Sozinho em meio à multidão: A isolação urbana em Chungking Express

[ESTE ENSAIO CONTEM SPOILERS]

Seis minutos adentro do filme Chungking Express de Wong Kar-wai, um drama romântico lançando em 1995, a câmera protela em volta de um monitor rotativo de CDs colados no topo de um toca discos dentro de um bar em Hong Kong. Como os três CDs continuam a rodar, eles regularmente ficam a centímetros uns dos outros, mas nunca se tocam. Esse correlativo objetivo encapsula perfeitamente vários dos principais temas do filme.

Chungking Express explora as rotinas diárias que os habitantes de áreas urbanas podem acabar caindo, e como essas rotinas impedem que as pessoas que vivem nesses espaços urbanos tenham a habilidade de se conectar realmente ou entender os próprios vizinhos. Em sua primeira linha de diálogo, por exemplo, o personagem de Qiwu narra ao fundo da cena, “Todo dia nós passamos por tantas pessoas. Pessoas que talvez nunca encontraremos, ou pessoas que poderemos virar amigos próximos.” Esse paradoxo entre proximidade física e distancia emocional, assim como toda a questão das rotinas diárias perpetuarem essa distancia, define a as duas relações ao centro de Chungking Express.

O primeiro relacionamento, explorado durante os primeiros quarenta minutos do filme, é entre Qiwu e uma contrabandista de drogas não identificada que se encontram em uma noite em um bar. Embora eles passem apenas uma noite na companhia um do outro e nunca sejam íntimos juntos, o encontro deles ajuda Qiwu a transcender o fundo do poço emocional no qual ele caiu no mês desde um recente final de relação. A próxima hora do filme examina a relação entre uma trabalhadora de fast food chamada Faye e um policial conhecido apenas pelo número do seu distintivo, 663. Faye se apaixona por 663 e começa a invadir seu apartamento como forma de cuidar dele sem o seu conhecimento, o final do filme deixa o futuro desse relacionamento incerto.

Durante Chungking Express, Wong Kar-wai ilustra os sentimentos de isolação que deriva das rotinas diárias e da alienação urbana por meio de várias técnicas formais, incluindo cinematografia, sons assincronizados e enquadramentos.

Um importante jeito que Wong Kar-wai examina os efeitos mentais da isolação urbana em Chungking Express é pela sua cinematografia. Na cena de abertura do filme, o espectador é introduzido primeiramente a Qiwu quando ele está no meio de uma perseguição a um criminoso pelas ruas de Hong Kong. É nesse momento que, pela narração, ele comenta sobre estar tão perto de várias pessoas. Ele também passa correndo pela traficante de drogas, mesmo que eles não se encontrem conscientemente por mais dois dias. Essa cena de perseguição, que é importante para estabelecer o espaço e o tom para o resto do filme, é filmada e editada de um certo jeito que amplifica a sensação de estar perdido em meio a uma grande multidão.

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O foco apenas em Qiwu

Durante este prólogo, a câmera passa por cima de inúmeras pessoas nas ruas. O trabalho de câmera nessa cena é notavelmente tremida, filmada com uma câmera de mão. O borrão resultante torna impossível distinguir quaisquer rostos individuais e, em vez disso, força o espectador a ver a multidão como uma entidade singular. A lente de foco curto também tem o efeito de achatar a imagem, colapsando-a em um único plano visual. Além disso, a filmagem é reproduzida a menos de 24 quadros por segundo, o que cria a sensação de movimentos bruscos que torna a imagem difícil de seguir. A primeira face que o espectador pode realmente identificar é a de Qiwu, isso porque a cena chega a um close extremo.

Por meio da aplicação dessas técnicas cinematográficas, Wong Kar-wai contrasta o personagem de Qiwu com os borrões da multidão, que agem muito mais como uma imagem de fundo do que vários indivíduos conscientes. Como resultado, essa cena ilustra efetivamente a experiência de se sentir isolado em meio a uma larga, indistinguível multidão urbana.

De modo similar à como ele borra a imagem das multidões ao fundo da cena para capturar o sentimento de isolação urbana. Wong Kar-wai usa a cinematografia como um meio de reproduzir uma natureza desorientadora de viver dentro ou se movendo em uma área urbana minúscula. O exemplo mais extremo de como Kar-wai faz isso é pela cena que segue a traficante de drogas e sua gangue de capangas indianos enquanto eles se preparam para mover o produto para fora de Hong Kong. Um pouco mais de oito minutos no filme, a câmera segue a personagem através de um apartamento apertado enquanto ela tenta organizar os capangas para o seu trabalho.

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Qiwu e a traficante

Em uma tomada longa, a câmera portátil tece entre pessoas e objetos, capturando quase todo o ambiente sem se concentrar em nada disso o suficiente para afundar o espectador. Se este plano tivesse sido precedido por um plano geral ou um plano de estabelecimento do local, sua geografia já seria conhecida para o espectador e, portanto, seria menos intimidante. Em vez disso, no entanto, o espectador aprende a geografia peça por peça enquanto a câmera instável e apressadamente viaja através dela. O efeito geral dessa cinematografia, complementada pela música indiana de rápido ritmo, é fazer com que o espectador se sinta tonto, desorientado e claustrofóbico. Wong Kar-wai emprega técnicas fílmicas semelhantes – variando de sua omissão de estabelecer planos ao seu uso de câmeras de mão – em várias outras cenas que simulam este movimento através de ambientes urbanos. Essas cenas fornecem insights sobre como os habitantes de lugares podem se tornar insatisfeitos ou alienados por seus ambientes, e é por isso que elas são tão importantes para preparar o cenário para o restante dos eventos do filme.

