Angela Davis sobre Herbert Marcuse e 1968

Enquanto eu escrevo este texto em Maio de 2018, em Paris, na França, estudantes e trabalhadores estão conduzindo manifestações, passeatas e ocupações com o proposito de desafiar os ataques do governo de Emmanuel Macron sobre os direitos trabalhistas francês e seus anunciados esforços para restringir o acesso ao ensino superior do país. Essas manifestações refletem uma crescente consciência das aprofundadas desigualdades sociais do Norte Global – principalmente das pessoas de cor, imigrantes do Sul Global, e de modo mais geral, das comunidades pobres e da classe trabalhadora que sofrem com os efeitos do capitalismo global.

Como se acontecessem para acentuar o significado da publicação neste ano desta biografia ilustrada, Herbert Marcuse, o Filósofo da Utopia, essas demonstrações em Paris coincidem com o 50º aniversário dos levantes de trabalhadores e estudantes de 1968, os quais foram historicamente associados com ideias utópicas. Mas acidentalmente, Marcuse estava em Paris durante as manifestações de 1968, participando, junto com Lucien Goldmann e outros, de uma conferência sobre Marx na Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Estudantes que ocuparam a Ecole des Beaux Arts reconhecerem ele e andaram até seu hotel da conferência para convidar o filosofo a falar e sua assembleia estudantil. Quando Marcuse conversou com os estudantes, ele trouxe saudações dos movimentos que estavam se desenvolvendo nos EUA e, de acordo com Andrew Feenberg, aqueles que o acompanharam, louvaram os estudantes pelas suas críticas ao consumismo capitalista.

Em 1968, eu era uma das estudantes de graduação de Marcuse na Universidade de San Diego, e todos nós se beneficiamos de seu grande conhecimento das tradições filosóficas Europeias e também do modo sem medo em que ele manifestava solidariedade com os movimentos que desafiavam as agressões militares dos EUA, as repressões acadêmicas, e o racismo estrutural. Marcuse nos aconselhou sempre para compreender as importantes diferenças entre as dimensões da filosofia e da militância política, como também da complexa relação entre teoria e a transformação social radical.

Ao mesmo tempo, ele nunca falhou em nos lembrar que a mais significativa dimensão da filosofia era o seu elemento utópico. “Quando a verdade não pode ser realizada dentro da ordem social estabelecida, ela sempre aparece para a segunda como mera utopia.” Enquanto a nova geração de acadêmicos e militantes ponderam sobre o papel de intelectuais na formação de movimentos radicais da nossa era, eu acredito que as ideias de Marcuse podem ser tão valiosas hoje quanto elas eram 50 anos atras.

Pouco antes de sua morte de seu amigo de longa data e colega da Escola de Frankfurt, Theodor W. Adorno, Marcuse debateu urgentemente com ele sobre a importância do movimento estudantil. O ponto focal desse debate muitas vezes acalorado foi a justificação de Adorno do fato de que a policia foi chamada em resposta a uma ocupação estudantil do Instituto para a Pesquisa Social. Ao criticar essa confiança na polícia, Marcuse insistiu que “se as alternativas são a polícia ou estudantes de esquerda, então eu estou com os estudantes… eu ainda acredito que nossa causa… é melhor conduzida pelos estudantes radicalizados do que pela polícia.”

Marcuse apontou que mesmo com ele rejeitando a “não mediada tradução da teoria na práxis”, ele reconhecia que a teoria poderia ser avançada pela práxis e que mesmo que o movimento estudantil da época não estava se desenvolvendo dentro de uma situação revolucionária, nem mesmo, como ele insistiu, em uma situação “pré-revolucionária”, ainda assim demandava o reconhecimento de novas possibilidades de emancipação. Esses acontecimentos trouxeram, como ele diz, muito do necessário ar fresco em um mundo que estava se sufocando de muitos jeitos. “É o ar que que nós… também queremos respirar um dia, e certamente não é o ar do que está estabelecido.”

Embora Marcuse nem sempre concordasse com as táticas particulares dos movimentos radicais daquela era, ele era bastante claro sobre a extensão em que convocava a libertação negra, a paz, a justiça de gênero, e a reestruturação da educação, representando importantes tendências emancipatórias daquela era e, que realmente, auxiliaram a mover a teoria em direções mais progressistas. Um Ensaio sobre Libertação, Contrarrevolucão e Revolta, como também sua aula de 1974 na Universidade de Stanford sobre o “Marxismo e Feminismo” nos oferecem evidência de seus próprios esforços para se engajar diretamente com as ideias associadas com os movimentos daquele período. Sua referência para o “socialismo feminista” no seu último artigo previu a importante influência do feminismo anti-capitalista e anti-racista em diversos movimentos contemporâneos, incluindo os da abolição penal, das campanhas contra a violência policial e da justiça para pessoas com deficiência. Essa explícita dimensão utópica do pensamento de Marcuse atraiu jovens intelectuais e militantes durante a conjuntura histórica que associamos com os levantes de 1968.

Cinquenta anos depois, enquanto nos confrontamos as persistentes globalidades da escravidão e do colonialismo, junto as desenvolvidas estruturas do capitalismo racial, as ideias de Herbert Marcuse continuam a revelar importantes lições. A insistência em imaginar futuros emancipatórios, mesmo sobre as mais desesperadas situações, continua – como Marcuse nos ensina – sendo um elemento decisivo tanto na teoria quanto na prática.


Todo os direitos reservados ao produtor original do livro.

Artigo disponível em inglês, neste link.

Tradução de Andrey Santiago

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