Desde a década de 90, a terceirização do setor publico evoluiu por meio de licitações competitivas, trabalhos com parcerias privadas (particularmente por meio de iniciativas público-privadas), comissionamentos estratégicos e contratações de primeiro nível. Cada uma dessas iterações prometeu melhores bens e serviços públicos por um custo menor. Sua prática, no entanto, tem sido frequentemente marcada por custos crescentes e menor qualidade de serviço. Abby Innes explica o porquê.
A lógica da terceirização se sustenta na argumentação de que a produção feita no mercado é melhor que a produção pública por que a governança das organizações privadas é mais transparente, flexível, eficiente e mais disciplinada pelos seus donos. Mas essa ideia é problemática em duas frentes. Em primeiro lugar, a presunção de superioridade de mercado é um artefato da teoria da escolha pública; não está embasada na avaliação histórica de qual regime, público ou privado, melhor produziu bens públicos. Em segundo, essa lógica depende da teorização econômica do “primeiro-melhor-mundo”: ela pressupõe um mercado eficiente para bens simples, ou para bens que podem ser de alguma forma simplificados. Portanto, para que a terceirização funcione, essas condições arquetípicas precisam existir. Embora normalmente eles possam existir para bens e serviços simples (o NHS não produz seu próprio alimento), os mercados de terceirização para bens e serviços complexos normalmente não preenchem nenhuma das condições necessárias.
A lógico microeconômica neoclássica que funciona por trás da terceirização opera por um raciocínio puramente dedutivo-teórico; i. e. em correntes de raciocínios lógicos que vão de axiomas explícitos para fins necessários, por exemplo, o teorema de Pitágoras. Esse método permite o modelamento virtual de “pequenos mundos”, transações simples e repetitivas, mas ao redor de essenciais, complexos e interdependentes serviços de estado que introduzem alguns pecados hediondos de omissões analíticas. Essa forma de argumento que não se calibra em relação a realidade observável como em outras ciências sociais, incluindo a economia neoclássica mais crítica, mas tem a matemática e o raciocínio lógico que “prova” o que quer. Em volta de bens complexos e serviços, entretanto, a realidade conspira para que a criação de um mercado eficiente se mostre impossível.
As terceizações falha devido a contratos incompletos
Quando nós colocamos a retórica de mercado da Nova Gestão Pública de um lado, a terceirização constitui o planejamento central para as empresas privadas, e o sucesso desse empreendimento depende da viabilidade do contrato de terceirização como uma junção efetiva de instrução e controle. O que a teoria do contrato nos diz é que quanto mais complexo o serviço ou bem, quanto maior a duração do contrato e maiores as contingências ou incertezas que o fornecedor pode enfrentar, menos tarefas terceirizadas são passíveis de codificação e, portanto, contratos robustos que podem proteger adequadamente o comprador.
Tais contratos “incompletos” criam imprevistos e destinam-se a ter custos elevados para a gestão e supervisão dos elementos “não contratuais” relacionados com a prestação de serviços. Falhas contratuais frequentes exigem dispendiosas e repetidas (dada a baixa posição de barganha) renegociações. Complexidade, necessidades que vão mudando e interdependência são condições endêmicas nos bens e serviços do serviço público.
A economia do planejamento central soviético nos diz que as assimetrias resultantes na informação e na alavancagem entre o estado e o produtor são apenas o começo dos jogos de barganha que o Estado não pode vencer. Dado o financiamento público, o Estado continua a ser o único parceiro na relação de mercado, embora numerosos os ‘usuários finais’ ou ‘clientes’ retóricos possam ser, mas também o portador contínuo das obrigações contratuais e responsabilidades e responsabilidades financeiras, legais e políticas de uma falha do fornecedor: uma posição única para o estado.
