Mary Inman – O Papel da Dona de Casa na Produção Social

Originalmente publicado no site Viewpoint Magazine.

Tradução por Thiago Papageorgiou.


Introdução

A imprensa de esquerda contemporânea americana frequentemente discute as teses das feministas italianas dos anos 70 em defesa do caráter produtivo do trabalho doméstico. No entanto, este argumento já havia sido feito um pouco mais perto de casa. Em 1936, a companheira de viagem e eventual membra do Partido Comunista dos EUA Mary Inman, que tinha raízes nos meios da IWW e no Partido Socialista, redigiu um grande manuscrito que analisava as teorias antropológicas das diferenças sexuais, os discursos populares em torno da feminilidade e o papel econômico do trabalho doméstico. O manuscrito foi rejeitado pelo PCEUA, mas porções foram publicadas em folhetim no diário People’s World, sediado em San Francisco, e eventualmente publicado como livro em 1940 com o título de In Woman’s Defense [Em Defesa da Mulher]. Sua conclusão teórica era radical e declarava explicitamente: “Passamos então a notar a importância social do trabalho de 22 milhões de donas de casa e sua relação atual com a produção de mercadorias. E vemos o quanto a crença de que a dona de casa se tornou insignificante para o sistema produtivo quando o lar deixou de ser o principal local de produção que fora outrora é errônea. Dizemos principal e não único pois a mercadoria mais valiosa de todas ainda é produzida ali: a Força de Trabalho”.

Ao passo que a teoria de Inman foi articulada no linguajar da Frente Popular com grande ênfase nas mulheres da classe média, ela provocou, não obstante, um debate amargo combatido nas polêmicas oficiais do PC por Avram Landy, que insistia que as mulheres não tinham interesses especiais além da neutralidade de gênero do socialismo. O resto do livro de Inman, junto de uma contrapolêmica, foi publicado como Woman-Power em 1942, seguido em 1943, por sua vez, pelo livro Marxism and the Woman Question [Marxismo e a Questão da Mulher], de Landy. Completamente marginalizado pelo PC, do qual acabou saindo, Inman vislumbrou uma nova organização para mulheres chamada de “União dos Trabalhadores da Produção da Força de Trabalho” e participou do movimento “antirrevisionista” que rachou do Partido no final dos anos 40. Em um panfleto extraordinário de 1949 chamado 13 Years of CPUSA Misleadership on the Woman Question [13 Anos da Má Liderança do PCEUA na Questão da Mulher], Inman traçou linhas de demarcação que haviam sido atenuadas no período anterior, expondo a cumplicidade entre o reducionismo econômico e o reformismo identitário no PCEUA. Ao apagar o papel econômico do trabalho feminino e ao naturalizar o fenômeno social da maternidade, o Partido reduziu a “luta [de massas] contra a opressão capitalista das mulheres” à contestação ideológica da “superioridade masculina”. O socialismo, separado da agência das mulheres da classe trabalhadora se tornou pouco mais que uma política abstrata a ser implantada de cima aliada à burguesia progressista, inclusive as organizações de mulheres burguesas.

Inman continuou a desenvolver estes temas até a obra de 1964 The Two Forms of Production in Capitalism [As Duas Formas de Produção no Capitalismo]. Apresentamos aqui um ensaio de In Woman’s Defense.

O Papel da Dona de Casa na Produção Social

Nenhum trabalhador de nenhum grupo teve sua importância tão ignorada e negada como as donas de casa dos dias de hoje.

Pelo fato de as tarefas produtivas antes realizadas no lar agora serem realizadas noutro lugar, o trabalho das donas de casa agora é tão subestimado que em certos lugares se considera que elas levam uma vida boa e são parasitas.

Além dessa noção errônea, e, aparentemente reforçando-a, está o fato de que 22 milhões de donas de casa que trabalham apenas em casa e realizam todo seu trabalho não possuem remuneração ou renda própria e são obrigadas a depender do dinheiro recebido por seus maridos para sua alimentação, suas roupas e moradia.

Agora, este sustento que o marido dá a sua esposa vem da produção e, se essa esposa não é útil, na verdade indispensável aos donos da indústria, por que eles permitem que 22 milhões de mulheres subsistam com os proventos da indústria? Não é possível que não tenham consciência de que estas 22 milhões de mulheres, que não são diretamente produtivas, estão lá.

