Muitos ativistas já ouviram falar do termo “interseccionalidade” ser debatido na esquerda e tiveram dificuldades em defini-lo – e por uma razão muito bem compreensível. Diferentes pessoas explicam o conceito de formas diferentes e, portanto, estão muitas vezes falando em objetivos cruzados.
Por essa razão – junto ao fato de ser uma palavra de sete silabas – a interseccionalidade pode aparecer como uma abstração com apenas uma vaga relação com a realidade material. Seria um erro, entretanto, descartar o conceito logo de imediato.
Há duas interpretações o mínimo distintas sobre a interseccionalidade: uma desenvolvida por feministas negras e outras por aqueles que vem de uma parte “pós-estrutural” do pós-modernismo. Eu quero tentar deixar claro essas diferenças neste artigo e explicar porque a tradição feminista negra avança no projeto de construir um movimento unificado para combater todas as formas de opressão, o qual é central para o projeto socialista – enquanto no pós-estruturalismo isso não acontece.
Um conceito, não uma teoria
Eu quero começar deixando algumas coisas claras.
Primeiro a interseccionalidade é um conceito, não uma teoria. É uma discrição de como as diferentes formas de opressão – racismo, sexismo, LGBTQfobia e outras expressões – interagem entre si e são fundidas em uma única experiência.
Então as mulheres negras, por exemplo, não estão “duplamente oprimidas” – isto é, oprimidas por diferentes experiências de racismo, já que o mesmo afeta homens negros, além do sexismo, que também afeta mulheres brancas – mas o racismo afeta o modo como as mulheres negras são oprimidas como mulheres e também como negras.
Interseccionalidade é um outro jeito de descrever a “simultaneidade de opressões”, “opressões sobrepostas”, “opressões interligadas” ou qualquer outro termo que as femininas negras utilizaram para descrever a intersecção de raça, classe e gênero.
Como a feminista negra e acadêmica Barbara Smith argumentou em 1983 no seu livro Home Girls: A Black Feminist Anthology: “O conceito da simultaneidade de opressões é o ponto chave do entendimento do feminismo negro sobre a realidade política, e eu acredito, que também é uma das mais significantes contribuições ideológicas do pensamento do feminismo negro.”
Porque a interseccionalidade é um conceito (uma descrição da experiência de múltiplas opressões, sem explicar suas causas) em vez de uma teoria (a qual tenta explicar as raízes das formas de opressão), ela pode ser aplicada junto a diferentes teorias sobre a opressão – teorias com base no marxismo ou pós-modernismo, mas também separatismo, etc.
Porque o marxismo e o pós-modernismo são muitas vezes antitético, seus usos específicos do conceito de interseccionalidade podem ser muito diferentes e podem ser utilizados em caminhos muito variáveis e contrários.
O marxismo explica todas as formas de opressão como enraizadas na sociedade de classes, enquanto as teorias derivadas do pós-modernismo rejeitam essa ideia como “essencialista” e “reducionista”. É por isso que vários marxistas foram desdenhosos ou hostis ao conceito de “interseccionalidade” sem distinguir entre seus fundamentos teóricos que competem sobre o conceito: feminismo negro ou pós-modernismo / pós-estruturalismo.
A tradição do feminismo negro
É importante entender que o conceito de interseccionaldiade foi primeiramente desenvolvido por feministas negras, não pelos pós-modernos.
O feminismo negro tem uma longa e complexa história, baseada no reconhecimento de que o sistema de escravidão e, desde então, o racismo moderno e a segregação racial fizeram com que as mulheres negras sofressem de formas que nunca foram experienciadas pelas mulheres brancas.
Em 1851, Sojourner Truth fez seu famoso discurso “Não sou uma mulher?” Na Convenção das Mulheres em Akron, Ohio. Esse discurso tinha como objetivo enfatizar as sufragistas brancas de classe média que a opressão de Truth como ex-escrava negra não tinha nada em comum com a experiência das mulheres brancas de classe média.
