Angela Davis e a Democracia da Abolição [PDF]

Angela Davis e a Democracia da Abolição

Sinopse do livro: Numa série de entrevistas dada logo após o escândalo do presídio de Abu Ghraib, Angela Y. Davis analisa como sistemas históricos de opressão tais quais a escravidão e o linchamento continuam a influenciar e solapar a democracia na atualidade. Davis se fundamenta na tese de W. E. B. DU Bois, segundo a qual, quando os negros se tornaram livres da escravidão nos Estados Unidos, negaram-lhes os privilégios plenos de outros cidadãos. Essa negação de direitos plenos e a criação de um sistema carcerário norte-americano emergiram como uma maneira de manter o domínio e o controle sobre populações inteiras. Davis investiga a noção de “Democracia da Abolição” como a democracia por vir, um conjunto de relações sociais livres da opressão e da injustiça.

Link para download do livro em PDF: Angela Davis – Democracia da Abolição


Abaixo são transcritos alguns trechos do livro:

EM: A senhora foi por duas vezes candidata a vice-presidente dos Estados Unidos pelo Partido Comunista, antes de deixar o partido nos anos 90. Após a queda do muro de Berlim, da União Soviética, o comunismo ainda pode desempenhar algum papel nos dias de hoje?

AD: Embora eu não faça mais parte do Partido Comunista, ainda me considero comunista. Se eu não acreditasse na possibilidade de, um dia, derrotar o capitalismo e num futuro socialista, eu não teria inspiração para dar continuidade ao meu trabalho político. Assim como se admite o triunfo do capitalismo logo depois do colapso das nações socialistas, o capitalismo também revela continuamente sua inabilidade de crescer e de se desenvolver sem expandir e aprofundar a exploração humana. Deve haver um sistema alternativo ao capitalismo. Hoje, a tendência a presumir que a única versão de democracia disponível para nos é a democracia capitalista propõe um desafio. Temos que ser capazes de desenradar as nossas noções de capitalismo e de democracia, a fim de adotar modelos verdadeiramente igualitários e democráticos. O comunismo – ou o socialismo – ainda pode nos ajudar a criar novas versões da democracia.

EM: O chamado movimento antiglobalização, anti-OMC, pode assumir o papel que Karl Marx atribuiu ao proletariado? Em outras palavras, podemos dizer “antiglobalistas do mundo, uni-vos”?

AD: Não sei se a transição é tão fácil. Mas acredito que a importância das solidariedades globais não podem ser contestadas. E existe uma ligação, me parece, entre a internacionalização da era de Karl Marx e os novos globalismos que procuramos construir hoje. A economia global é muito mais complicada do que Marx jamais poderia ter imaginado, ao mesmo tempo, suas análises são igualmente expressivas em nossos dias. O Capital começa com uma análise da mercadoria. A mercadoria capitalista permeou as vidas das pessoas de formas que não têm precedentes. O capitalismo, em geral, entrou em estruturas do sentir, no espaço íntimo da vida das pessoas. Penso aqui em uma canção interpretada por Sweet Honey and the Rock sobre a linha de produção global, que nos une de forma contingente, devido ao fato de participarmos das práticas exploradoras de produção e consumo. No norte global, nós compramos a dor da exploração de garotas do sul global, com o que revestimos os nossos corpos diariamente…

EM: A senhora poderia desenvolver um pouco mais essa ideia? Em outras palavras, existe uma continuação entre o período anterior à Guerra Civil e à a reconstrução e os guetos de hoje e a pena de morte, que é igualmente racializada. Realmente, todas essas instituições e espaços parecem ter raízes na escravidão. São essas as ligações e continuidades às quais a senhora está se referindo?

AD: Interessante é que a escravidão, como instituição durante o final do século XVIII e o XIX, por exemplo, conseguiu tornar-se um receptáculo de todas essas formas de punição consideradas bárbaras pela democracia em desenvolvimento. Em vez de abolir a pena de morte imediatamente, procura-se refúgio na escravidão, de maneira que os brancos só são sujeitos à pena de morte se cometerem um crime, que é o assassinato. Ao passo que os negros, escravos, sujeitam-se à pena de morte por até setenta crimes, em alguns Estados. A instituição da escravidão age como receptáculo das formas de punição tidas bárbaras demais para serem atribuídas a cidadãos brancos numa sociedade democrática. Com a abolição da escravidão, essas formas claramente racializadas de punição tornam-se desracializadas e persistem sob a máscara da justiça presumidamente indiferente à cor da pele. A pena capital continua a ser aplicada principalmente aos negros, mas quando a pessoa negra é sentenciada à morte, ela é considerada pela a lei como o sujeito jurídico abstrato, um indivíduo com direitos e deveres, e não como membro de uma comunidade racializada, que foi submetido a condições que o tornam o primeiro candidato para a repressão criminal. Assim, o racismo se torna invisível e irreconhecível. Nesse sentido, essa pessoa negra, homem ou mulher, torna-se “igual” a qualquer outra pessoa branca, mas não inteiramente imune ao racismo da lei.