Falhas do mercado enfraquecem a qualidade dos serviços públicos
Os seguintes fracassos de mercado são abundantes nos mercados de serviços públicos: altas barreiras à entrada de novos jogadores deixam os mercados de serviços públicos dominados por empresas monopolistas ou oligopólios que tornam o provedor relativamente imune aos mecanismos de autocorreção da concorrência no mercado; a incerteza e as complexidades dos requisitos contratuais criam enormes assimetrias de informação entre comprador e vendedor; investimentos de relações-especificas encorajam o produtor a explorar a perda de barganha por custos irrecuperáveis (i.e. hold-up problems); e finalmente, repercussões negativas, isto é, efeitos externos prejudiciais não refletidas no preço original da transação são particularmente problemáticos dado as interdependências sistêmicas, por exemplo do NHS (algo grosseiramente equivalente ao SUS brasileiro) e o sistemas de assistência social.
As repercussões negativas de contratos incompletos no serviço público de terceirização são excepcionalmente prejudiciais socialmente. As tarefas difíceis de codificar, muitas vezes intrínsecas a um determinado serviço público – como “cuidado” – são racionalmente descartadas por provedores privados e deixadas para famílias, voluntários, instituições de caridade e outros serviços públicos para responder. À medida que os serviços interdependentes são submetidos a um desempenho corporativo não-satisfatório, os fracassos sistêmicos tornam-se inevitáveis.

A natureza quase completamente comprometida do mercado de serviços não é o único problema, no entanto. Como mostraram a cobertura do Professor de Contabilidade Adam Lever e Gil Plimmer no Financial Times, as grandes empresas da indústria de serviços públicos (ISP) são um exemplo particularmente notável de corporações “financiadas”: elas não são as inovadoras produtivas do imaginário neoclássico. Em vez de reinvestir seus lucros, essas empresas cotadas redirecionam os lucros para crescentes pagamentos de dividendos e recompras de ações para aumentar ainda mais os preços das ações, e as fusões e aquisições financiadas por dívida são usadas para criar novos fluxos de receita. À beira da falência em 2013, o novo CEO da Serco descobriu que não tinha um registro coerente único documentando seus 700 negócios, sugerindo que os valores operacionais de um esquema Ponzi mais do que uma estratégia corporativa criadora de valor.
Com poucos ativos tangíveis e alto endividamento contra ativos intangíveis (como o reconhecimento da marca e, presumivelmente, a expectativa do mercado financeiro de um setor não competitivo em expansão sob governos doutrinários), essas empresas não têm valor residual se o negócio falhar. O fracasso também é difícil de prever, uma vez que a diligência devida é dificultada por grandes conflitos de interesse das Grande Quatro empresas de contabilidade, KPMG, Pricewaterhouse Coopers, Deloitte e Ernst and Young. Leaver descreve o modelo financeiro padrão como “jogo alavancado em fluxos futuros de renda”. A política é, portanto, armadilhada contra governos interessados em revertê-la.
Uma estranha semelhança
Quando se trata de incentivos predominantes, as empresas da indústria de serviços públicos como “empresas” têm uma estranha semelhança com as empresas estatais soviéticas (EEs) e por que elas não teriam? Como no planejamento para as EEs soviéticas, o contrato de terceirização opera como uma forma de instrução de planejamento e como um imperativo a ser realizado, não como uma previsão ou “plano indicativo” a ser considerado; os preços são predominantemente administrativos e “softs” (ou seja, negociáveis); os contratos são tipicamente longos, incompletos e a saída é punitivamente cara financeiramente, organizacionalmente e politicamente; a continuação da produção é essencial, portanto o governo opera sob riscos de um orçamento cronicamente “flexível” por contrato (as chamadas “restrições orçamentárias brandas”).
O relacionamento é intrinsicamente e institucionalmente politizado: no caso do Reino Unido, após repetidos fracassos, o Gabinete funciona como interface direta com as principais empresas de terceirização. A demanda pelo bem ou pelo serviço é normalmente garantida (os cidadãos com deficiência que procuram seu subsídio de independência não estão comprando uma bolsa de mão). Assim como as estatais soviéticas, as empresas do setor de serviços públicos operam em um ciclo de baixa de incentivos para um desempenho consumado, altos incentivos para um desempenho satisfatório e uma falta de mecanismos disciplinares eficazes.