A verdade contrastava sua própria opressão como mulher negra, sofrendo com a brutalidade física e degradação, horas intermináveis de trabalho forçado e não pago, e dando à luz bebês apenas para vê-los serem forçados à escravidão.
Mais de um século antes da jurista negra e feminista Kimberle Williams Crenshaw cunhar o termo interseccionalidade em 1989, o mesmo conceito era usualmente descrito com outros termos similares, entre eles “opressões sobrepostas”, “opressões interligadas”, etc.
O feminismo negro também contem uma forte ênfase nas diferenças de classes que existem entre as mulheres, porque a vasta maioria da população negra nos EUA sempre fez parte da classe trabalhadora, e desproporcionalmente vivia na pobreza, devido as consequências econômicas do racismo.
O ensaio de Crenshaw de 1989, “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: : A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”, que introduziu o termo interseccionalidade, presta homenagem ao discurso de Sojourner Truth.
“Quando Sojourner Truth se levantou para falar”, escreve Crenshaw, “muitas mulheres brancas insistiram para que ela fosse silenciada, temendo que ela desviasse a atenção do sufrágio feminino para [a abolição da escravidão]”. Crenshaw continua a perguntar no contexto moderno: “Quando a teoria feminista e a política que alegam refletir as experiências das mulheres e as aspirações das mulheres não incluem nem falam com as mulheres negras, as mulheres negras devem perguntar: ‘Não somos mulheres?’”

Feminismo negro de esquerda
É importante também reconhecer como feminismo negro sempre conteve uma analise de esquerda, incluindo a sobreposição entre algumas feministas negras e o Partido Comunista no meio para o final do século 20. Lideres do Partido Comunista como Claudia Jones e Angela Davis, por exemplo, ambas desenvolveram o conceito da opressão das mulheres negras como a interligação das experiências de raça, gênero e classe.
Em 1949, Claudia Jones escreveu um importante ensaio chamado, “Um fim para a negligencia dos problemas das mulheres negras!” no qual ela argumentava: “mulheres negras – como trabalhadoras, como negras, como mulheres – são as partes mais oprimidas da população.”
Nesse ensaio, Jones enfatiza a questão da agressão sexual como uma questão racial para as mulheres negras:
“Nenhuma pessoa dramatiza tanto o status de mulher negra, como o caso de Rosa Lee Ingram, mãe viúva de catorze filhos – dois deles mortos – que enfrenta prisão perpétua em uma prisão da Geórgia pelo “crime” de se defender dos avanços indecentes de um “supremacista branco”. […] Ela expõe o álibi hipócrita dos linchadores da masculinidade negra que historicamente se esconderam por trás das saias das mulheres brancas quando tentam encobrir seus crimes imundos com o “cavalheirismo” de “proteger a feminilidade branca”.”
Este tema – que o abuso sexual não é somente uma questão relacionada a mulher, mas é também uma questão de raça na sociedade norte-americana – Foi depois expandida por Angela Davis, a qual o seu longo compromisso com as lutas contra todas as formas de exploração e opressão, incluindo o injusto sistema racista, é bem conhecida.
Em 1981, Davis escreveu em Mulheres, Raça e Classe que o estupro “teve um tóxico componente racial nos Estados Unidos desde o tempo da escravidão como uma arma chave para a manutenção do sistema da supremacia branca.” Ela descreve o estupro como “uma arma de dominação, uma arma de repressão, que o seu verdadeiro objetivo era extinguir a vontade das escravas de resistir, e no processo, desmoralizar seus homens.”
O estupro institucionalizado de mulheres negras sobreviveu a abolição da escravidão e tomou uma forma moderna, de acordo com Davis: “Estupros coletivos, perpetrados pela Ku Klux Klan e outras organizações terroristas do período posterior à Guerra Civil, tornaram-se uma arma política clara no esforço para inviabilizar o movimento pela igualdade negra.”