E esta classe proprietária é conhecida por sua capacidade de explorar a harmonia da população de alguma maneira. Insistem tanto para que pessoas trabalhem para eles que até mesmo perseguem aqueles a quem recusam contratar, pois estão desempregados, como demonstram a maior parte dos processos de vadiagem.

Por que então os divulgadores pagos desta classe proprietária não atacam este arranjo de 22 milhões de donas de casa que são sustentadas com os recursos da indústria em vez de o louvarem e o envolverem com mantas moralistas?

Só pode haver uma resposta. Sob certas condições, isso lhes favorece. Sob certas condições, é incontornável.

Uma peculiaridade muito marcante de certas tendências das teorias sobre a mulher e sobre o que é chamado de trabalho feminino é que este trabalho foi descrito e, então, noutro lugar, geralmente afastado deste, vastas generalizações foram feitas em referência à subjugação da mulher como parte do sistema de exploração do trabalho humano, mas estas duas coisas não foram conectadas adequadamente.

É meio como se as florestas fossem descritas e, numa seção separada, as árvores também fossem descritas, mas toda a questão fosse deixada de uma forma tão desconexa que nenhuma parece ter relação alguma com a outra; as árvores não pareciam estar na floresta e a floresta não era uma coletividade de árvores.

Ilustremos melhor este argumento. O trabalho de um cozinheiro numa colônia de desflorestamento é parte necessária da produção de madeira. O serviço de todos os cozinheiros em todos os acampamentos, restaurantes e refeitórios em que trabalhadores produtivos são alimentados são parte necessária da produção. E, pelo mesmo motivo, o trabalho dos cozinheiros nos lares dos trabalhadores produtivos também é, atualmente, parte necessária da produção.

O trabalho de uma mulher que cozinha para seu marido que está fabricando pneus na fábrica da Firestone em Southgate, Califórnia, essencialmente faz tanto parte da produção de pneus automotivos quanto os cozinheiros e garçonetes lanchonetes nas quais os trabalhadores da Firestone comem.

E todas as esposas de todos os trabalhadores da Firestone desempenham, por meio do trabalho social necessário que realizam no lar, um papel na produção dos Pneus Firestone e seu trabalho está tão indissociavelmente ligado àqueles pneus quanto o trabalho de seus maridos.

Qualquer pessoa pode multiplicar esta ilustração pelos produtos produzidos pela Republic Steel, pela Standard Oil, por Henry Ford, etc., e sempre obterá a mesma resposta: o trabalho das esposas é um serviço necessário na criação dos produtos nestas fábricas.

O trabalho dos trabalhadores nas lavanderias que lavam roupas para trabalhadores produtivos é necessário ao sistema de produção. Empregadas e porteiros que varrem os pisos, fazem as camas e limpam os quartos em pensões ou acampamentos nos quais trabalhadores produtivos dormem e descansam para que eles possam se preparar para retornar ao trabalho no dia seguinte são um elo necessário no processo produtivo.

E, da mesma maneira, o trabalho das donas de casa nos lares dos trabalhadores produtivos que realizam os serviços de manter as roupas lavadas e as camas e pisos limpos também é uma parte indispensável da produção.

Pessoas que trabalham em casas nas quais crianças são alojadas e treinadas ou ensinadas estão realizando um serviço útil e seu trabalho é indispensável para o método atual de produção e distribuição. E, por um motivo parecido, milhões de mulheres em lares, que fazem a maior parte desse trabalho, estão prestando um serviço indispensável para o método atual de produzir e distribuir mercadorias.

Para que haja lucros, mercadorias devem não só ser produzidas, mas distribuídas. Tanto a produção como a distribuição são complexas e estão inseparavelmente ligadas à comunicação e ao transporte e possuem tentáculos que se estendem às escolas e a quase toda fase legítima da atividade humana.

A dona de casa não cozinha por oito ou nove horas como o cozinheiro do acampamento, nem lava e passa por uma quantidade de horas determinada como o trabalhador da lavanderia, nem arruma camas por certas horas como a empregada no hotel ou na casa de cômodos, nem ensinam e alimentam e cuidam de crianças, futuras trabalhadoras produtivas, um número determinado de horas como professores e trabalhadores em creches e escolas, porém a dona de casa realiza todas estas tarefas – e mais – por horas ilimitadas e não especificadas todos os dias, toda semana e todo mês por anos.