Um dos jeitos chave que Wong Kar-wai utiliza as técnicas formais como um instrumento de roteiro em Chungking Express é pelo uso repetitivo de musicas diegeticas. Na segunda parte do filme, o espectador encontra Faye em um momento que ela esta ela está se sentindo sufocada pelo tédio de seu trabalho no restaurante de fast food, esperando até que ela tenha dinheiro suficiente para viver sua viagem dos sonhos. Quando ela é apresentada, quarenta e dois minutos no filme, ela está no trabalho e está tocando a música “California Dreaming” em um volume alto. “Quanto mais alto, melhor”, ela explica para 663. “Me impede de pensar tanto.” Um momento depois, depois de 663 ir embora, ela ainda está atrás do balcão balançando suavemente para a música. Depois de um corte quase igual, a cena muda para uma data posterior, na qual Faye ainda está dançando para “California Dreaming”. Sua mudança de roupas entre as duas cenas indica a passagem do tempo.

No entanto, as implantações paralelas de “California Dreaming” no fundo desta segunda cena demonstram ao espectador a mesmice com a qual Faye experimenta cada dia no Midnight Express. O uso de Wong Kar-wai da repetição na música diegética é uma ferramenta eficaz para fazer o público entender a mentalidade de Faye; a semelhança entre a composição fílmica dos dois dias reflete a monotonia que caracteriza a vida de Faye nesse ponto da história.

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A monotonia de Faye

Uma ferramenta igualmente efetiva que Wong Kar-wai utilizar para evidenciar a solidão e o confinamento que Faye sente durante seu trabalho no Midnight Express são os planos. Por meio de um cuidadoso arranjo de detalhes e da atriz Faye Wong em relação a câmera, Kar-wai sucede em criar várias imagens que se destacam e representam visualmente o que está acontecendo dentro da mente de Faye. O melhor exemplo desta técnica acontece aos cinquenta e três minutos do filme, quando ela abre e lê a carta da ex-namorada de 663, que ela escreveu explicando o porquê de ir embora. Enquanto Faye está lendo, a câmera vê ela apenas por meio de fora da janela. Não apenas o vidro obscura o que a audiência consegue ver dela, logo refletindo seu senso de alienação, mas o jeito que a câmera se aproxima dela, por cima e por baixo. Como resultado, Faye aparece enjaulada pôr tudo a sua volta.

Imagens como essas – com Faye emoldurada por um verniz e confinada por superfícies perpendiculares – aparecem em vários pontos de sua trama antes de sua busca ativa por 663. Por meio desse enquadramento, Wong Kar-wai transmite efetivamente a sensação de confinamento e isolamento que Faye sente na repetição maçante de sua vida orientada pelo trabalho.

Além de utilizar técnicas visuais como os enquadramentos para refletir os temas do filme, Kar-wai também usa técnicas auriculares como efeitos sonoros assíncronos e de estratificação de trilha sonora para chamar a atenção do público para os momentos principais. Os primeiros vinte minutos da história de Faye estabelecem a rotina que define seus dias e o senso de confinamento que ela sente em relação a isso. Na marca de sessenta e dois minutos do filme, Faye decide quebrar a sua rotina ao buscar 663. A câmera fixa na sua face enquanto ela senta atrás do balcão, consumida pelo tédio. Após um olhar a chaleira fervendo, o som da agua esquentando lentamente começa a aumentar. Com a câmera novamente focada em Faye, o som de um avião pousando aparece na trilha sonoro junto ao som da agua fervendo. Os sons escalam para o corte que mostra Faye invadindo o apartamento de 663 pela primeira vez.

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Faye e 663

O primeiro efeito dessas técnicas – efeitos sonoros assíncronos e estratificação da trilha sonora – servem para representar sonoramente o processo de decisão de Faye para ter uma iniciativa. A desconexão entre o efeito de som e o ambiente visual aparece diretamente para o espectador, e se constrói para a chegada de Faye a sua decisão radical. Também serve como um callback auricular para o flashback de 663 do início do filme, onde ele compara os pousos de avião a um romance, devido ao trabalho de sua namorada como comissária de bordo. Esse momento de som assíncrono contrasta brilhantemente a busca ativa de Faye de 663 com o tédio e a rotina que definiam sua existência.

Em Chungking Express, Wong Kar-wai tenta demonstrar as maneiras pelas quais rotinas diárias e espaços urbanos lotados podem ter um impacto psicológico de isolamento e opressão sobre os moradores da cidade. Ele ilustra esse impacto através de uma série de técnicas formais, como cinematografia, edição visual, enquadramento, camadas de trilha sonora e efeitos sonoros assíncronos. Kar-wai estava longe de ser o primeiro cineasta moderno a usar qualquer uma dessas técnicas para sugerir um espaço urbano opressivo cercando e pesando sobre os personagens principais. No entanto, sua combinação funciona maravilhosamente para efetivamente alcançar os efeitos desejados e, consequentemente, o estilo de produção de filmes da Chungking Express espelha brilhantemente seus temas e motivos.


Texto original escrito por David Leeds, disponível no link abaixo:
https://medium.com/@davidleeds/alone-in-the-crowd-routines-and-urban-isolation-in-chungking-express-8036b3783ccd
Tradução por Andrey Santiago

 

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