A caricatura do inesgotável desejo do predador sexual negro de estuprar virtuosas mulheres brancas do sul tinha uma “companhia inseparável”, escreve Davis: “a imagem da mulher negra como cronicamente promíscua… Vistas como ‘mulheres soltas’ e vadias, os gritos das mulheres negras dizendo que estão sendo estupradas não valiam nada.”
Mesmo em 1970, muitas feministas brancas – talvez a mais famosa, Susan Brownmiller em seu livro Against Our Will: Men, Women and Rape [Contra nossa vontade: homens, mulheres e estupro], descreveu o estupro como exclusivamente uma luta entre homens e mulheres.
Essa estrutura política levou Brownmiller a ter conclusões abertamente racistas em seu relato do linchamento de Emmett Till em 1955 – o menino de 14 anos de idade que vivia no Mississipi na época das leis Jim Crow que foi sequestrado, torturado e baleado pelo “crime” de supostamente assobiar para uma mulher branca casada.
Apesar do linchamento de Till, Brownmiller descreve Till e seu assassino como compartilhando o mesmo poder sobre a “mulher branca” – usando estereótipos que Davis chamou de “a ressuscitação do velho mito racista do estuprador negro”.
Há vários outros jeitos no qual a experiência da opressão das mulheres se difere entre mulheres de diferentes raças e classes.
O movimento feminista hegemônico dos anos 60 e 70 demandavam o aborto com base no direito da mulher de terminar uma gravidez indesejadas. Isto é, claro, um direito crucial para todas as mulheres – qual sem as mulheres não teriam a esperança de serem iguais aos homens.
Ao mesmo tempo, no entanto, o movimento hegemônico focava quase que exclusivamente no aborto, quando a historia dos direitos reprodutivos fez essa questão muito mais complicada para mulheres negras e outras mulheres de cor, – que historicamente foram vitimas de abusos relacionados a esterilização compulsória.
O Coletivo Combahee River
A lição crucial nesses exemplos é que não pode haver nenhuma coisa como uma simples “questão das mulheres” no sistema capitalista que é fundado na escravidão de Africanos, no qual o racismo se mantém nas entranhas das fundações e instituições. Quase toda chamada questão “das mulheres” tem um componente racial.
Durante os anos de 1960 e 1970, havia um forte movimento de esquerda entre as feministas negras – melhor ilustrado pelo Coletivo Combahee River, um grupo de lésbicas negras feministas de Boston. Elas se identificavam como “marxistas”, argumentavam no seu manifesto em 1977:
Nós somos socialistas porque nós acreditamos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo daqueles que trabalham e criam os produtos, e não para o benefício de seus patrões, Os recursos materiais devem ser distribuídos igualmente entre aqueles que criam esses recursos.
Nós não estamos convencidas, entretanto, que uma revolução socialista que não é feminista e antirracista irá garantir a nossa libertação… Porem estamos num acordo essencial com a teoria de Marx em sua aplicação a explicação das relações econômicas que ele analisou, nós sabemos que a análise dele deve ser estendida ainda mais para podermos compreender melhor nossa especifica situação econômica como mulheres negras.
Há um muito razoável ponto de vista que parece ser um senso comum para a maioria das pessoas na esquerda hoje em dia. O Coletivo Combahee River não defendia o separatismo, como alguns marxistas concluíram erroneamente.
Barbara Smith, uma das fundadoras do Coletivo Combahee River, argumentou em uma entrevista em 1984 para o livro This Bridge Called My Back [A ponte chamada minhas costas], para ser ter uma estratégia de “crescimento coalesceste” em vez de um “separatismo racial”. Ela disse que “qualquer separatismo é uma rua sem saída… Não há nenhum caminho que um grupo oprimido ira acabar com sistema por si mesmo. Formar coalizões de princípios em torno de questões específicas é muito importante ”.
É importante desafiar a ideia defendida por muitos críticos – alguns marxistas entre eles – de que o conceito feminista negro de interseccionalidade é apenas sobre a experiência do racismo, sexismo e outras formas de opressão em um nível individual.
