Texto originalmente escrito por Marta Arjona
Tradução: Átila Gregório
A menor coisa, insignificante em si, adquire alto valor, como símbolo de tempo. O espírito dos homens afetado de um ou de outro modo, segundo as influências que nele atuam, se reflete com todos os seus acidentes em cada um dos objetos que se imagina para adorno ou para uso. – José Martí
INTRODUÇÃO
Em nosso país, a Museologia e a noção de patrimônio cultural cobram verdadeira validade a partir do triunfo da Revolução. Escassas instalações museais – sete, com exatidão – e reduzidos esforços privados pela conservação e uso do patrimônio constituíram a única atenção ao acervo cultural de nosso povo durante os cinquenta e sete anos da república mediada. A desinformação ou deformação com a qual, do ponto de vista científico se tratavam esses aspectos impediam uma organização e exploração consequente com o valor histórico, científico e artístico que possuíam os bens culturais dispersos no território nacional.
Quando triunfa a Revolução, começa uma etapa de revalorização, organização e utilização do patrimônio cultural. Se concebe o plano de desenvolvimento da Rede de Museus, são criadas especialidades e oficinas de restauração de bens móveis e monumentos, paralelo com o trabalho de formação de pessoal especializado, e começa a ofensiva pelo resgate de bens culturais abandonados, subutilizados ou danificados pela falta de tratamento adequado.
São aprovadas leis para a proteção de nosso patrimônio cultural, leis de monumentos nacionais e locais, leis referentes à museus municipais, e ainda, é criada a Comissão Nacional de Museologia e o Centro Nacional de Conservação, Restauração e Museologia.[1]
Junto com a criação do sistema se tem trabalhado em transformações conceituais e ideológicas para a adequada utilização das instituições museais e do patrimônio cultural, de acordo com os princípios da Revolução Socialista, e, em primeiro lugar, se tem enfatizado a promoção e divulgação para a exploração massiva dos mesmos, com fins educacionais e culturais.
Cuba conta na atualidade [1982] com cento e setenta e quatro instalações museais, número que crescerá com o plano de criação dos museus municipais, instituições que cumprirão a missão de levar até os lugares mais apartados do país a imagem de sua história e sua identidade, para realizar a grande tarefa de desmistificação do museu e, dessa forma, dar-lhe uma dimensão necessária para seu uso pela maioria dos trabalhadores, uma base fundamental para o desenvolvimento de nossa sociedade.
Cremos ser útil oferecer estes dados a título de introdução, porque são as fontes que tem servido de base ao desenvolvimento de nossa Museologia e a melhor utilização do patrimônio cultural, tema em que se fundamenta este trabalho.
A OBJETIVIDADE MUSEOGRÁFICA NOS TRATAMENTOS HISTÓRICOS
Em outras oportunidades temos tratado os museus como instituições que coletam, investigam e expõem as evidências da criação humana e da natureza com fins ilustrativos, mas, em geral, essa é a definição aceita em todos os lugares, o mesmo não ocorre com os objetivos e o resultado das informações que eles oferecem, porque as informações estão condicionadas à interpretação dos indivíduos que as criam fazem a partir do ambiente e da vida social.
Temos insistido sempre nesses aspectos porque o museu, como centro de educação permanente, exerce sem dúvidas influência na formação do visitante que recebe a informação visual, elaborada com um critério dado, e que resulta em elementos inseparáveis da imagem nos tratamentos históricos.
Estes princípios se debatem com bastante intensidade em diversos foros internacionais, onde alguns museólogos que respondem ideologicamente a concepções não materialistas da história rechaçam a interpretação de desenvolvimento da sociedade como um meio fundamental da parte expositiva de um museu, por considerá-la um mecanismo de “propaganda” e não de informação “pura” que sirva ao espectador de “qualquer ideologia”.
Essa tendência de certas instituições museológicas estrangeiras nos leva à certeza de que, com maior objetividade da função que elas devem desempenhar como “propagandistas” da verdade científico-materialista da história, é necessário conceber a apresentação do museu como instituição incubida de cumprir a missão que lhe é designada em nossa sociedade, que é a de servir como veículo para a análise e esclarecimento das contradições antagônicas no desenvolvimento da sociedade, e chegar a conclusões que contribuam para a formação ideológica do povo.
A Revolução Socialista resolveu as contradições antagônicas em nosso meio social: já não temos uma sociedade dividida em classes, porque não existe uma burguesia que domina a classe trabalhadora, sendo assim, que sentido tem utilizarmos, para o desenvolvimento do conhecimento da maioria dominante, métodos baseados em concepções ideológicas da classe derrotada? Agitar a imparcialidade da neutralidade e a aversão à propaganda é o oposto do que deve ser feito com a intenção de que devemos projetar no tratamento de qualquer assunto e, mais ainda, naqueles que de uma maneira ou de outra exigem análise histórica. Do mesmo modo devemos elucidar as contradições não antagônicas que podem surgir na etapa de construção do socialismo.