EM: Você mencionou Condolezza Rice, Alberto Gonzalez e Colin Powell como pessoas que fazem aparecer que os norte-americanos vivem numa democracia racial. Você pode detalhar a relação entre a democracia da abolição e a política de identidade?

AD: Claro, estou sendo sarcástica quando me refiro aos Estados Unidos como uma “democracia racial” agora que temos pessoas de cor em altos cargos do governo e do mundo corporativo. Certos indivíduos não estão inevitavelmente ligados as estruturas de opressão insinuadas por suas origens raciais. Também não são compelidos a representar os que continuam a aguentar o golpe do racismo. Muitos anos atrás, o Dr. Martin Luther King criticou os negros que saíram do pântano lamacento subindo nas costas dos seus irmãos e irmãs. É inconcebível que esses indivíduos estariam onde estão agora sem as presos dos movimentos pelos direitos civis e pela democracia racial. Dessa forma, parece uma contradição que pessoas de cor possam desempenhar papéis importantes na sustenção do racismo contemporâneo. Mas, na verdade, é mais uma consequência inevitável da luta pela igualdade. A lição que tiramos disso tudo é que precisamos mudar a nossa compreensão sobre o racismo. Num período anterior, um dos sinais mais óbvios de racismo era a ausência de pessoas de cor em posições de liderança governamental e econômica, que se refletia na mais generalizadas formas de discriminação patente. Mas o racismo não bane necessariamente o aparecimento de pessoas de cor na liderança dessas instituições que são responsáveis pelo funcionamento do racismo. Na verdade, eu diria que o racismo é ainda mais efetivo e mais devastador hoje do que no período que produziu o movimento dos Direitos Civis. A população carcerária deste pais fornece um exemplo dramático: entre os mais de dois milhões de pessoas atualmente nos presídios, mais de 70% são pessoas de cor.

EM: Eu não sei se você viu algumas das audiências para a aprovação de Condoleeza Rice ou Alberto Gonzalez, mas foram uma exibição incrível da maquiavélica política de identidade. Na verdade, você poderia quase falar sobre uma política de identidade republicana.

AD: Esses desenvolvimentos indicam as limitações das estratégias de multiculturalismo e diversidade, que atualmente definem os esforços oficiais para erradicar o racismo. A identidade, por si só, nunca foi um critério adequado em torno do qual as comunidades de luta pudessem ser organizadas – nem mesmo durante aqueles períodos em que imaginávamos a identidade como o moto mais potente dos movimentos. As comunidades são sempre projetos políticos, projetos políticos que não podem depender sempre da identidade. Mesmo durante o período em que a unidade negra era supostamente uma condição sine qua non de luta, isso era mais ficção do que qualquer outra coisa. A classe, o gênero e as fissuras sexuais que se escondiam por trás da construção da unidade expunham eventualmente essas e outras heterogeneidades que faziam da “unidade” um sonho impossível.

É interessante como é mais difícil transformar discursos do que construir novas instituições. Muitas décadas depois da ficção de a unidade racial ter sido exposta, a suposição mais popular dentro das comunidades negras é a de que a unidade sozinha trará progresso. Mesmo hoje, quando podemos apontar para as Condoleezzas Rice e os Clarences Thomas, as pessoas conservam esse sonho de unidade. Jovens que estão apenas começando a se inserir no mundo supõem que a única maneira pela qual podemos construir um futuro melhor para os diversos negros que levam uma vida econômica e intelectualmente empobrecida é unir toda a comunidade negra. Ouço isso repetidamente. Qual seria o propósito de unir a comunidade negra? Como seria possível unir pessoas ao longo dos complicados traços políticos e de classe? Seria inútil tentar criar hoje uma única comunidade negra. Mas faz sentido pensar em organizar as comunidades, não apenas em torno de sua negritude, mas principalmente em torno de objetivos políticos. Na verdade, a luta política nunca foi tanto uma questão de como ela é identificada ou escolher ser identificada, mas, sim, o fato e que o modo som se pensa sobre raça, gênero, classe ou sexualidade afeta a forma pela qual as relações humanas são construídas no mundo. Durante o Mês da História Negra ou o Mês da História das Mulheres, sempre tendemos a falar dos “primeiros”: a primeira astronauta negra, a primeira mulher na Suprema Corte de Justiça, a primeira cirurgiã negra etc. Condoleeza Rice foi a primeira negra a se tornar secretária de Estado. Como eu disse muitas vezes, desistiria alegremente da ocasião de celebrar isso como uma vitória, em troca de um secretário de Estado branco e do sexo masculino que fosse capaz de dar liderança aqueles de nos que queiram pôr um fim à guerra global.

EM: Você poderia dizer como uma democracia norte-americana de falsas igualdades e propostas vazias pode estar relacionada ao tipo de tortura e torturadores de gêneros diversos que testemunhamos em Guantánamo e Abu Ghraib?