Se fosse possível manter o cozinheiro homem no acampamento madeireiro numa posição econômica subordinada, diretamente sob outro trabalhador e se exigisse que esse trabalhasse não 9 horas, mas um número indefinido, de 10 a 12 horas ou mais, e a ele não se pagasse nada diretamente e ele extraísse seu sustento do pouco dinheiro extra pago ao trabalhador acima dele e então se referisse a ele desdenhosamente como “sustentado”, é fácil perceber que este empregador enriqueceria ainda mais pelo status reduzido e pelo aumento da jornada do cozinheiro.

E que os donos coletivos da indústria, os Hearst, os Rockefeller, os du Pont, os Ford e os Morgan se beneficiam de maneira parecida com o trabalho barato das donas de casas coletivas e a degradação econômica e social que resulta disso. Ademais, a dependência da esposa também é um meio de amarrar o homem e de atingir os filhos a ele subordinados.

E o que dizer do trabalho doméstico que as mulheres de classe média realizaram no capitalismo em desenvolvimento, limpando, cozinhando, passando roupas, esfregando e lavando roupas e louça? Temos que considerar o trabalho da maioria destas mulheres também como necessário ao sistema de produção e distribuição.

É verdade que algumas delas contratavam meninas, mas em muitos desses casos, a própria dona de casa realizava uma grande parte do trabalho útil. Acreditamos que a maioria das mulheres daquilo que se chama normalmente de classe média não obtinham seu sustento parasitando a sociedade, mas realizavam trabalho socialmente útil e necessário.

Por que era útil e por que era necessário? Porque em dado estágio de desenvolvimento do capitalismo, a classe média era uma parte indispensável do sistema de manufatura e distribuição de mercadorias. Estas pessoas com pequenos investimentos de capital eram úteis aos grandes capitalistas, os quais ainda não haviam chegado às lojas de departamento e às cadeias de lojas e a produção e distribuição de massa.

Quando o feudalismo foi derrubado pelo capitalismo, o novo sistema no processo de revolucionar a produção e que se espalhava pelo mundo utilizava milhões de pequenos produtores e distribuidores.

E até que os grandes capitalistas tivessem o tempo e a oportunidade de se expandir por toda a Terra com combinações monopolistas e imperialistas e empresas interligadas, bancos, empréstimos e juros comerciais, centenas de milhares de lojas pequenas e fábricas com administração individual, com o próprio gerente trabalhando, foram necessárias nos Estados Unidos e mais milhões em lugares por todo o mundo.

Esta classe média ajudou a construir e a desenvolver o sistema de máquinas atual. Durante a construção, os maiores capitalistas se beneficiaram ao recolher, desta classe média, tributos na forma de aluguéis, juros, impostos e de várias outras maneiras.

No entanto, apesar de este tributo ter crescido em espécie e quantidade com os anos, isso não satisfez os grandes capitalistas que queriam posses em cada vez mais casos e não só queriam essas propriedades como as tomaram.

E, em tempo, capitalistas monopolistas-financeiros, com sua posição avantajada na política e o poder crescente do controle das riquezas através do financiamento e da produção de bens e da venda destes mais barato, praticamente destruíram a classe média outrora numericamente grande.

As lojas e fábricas pequenas e de propriedade e operação individuais se tornaram obsoletas e não conseguiam competir com empreendimentos sempre crescentes que não eram limitados por pequenos investimentos de capital. Tal método de produção e distribuição realmente era do arco-da-velha, útil em seu contexto histórico.

Então, a dona de casa da classe média, que realizava trabalho doméstico para um marido empenhados nesse trabalho de produção e distribuição, ou para filhos[1] empenhados nesses trabalhos, ou para filhos que já eram ou estavam se preparando para se tornar técnicos, engenheiros ou professores para os capitalistas, ou para filhas que viriam a se tornar as esposas trabalhadoras dos homens assim empregados; essas donas de casa de classe média cumpriam um papel socialmente útil em seu trabalho cotidiano e contribuíam para a construção cumulativa do grande processo fabril que é os Estados Unidos moderno.

Donas de casa tanto da classe média como das classes trabalhadoras ajudaram a criar esta riqueza que é os Estados Unidos de hoje e parte disso pertence a elas por direito de labuta.


[1] Há um claro erro de digitação no documento que serviu de base para esta tradução, no qual se lê “songs” [canções] em vez de “sons” [filhos]; corrijo aqui a fim de manter a leitura fluida. [n. t.]

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