Como resultado, a típica firma multinacional do ISP se parece mais com o gêmeo separado do grupo de negócios ‘Kombinat’ soviético do que com uma empresa pública vencedora como a BBC ou uma empreitada arquetípica, inovadora e criadora de valor (característica empresas pequenas e médias reais muito mais do que as empresas cotadas financeiramente cotadas de hoje). A partir de 2016, a grande maioria dos contratos de terceirização do Reino Unido havia sido adjudicada a grandes empresas multinacionais do setor de serviços públicos – cerca de 73% dos gastos com compras. Sob os governos doutrinários, as firmas do ISP, como as estatais soviéticas, se beneficiam de uma nomenclatura cada vez mais abrangente de mercadorias a serem produzidas. Em contraste com o sistema soviético, no entanto, o dinheiro é tudo menos passivo dentro do regime de terceirização da produção.
Do ponto de vista do pagador de impostos, a arquitetura contemporânea da terceirização é mais disfuncional no enquadramento de incentivos corporativos que o sistema Soviético. As estatais soviéticas tinham poucos incentivos para cumprir as metas porque os salários eram estáveis e o cumprimento dos objetivos levava a um aumento de meta no ano seguinte sem recompensa adicional. As firmas ISP são incentivadas por suas estruturas de remuneração e financiamento de executivos e pela incompletude das especificações contratuais para “influenciar” ativamente um contrato, uma vez que além das medidas contábeis criativas, suas margens de lucro se originam em sua leitura estritamente legal.
Quanto mais difícil for o governo de tentar obter preços de contrato dentro de contratos incompletos, mais prejudiciais serão as probabilidades de as consequências da busca de margem pela firma comprovarem. O risco sob austeridade é de seleção adversa crônica. Dada a dificuldade objetiva de estabelecer preços precisos sob contratos incompletos, apenas as empresas mais imprudentes, com menor consideração pela qualidade do serviço e aquelas mais determinadas a implantar estratégias posteriores de “retardo”, racionalmente, serão sub-contratadas para contratos sem garantia de que possam permanecer dentro do prazo inicial e suas margens. O Carillion desmoronado era apenas um “vencedor” repetido. A administração da Carillion agiu racionalmente sob as estruturas de incentivos predominantes: elas eram aberrantes apenas no julgamento equivocado do momento em que os mercados financeiros resistiriam à insustentabilidade de sua extração de valor.
O contra-argumento padrão para “o problema do monopólio” é que o efeito reputacional sobre as empresas dominantes atua como uma garantia disciplinadora contra o comportamento contratual deficiente. Mas nos mercados da indústria de serviços públicos de monopólio / duopólio com altas barreiras à entrada sob governos doutrinários que são cada vez mais dependentes estruturalmente da sobrevivência das empresas dominantes, o dano à reputação até mesmo para provedores atrozes é aparentemente nulo. Uma investigação do Comitê de Contas Públicas concluiu que a Serco e a G4S receberam quatorze novos contratos por cinco Departamentos no valor de £ 350 milhões, mesmo quando estavam sendo investigados pelo Escritório de Sérias Fraudes por defraudar o Ministério da Justiça e depois do então Ministro da Justiça, Chris Grayling publicamente empenhada em reter prêmios até que o caso fosse resolvido: o MoJ estava entre os cinco.
O atual governo britânico mesmo assim continua a dirigir a terceirização para os serviços mais complexos e socialmente necessários do estado. É o bastante para fazer Leonid Brezhnev corar.
Este artigo é baseado no recente paper da autora feito para a LEQS.
Artigo originalmente escrito por Abby Innes para o site da London School of Economics.
Disponível neste link.
Traduzido por Andrey Santiago