AD: O significado por trás do modelo de “democracia” divulgado pelo governo Bush é a igualdade fraudulenta do mercado capitalista, a liberdade que ele ilusoriamente oferece a todos. Marx expôs há muito tempo as desigualdades profundas que constituem a base do que ainda continuo gostando de chamar de democracia burguesa. Mas as políticas e os pronunciamentos do governo Bush equivalem a uma parodia até mesmo dessas distorções. Quando a democracia se reduz ao simples fato das eleições – não importa que elas tenham sido preparadas pela brutalidade e destruição em massa infligida no Iraque pelo exército dos Estados Unidos -, qualquer coisa que venhamos a considerar liberdade desapareceu. Aqueles que representam a composição de gênero e raça das forças armadas norte-americanas como um exemplo dramático da igualdade oferecida pela democracia perderam de vista claramente qualquer promessa de democracia para o futuro. A igualdade de gênero nas forças armadas é representada como a oportunidade e participar de todo aspecto da vida militar, incluindo uma oportunidade igual para participar da violência previamente suposta de ser o objetivo dos homens. Essa abordagem para a igualdade não deixa margens para desafiar o status quo. A ironia de as mulheres ajudarem a infligir a tortura física, mental e sexual em Abu Ghraib é que seus pontos de envolvimento apontam para o grau com que essa democracia formal, abstrata, tem tido êxito nas forças armadas. Quando a igualdade é medida em termos de acesso a instituições repressoras que permanecem iguais ou até se fortalecem com a admissão de pessoas que foram proibidas previamente, me parece que precisamos insistir em critérios diferentes para a democracia: direitos substantivos, bem como formais, o direito de se ver livre da violência, o direito ao emprego, à moradia, à saúde e à educação de qualidade. Em suma, concepções socialistas de democracia, em vez de capitalistas.

EM: Que fatores você acha que estão impedindo as comunidades de se organizarem hoje? Concordo totalmente com a necessidade de se organizar no dia a dia e com a construção da comunidade, mas e gostaria e ouvir suas reflexões sobre não se possuir um senso baseado na experiência do começo da década de 1970.

AD: Bem, veja, tudo mudou; portanto, não acho que esse tipo de discussão seria tão proveitoso como alguém deve achar. Tudo mudou.  A base fundamental dos movimentos mudou. As relação entre a profissionalização e os movimentos sociais mudou. A maneira de politização mudou. O papel da cultura e a globalização da produção cultural mudaram. Eu não sei como falar sobre essa nova realidade, a não ser encorajando as pessoas a experimentar. Esta é, na verdade, a lição que eu tiraria dos anos 1960 e 1970, quando m envolvi no que eram essencialmente modos experimentais de organizações convencionais pelos direitos civis. Ninguém sabia se iriam surtir efeito ou não. Ninguém sabia para onde estávamos indo. Eu sempre comento que os jovens hoje reverenciam em demasia as organizações mais antigas, a dos veteranos, e são meticulosos demais em seu desejo de depender de modelos de atuação. Todos querem alguma garantia de que aquilo que fazem terá resultados palpáveis. Eu acho que a melhor maneira de entender o que deve funcionar é simplesmente faze-lo, a despeito dos erros potenciais que se podem cometer. Deve-se estar disposto a cometer erros. Na verdade, acho que os erros ajudam a produzir novos modos de organização – os modo que unem as pessoas e provam um avanço na luta pela paz e pela justiça social.


Dados da entrevistada ANGELA DAVIS

Frequentou escolas segregacionistas em Birmingham, Alabama, onde nasceu em 1944. Saiu de lá para estudar literatura francesa em Nova York, depois em Paris. Seu interesse por filosofia a levou a Frankfurt, Alemanha, concluindo ali seus estudos doutorais com Marcuse, antes de se tornar professora na Universidade da Califórnia. Em 1969, aos 25 anos, foi demitida por razões de suas convicções comunistas. Mais tarde é acusada de participar de ações armadas com os Panteras Negras e da tentativa de fuga de dois prisioneiros negros da prisão Soledad da Califórnia, quando três pessoas morrem. Em 1971, é presa e encarcerada durante 17 meses, até ser julgada inocente. Nesse período, artistas, intelectuais e ativistas realizaram diversas manifestações pedindo sua libertação. É autora, entre outros, de If they come in the morning: voices of resistance (Se chegarem pela manhã: vozes da resistência , 1971), Angela Davis: an autobiography ( Angela Davis: uma autobiografia , 1974), Women, Race and Class ( Mulheres, Raça e Classe Social , 1981) e, recentemente, de Blues Legacies and Black Feminism ( Herança do Blues e Feminismo Negro ).

Dados do entrevistador EDUARDO MENDIETA

É professor de filosofia na University of New York at Stony Brook ( SUNY ), editor da revista Radical Philosophy Review e tradutor de Jürgen Habermas, Karl- Otto Apel e Enrique Dussel. Publicou dezenas de livros e artigos sobre teoria crítica e globalização, entre eles The Adventures of Transcendental Philosophy. Karl-Otto Apel‘s Semiotics and Discourse Ethics (Rowman & Littlefield, 2002), além de entrevistas com Angela Davis, Cornel West, Richard Rorty, Jürgen Habermas e Noam Chomsky.

Dados retirados do artigo “Política e prisões”, uma entrevista com Angela Davis.

 

 

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