melhoramentos; MEC, 1976.
[2] Freyre, G. Casa-Grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
[3] “Gilberto Freyre usa o termo ‘“moreno”’ em diversas obras e matérias jornalísticas, como é o caso do depoimento a Gervásio Campos Gomes: “O brasileiro típico — crescentemente moreno em vários graus de morenidade, mas não todo ele moreno — não se identifica, nem se apresenta, como descendente ou como componente desta ou daquela etnia dentre as que vêm formando a sociedade ou a população brasileira” (Jornal do Brasil, 15 maio 1977, Caderno Especial, p. 2).” (N. O.)
[4] TANNENBAUM, F. Slave and Citizen: The Negro in the Americas. Nova York: Alfred Knopf, 1947.
[5] HARRIS, M. Padrões raciais nas Américas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
[6] LÉVI-STRAUSS, C. Raça e história. Lisboa: Presença, 1973.