A tradição feminista negra sempre esteve ligada à luta coletiva contra a opressão – contra a escravidão, a segregação, o racismo, a brutalidade policial, a pobreza, o abuso da esterilização, a violação sistemática de mulheres negras e o linchamento sistemático de homens negros.
Talvez a lição mais importante que podemos aprender com o Coletivo Combahee River é que quando construirmos o próximo movimento de massas para a libertação das mulheres – esperamos que em breve – que ele não se baseie nas necessidades dos menos oprimidos, mas nas necessidades daqueles que são os mais oprimidos – o que é realmente o coração de tudo que significa a solidariedade.

Mas a interseccionalidade é um conceito para entender a opressão, não a exploração. Muitas feministas negras reconhecem as raízes sistêmicas do racismo e do sexismo, mas colocam muito menos ênfase do que os marxistas na conexão entre o sistema de exploração e opressão.
O marxismo é necessário porque ele dá uma base para o entendimento da relação entre opressão e exploração e também identifica o agente para a criação de condições materiais e sociais que irão tornar possível o fim tanto da opressão quanto da exploração: a classe trabalhadora.
Os trabalhadores não tem apenas o poder para acabar com o sistema, mas também tem para substitui-lo por uma sociedade socialista, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção. Embora outros grupos da sociedade sofram opressão, somente a classe trabalhadora possui esse poder coletivo.
Assim, o conceito de interseccionalidade precisa da teoria marxista para realizar o tipo de movimento unificado que é capaz de acabar com todas as formas de opressão. Ao mesmo tempo, o marxismo só ira se beneficiar com a integração do feminismo negro de esquerda em nossa própria política e prática.
A rejeição pós-moderna da “totalidade”
Até o momento, eu tentei mostrar como o conceito de interseccionalidade, ou interligação das opressões, era enraizado na tradição do feminismo negro por um longo período de tempo – e que esse conceito também é compatível com o marxismo.
Agora eu quero virar para o pós-modernismo, e o contraste da interpretação pós-moderna de interseccionalidade com o antigo conceito do feminismo negro.
Para deixar claro: não há dúvidas que o pós-modernismo avançou nas lutas contra todas as formas de opressão, incluindo as opressões experiências pelas pessoas trans, aquelas pessoas que sofrem de deficiências, e várias outras formas de opressão que eram negligenciadas antes das teorias pós-modernas começarem a florescer nos anos de 1980 e 1990.
O teórico literário britânico Terry Eagleton descreveu a “realização mais duradoura” do pós-modernismo como “o fato de ter ajudado a colocar questões de sexualidade, gênero e etnia tão firmemente na agenda política que é impossível imaginá-las sendo apagadas sem uma luta onipotente”.
Ao mesmo tempo, no entanto, o pós-modernismo também surgiu como uma rejeição geral da generalização política, e categorias de estruturas sociais e realidades materiais, referidas como “verdades”, “totalidades” e “universalidades” – em nome da defesa de “anti-essencialismo”. (Para se ter certeza, tal rejeição geral da generalização política é em si uma generalização política – que é uma contradição inerente ao pensamento pós-moderno!)
Pós-modernos colocam uma enorme ênfase nas limitadas, parciais, subjetivas características das experiências individuais das pessoas – rejeitando uma estratégia coletiva na luta contra as instituições de opressão e exploração, em vez disso, focam nas relações individuais e culturais como a questão central da luta.
Não é uma coincidência que o pós-modernismo floresceu no mundo da academia logo após o declínio os movimentos sociais e de classe das décadas de 1960 e 1970 – e junto a ascensão do ataque neoliberal da classe dominante.
