Reflexões sobre a Arte no Comunismo Primitivo

Um dos problemas da arte de vanguarda fraca é a sua tendência para rejeitar as origens espirituais, existenciais e sociais da arte. Essa dinâmica pode se mostrar tanto nos que querem ser “empreendedores da arte” quanto em artistas progressistas (que erroneamente acreditam que o seu papel é desmistificar a arte e tudo que está envolto dela). Ambos, no fim, têm o risco de se tornar um Thomas Gradgrinds (personagem de um romance de Dickens preocupado apenas com números e fatos) da arte contemporânea.

O marxista e crítico austríaco Ernst Fischer, se baseando no livro de Engels, “O papel do trabalho na transição do macaco ao homem”, invocou a arte pré-histórica em seu livro de 1959, intitulado “A necessidade da arte”. Em grande medida uma polêmica contra as políticas culturais da Europa Oriental “comunista” , Fischer tentou descrever a origem da arte como “mágica” – o produto de um grande salto na consciência humana. A maestria das ferramentas produziu nos humanos um conhecimento social – a abstração e a generalização do mundo. Isso criou uma riqueza de conhecimentos práticos, mas também criou um método de conhecimento que passava qualquer data empírica que os humanos “primitivos” tinha acumulado. Mitologia e arte eram os produtos dessa contradição. “Com o uso das ferramentas”, argumenta Fischer, “nada é, em princípio, impossível”. Os mundos em si se tornam “mágica”. Os primeiros humanos deram nomes as estações, aspectos da reprodução sexual, deram nome a flora e fauna. Isso deu a nossos ancestrais o sentimento de um imenso poder. Dando nome a essas coisas que não poderiam ser completamente entendidas (morte, vida, amor, etc.) iria logicamente estender esse poder. [2] “Na criação da arte”, o homem pré-histórico (sic), “encontro ele próprio um modo de aumentar seu poder e enriquecer sua vida. As frenéticas danças tribais antes da caça realmente faziam o guerreiro mais resoluto e eram aptas para terrorizar o inimigo. As pinturas rupestres em cavernas realmente ajudavam a construir o senso de segurança e superioridade do caçador sob sua presa” [3]. A tese de Fischer em grande parte está correta, embora seu pensamento esteja limitado pelos pressupostos de seu tempo. Ele está errado sobre as motivações dos pintores das cavernas na pré-história. O “ritual mágico” enquanto explicação já foi descreditada – embora era uma teoria bastante utilizada nos anos 50 e 60. [4] O maior ataque a essa teoria é a evidência de que a maioria das pinturas em cavernas no período pré-histórico foi feita por mulheres.

Várias ideias têm substituído a explicação do “ritual mágico” para a arte das cavernas. Possuídos por um medo de generalização pós-estruturalista, algumas dessas teorias enfatizam demais os dados de uma particular locação – a Arte de San Rock na África do Sul ou a Caverna Chauvet na França por exemplo – e se recusam a retirar conclusões mais amplas (mesmo que o dado demande tal generalização). Um debate se seguiu entre os chamados “pluralistas” de um lado e os “xamanistas” no outro lado. [5]

Pintura de cavernas e xamanismo

Davis Lewis-Williams e Thomas Dowson foram os primeiros a argumentar que tais pinturas e artes rupestres eram xamanísticas. [6] – baseados em estudos em San Rock e na análise de fosfenos e motivos abstratos. [7] Fosfenos são padrões de luz que não são causados por um estimulo externo – normalmente o produto de alucinações causados por fome (jejum), movimento (danças rodopiantes), intoxicação ou privação do sono. Eles evidenciam uma das características centrais do xamanismo – entrar em estados alterados de consciência para visitar o “mundo espiritual”, a fim de trazer lições e narrativas de volta ao grupo. “Entre as comunidades de caçadores-coletores …” Lewis-Williams argumenta que isso “se chama ‘xamanismo’.”

O mundo deriva da língua Tungus localizada na Ásia Central. Hoje em dia essa é uma palavra disputada. Alguns pesquisadores sentem que o termo tem sido utilizado de modo muito geral para ser de qualquer uso… Eu, e alguns outros discordamos. Nos acreditamos que “xamanismo” pontua corretamente uma questão universal humana – a necessidade de fazer sentido um processo de mudança de consciência – e o modo pelo qual isto é conquistado especialmente, mas não sempre, entre os caçadores-coletores. [8]

Jean Clottes, antigo diretor de pesquisa da Caverna Chauvet, concorda com Lewis-Williams. “Clottes e Lewis-Williams”, escreve David Whitley, “argumentaram, em essência, que as cavernas em si eram modelos topográficos de uma experiência de transe” Como ‘entranhas de um submundo’, elas eram o vortex que, por meio do ritual de transe, o xamã utilizava para acessar o sobrenatural.” [9]

Os anti-xamãs

Os pós-estruturalistas argumentam contrariamente a essa interpretação colocando que ela ignora especificas experiências culturais que produzem cada artefato. Mas como Whitley argumenta:

Que a arte esteja em cavernas tão diferentes quanto Chauvet e Lascaux poderia razoavelmente ser interpretado como de origem xamanística … não é uma conclusão pequena. Como Jean Clottes apontou repetidamente, isso conversa com oo fato de que a arte paleolítica reflete uma tradição cultural, artística e religiosa extremamente longa – que durou mais de vinte mil anos. [10]

The Sorcerer of  Les Trois Frere  Gabillou (Dordogne, France)   
O feitiçeiro de Les Trois Frere Gabillou (Dordogne, France)

David Whitley, entretanto, está errado quando ele assegura que as pinturas e artes rupestres refletiam uma prática “interna” vs uma prática “externa”. [11] A função do xamã, baseado em observações na América do Norte, Siberia e Australia, era multi-facetada. O xamã pré-histórico era o padre, curador, palhaço, historiador, contador de histórias, mágico e cientista. Qualquer busca para o mundo espiritual era tomada numa relação dialética com as necessidades materiais e espirituais, do grupo de caçadores-coletores. [12] Isso leva Derek Hodgson a argumentar que a interpretação xamanística de Lewis-Williams requer um “salto de fé substancial”. [13] De todo modo, o fato de que as pinturas rupestres não se limitam as marcas associadas com fosfenos e que tais pinturas também são “processadas por diferentes regiões do córtex visual” [14], não negando que as teses de interpretação xamanística. O moderno e burguês impulso para a categorização e especialização não existia em sociedades igualitárias de caçadores-coletores. A arte xamanística metabolizava as complexas dinâmicas sociais, existenciais e culturais dos primeiros humanos. Lewis-Williams respondem a essa questão ao observarem a interligação entre mitologia e ritual em San Rock, [15] argumentando que a presente questão entre ser/ou não (mito ou ritual) erra o ponto. [16]

Metáforas para o transe permeiam vários mitos… Certos componentes da experiência de transe derivam do funcionamento do sistema nervoso humano. Por exemplo, as sensações de flutuar ou voar em um plano acima (as vezes sugerido por penas ou asas) e penetrar o chão abaixo por meio de algum tipo de túnel (ou pela água) estão configuradas nas experiências neurológicas humanas… Elas estruturam não apenas os mitos de San Rock como a mitologia em todo o mundo; todas as religiões têm um componente de êxtase, embora estados de consciência extremamente alterados não sejam necessariamente experienciados por todos os aderentes. [17]

Game Pass Shelter the 'Rosetta Stone' of San Rock Art

Ambas as narrativas sociais coletivas e a experiencia subjetiva individual permeiam o trabalho. Não há separação categórica entre o indivíduo existencial único e a mitologia social coletiva. Ambos existem ao mesmo tempo.

Não há … nenhuma evidência do que uma mitologia gerada independentemente determina uma experiência de transe. O que os San falam sobre experiências de transe … e o que é pintado nos abrigos rochosos dizem respeito ao mesmo reino espiritual, aquele em que muitos mitos se realizam … Os San pintaram nem a ‘mitologia’ generalizada nem as narrativas específicas, mas suas próprias incursões. no reino espiritual. [18]

A idolatria das sombras

Claro que há fundamentais diferenças entre a arte contemporânea e a arte do comunismo primitivo – mas a arte continua a ter essa dupla funcionalidade social-espiritual como também uma “profunda negociação entre a visão subjetiva e a mitologia coletiva.” Entre os antropólogos, são os que defendem a interpretação xamanística que seguem uma abordagem materialista dialética do assunto – usando dados empíricos para prováveis generalizações do movimento social e cultural. Os pós-estruturalistas, com sua devoção à especificidade, ficam presos ao idealismo filosófico. Na caverna platônica de cabeça para baixo, eles ficam obcecados com as sombras e se recusam a considerar a luz.

Referências

[1] Referenciando o diretor escolar sem humor do romance Hard Times de Charles Dickens – Thomas Gradgrind tormentava seus jovens estudantes pelos seus amores por cavalos, flores, etc.
[2] Ernst Fischer, The Necessity of Art (London and New York: Verso, 2010) 28-31
[3] Fischer, 47
[4] see David Whitley, Cave Paintings an the Human Spirit (Amherst, New York: Prometheus, 2008) and David Lewis-Williams, The Mind in the Cave (London and New York: Thames and Hudson, 2002)
[5] see Whitley, Lewis-Williams and Derek Hodgson, “Shamanism, Phosphenes and Early Art: An Alternative Synthesis,” Current Anthropology Volume 1, Number 5 (December 2000)
[6] Hodgson, 866
[7] Lewis-Williams
[8] Lewis-Williams, 132
[9] Whitley, 47
[10] Whitely, 76
[11] Whitley, 77
[12] See Joseph Campbell, The Masks of God Volume 1: Primitive Mythology (London and New York: Penguin, 1991
[13] Hodgson, 870
[14] Hodgson, 869
[15] Lewis-Williams, 105
[16] Lewis-Williams, 105
[17] J.D. Lewis-Williams, “Rock Art: Myth and Ritual, Theories and Facts,” The South African Archeological Bulletin Volume 61, No. 183 (June 2006) 107
[18] J.D. Lewis-Williams, 108


Texto originalmente escrito por Adam Turl.

Disponível em inglês, neste link.

Tradução por Andrey Santiago

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