Alguns dos acadêmicos envolvidos na ascendência do pós-modernismo eram veteranos radicais dos anos 60 que perderam toda a fé na possibilidade da revolução. Eles foram acompanhados por uma nova geração de radicais muito jovens para ter experienciado os tumultos dos anos 60, mas que foram influenciados pelo pessimismo daquele período. Nesse contexto, o marxismo era visto como uma teoria “reducionista” e “essencialista” pelos acadêmicos que se chamavam a si de pós-modernos, pós-estruturalistas e pós-marxistas.
Dentro da ampla categoria teórica do pós-modernismo, o pós-marxismo forneceu uma nova estrutura teórica a partir dos anos 80. Dois teóricos pós-marxistas, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, publicaram o livro Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics [A hegemonia e a estratégia socialista: Rumo a uma política democrática radical] em 1985.
Laclau e Mouffe explicam sua teoria como uma negação da “totalidade” socialista: “Não existem, por exemplo, vínculos necessários entre o anti-sexismo e o anticapitalismo, e uma unidade entre os dois só pode ser o resultado de uma articulação hegemônica. Segue-se que só é possível construir essa articulação com base em lutas separadas […] Isso requer a autonomização das esferas de luta ”.
Este é um argumento para a separação das lutas. Tais lutas “flutuantes” deveriam, portanto, ser conduzidas inteiramente dentro do que os marxistas descrevem como a superestrutura da sociedade, sem relação com sua base econômica.
Além disso, o conceito de Laclau e Mouffe da “autonomização das esferas de luta” não é apenas que cada luta é limitada a combater apenas uma forma particular de subordinação dentro de um domínio social particular, mas que nem precisa envolver mais de um outra pessoa além de você. Eles afirmaram isso explicitamente: “Muitas dessas formas de resistência se manifestam não na forma de lutas coletivas, mas através de um individualismo cada vez mais armado”.
Essas passagens mostram claramente como a ênfase se moveu para longe da solidariedade entre os movimentos, e que também se moveu das lutas coletivas para lutas individuais, interpessoais. Desse modo, relações interpessoais se tornar os pontos chaves para a luta, baseado-se nas percepções subjetivas no qual o indivíduo esta numa posição de “dominação” e que está em uma posição de “subordinação” em qualquer situação particular.
Em 1985, o teórico queer Jeffrey Escoffier sumarizou: “As políticas identitárias devem ser também políticas de diferença… Políticas de diferença que se afirmam limitadas, parciais.”
Pós-estruturalistas se apropriaram do termo como “políticas identitárias” e “diferença” que se originaram no feminismo negro dos anos 70.
Quando o Coletivo Combahee River referenciava as políticas identitárias, por exemplo, elas estavam descreve a identidade grupal das mulheres negras; quando elas enfatizavam a importância de reconhecer as diferenças entre as mulheres, elas estavam se referindo a coletiva invisibilidade das mulheres negras dentro de um feminismo predominantemente branco e de classe media daquele tempo.
Mas existe um mundo de diferença entre a identidade social – se identificar como parte de um grupo social – e a identidade individual. A concepção pós-estruturalista de “identidade” é baseada na dos individuais, enquanto a “diferença” também pode se referir a qualquer característica que distingue um indivíduo dos outros, seja ele relacionado à opressão ou simplesmente não-normativo.
É importante notar que a feminista negra Kimberle Williams Crenshaw, escrevendo em 1990, falou sobre a “versão do anti-essencialismo, encorpada no que pode se chamar de uma versão vulgarizada da tese de construção social, [na qual] diz que já que todas as categorias são construidas socialmente, não há algo como, podemos dizer, ‘negros’ ou ‘mulheres’, e portanto faz pouco sentido continuar reproduzindo essas categorias ao se organizar em volta delas.”
Em contrapartida, ela argumentou: “Uma resposta inicial a essas questões requer que primeiro reconheçamos que os grupos de identidade organizados nos quais nos encontramos são de fato coalizões, ou pelo menos coalizões potenciais à espera de serem formadas.”
Ela concluiu: “Neste ponto da história, pode-se argumentar que a estratégia de resistência mais crítica para grupos sem poder é ocupar e defender uma política de localização social do que desocupá-la e destruí-la”.
Identidade “Individual” vs Identidade “Social”
Este é o modo como o conceito de interseccionalidade, primeiro se desenvolveu dentro da tradição do feminismo negro, e mais recentemente emergiu dentro do contexto do pós-modernismo.
Embora o feminismo negro e algumas correntes da teoria pós-moderna compartilhem algumas suposições comuns e linguagem comum, elas são ofuscadas por diferenças fundamentais que as tornam duas abordagens distintas para combater a opressão. Assim, o conceito de interseccionalidade tem dois fundamentos políticos diferentes – um informado principalmente pelo feminismo negro e o outro pelo pós-modernismo.
A evolução mais recente da abordagem pós-estruturalista as políticas identitárias e à interseccionalidade, que tem uma forte influência sobre a geração atual de ativistas, coloca uma enorme ênfase na mudança do comportamento individual como a maneira mais eficaz de combater a opressão.
Isso deu origem à ideia de indivíduos “chamando” (calling out) atos interpessoais de opressão percebida como um ato político crucial. Mais geralmente, a interseccionalidade em termos pós-modernos, mesmo entre aqueles que não têm ideia do que é pós-modernismo.
Como o estudioso marxista Kevin Anderson recentemente argumentou:
No final do século XX, um discurso teórico da interseccionalidade tornou-se quase hegemônico em muitos setores da vida intelectual radical. Nesse discurso, que dizia respeito a questões e movimentos sociais em torno de raça, gênero, classe, sexualidade e outras formas de opressão, dizia-se frequentemente que deveríamos evitar qualquer tipo de reducionismo de classe ou essencialismo em que gênero e raça são incluídos na categoria de classe… No máximo, dizia-se, os movimentos em torno da raça, gênero, sexualidade ou classe podem se cruzar, mas não podem se unir facilmente em um único movimento contra a estrutura de poder e o sistema capitalista que, de acordo com os marxistas, está por trás. Assim, a interseccionalidade real desses movimentos sociais – em oposição à sua separação – era geralmente vista como bastante limitada, tanto como realidade quanto como possibilidade. Dizendo de outra forma corria-se o perigo de cair no abismo do reducionismo ou essencialismo.
Eu concordo com Anderson neste ponto, mas também penso que é claro que ele está criticando a abordagem pós-moderna da interseccionalidade, não a do feminismo negro.
Eu acredito que é um erro para os marxistas perder de vista o valor da tradição feminista negra – incluindo o conceito de interseccionalidade, tanto em sua contribuição para combater a opressão das mulheres de cor, mulheres da classe trabalhadora e as maneiras pelas quais ela pode ajudar a avançar a teoria e a prática marxistas.
Os marxistas apreciam as contribuições de nacionalistas negros de esquerda, incluindo Malcolm X e Franz Fanon, juntamente com o socialismo do Partido dos Panteras Negras, e tentaram incorporar aspectos de suas contribuições em nossa própria tradição política. Os exemplos acima fornecem ampla evidência de por que deveríamos também incorporar as lições que as feministas negras têm a oferecer ao marxismo.
O papel da segregação racial nos Estados Unidos impediu efetivamente o desenvolvimento de um movimento unificado de mulheres que falha em reconhecer as muitas implicações da divisão racial histórica. Nenhum movimento pode reivindicar falar por todas as mulheres, a menos que fale por mulheres que também enfrentam as consequências do racismo, que coloca mulheres de cor esmagadoramente nas fileiras da classe trabalhadora e dos pobres.
A raça e a classe devem estar no centro do projeto de libertação das mulheres – não apenas na teoria, mas na prática – se este quiser ser significativo para aquelas mulheres que são as mais oprimidas pelo sistema.
Texto originalmente escrito por Sharon Smith para o site Socialist Worker, disponível no original abaixo:
https://socialistworker.org/2017/08/01/a-marxist-case-for-intersectionality
Tradução por Andrey Santiago