Este último aspecto se dá no fato de haver pessoas que rechaçam os museus porque consideram que estes não contribuem em nada ao conhecimento e desenvolvimento da sociedade socialista, que se encerram em objetos frios, reminiscências da cultura do passado que a nada interessam, e nem os aceitam como centro de investigação e promoção de cultura e de artes do momento; e existem outros que conservam a concepção do museu velho, do museu templo, onde procuraram o que pensam ser válido e desencorajam as conquistas de seus contemporâneos. É a função do museólogo combater estes critérios dogmáticos utilizando o museu, em primeiro lugar, como veículo de expressão da cultura.
Por tudo isso, o museu deve ser objetivo em sua apresentação, porque em nossa sociedade é um instrumento de trabalho e de forma alguma um ornamento para agradar sentimentos elitistas, pelo contrário, sua primeira finalidade é vincular suas funções aos trabalhadores, construtores da sociedade socialista, componentes das grandes massas da população, ávidas por saber.
Estes princípios, aplicados de maneira sistemática, são as novas ferramentas de trabalho com que com a qual a museologia socialista deve contribuir para a formação científico-materialista das massas e, assim, conseguir que sejam reconhecidas na verdadeira essência de suas raízes histórico-culturais e possam interpretar com certeza os fenômenos da vida social e da natureza.
O PATRIMÔNIO CULTURAL COMO REFERÊNCIA HISTÓRICA DA IDENTIDADE
Assim como essas considerações descobrem a verdadeira função do museu, também criam em nós a consciência da importância do patrimônio cultural como referência histórica da identidade.
O Patrimônio é a herança cultural, a razão primeira da Museologia e suas evidências, os materiais dos quais se alimenta, daí a sua importância, pois sem ele não poderíamos reconstruir o desenvolvimento da sociedade. Essas evidências são os resultados materiais do trabalho humano e do processo de desenvolvimento da natureza em um ambiente específico com certas condições socioeconômicas ou físicas.
No caso do trabalho humano, este alcança sua mais alta significação na forma de produtos culturais, resultados de processos intelectuais superiores.
Embora haja a necessidade de um ordenamento científico dos conhecimentos e das disciplinas que estabelecem uma classificação tipológica do patrimônio em móveis ou imóveis, para ambas categorias se resultam válidos os conceitos expostos anteriormente, especificando que o patrimônio, em sua forma de bens móveis, está definido pela viabilidade de movimento, transferência, e por tanto, localização frequente e geral nas instalações museais.
Na mais ampla e integral expressão, dentro do conceito de museu tendem a incluir-se na atualidade os arquivos, zoológicos, jardins botânicos, sítios históricos e conjuntos arquitetônicos ou naturais de uma certa fisionomia.
É importante elucidar que não só devemos considerar patrimônio as evidências de caráter excepcional do ponto de vista morfológico, técnico, estético ou documental – como as obras de arte, por exemplo –, mas também os mais simples vestígios e até as tradições – inclusive orais, devidamente investigadas e processadas –, as mais elementares formas e hábitos de vida e os produtos da natureza.
Também é importante a gama cronológica de inserção do patrimônio, tal como há tendências que rechaçam os produtos do passado classificando-os como expressões reacionárias velhas e caducas, de sociedades com sistemas abolidos e concedem apenas importância aos resultados da contemporaneidade, outras tendências, no entanto, se trancam no passado e afirmam que apenas as evidências de épocas anteriores conformam o patrimônio. Já analisamos essas tendências de antemão, traduzidas na atitude em relação ao museu.
A unidade de medida do patrimônio não é um calendário. É a sua validade como evidência, como expressão do trabalho humano ou natural que lhe outorga essa condição, e o tempo é responsável por demonstrar essa validade pela função que desempenhou ou desempenha no desenvolvimento da sociedade.
Se é patrimônio o machete do escravo usado na plantação açucareira, não seria também patrimônio, ou será em breve, a máquina colheitadeira de cana-de-açúcar, expressão contemporânea do desenvolvimento da tecnologia, assim como dos meios de produção no socialismo e arma eficaz na luta contra o subdesenvolvimento?
Se as referências de nossa cultura aborígine não tivessem chegado até nós, não estaríamos cientes disso, nem poderíamos julgar a organização social à qual ela respondeu, nem seria possível realizar um estudo comparativo do grau de desenvolvimento da cultura Taíno em relação a referências de outras culturas. Essas referências são válidas desde os simples restos de alimentos encontrados em uma escavação até um machado axial de pedra esculpida.
Se desdenharmos da invenção do homem contemporâneo em seu meio e dos resultados de sua ação criadora não podemos assegurar uma compreensão cabal do presente e contribuir para a preservação das expressões realmente válidas do patrimônio contemporâneo, porque estaríamos violando elos de uma corrente e negando a dialética da história.
A história, por definição, é a narração ou relato dos fatos. No entanto, os eventos não podem ser contados, nem, portanto, históricos, se não soubermos seus traços, ou seja, para que um evento figure na história é necessária a referência, a partir da qual surge o relato ou narração do assunto. Portanto, no museu, evidências e histórias devem ser apresentadas no âmbito de um determinado contexto e dialeticamente inter-relacionadas. Compete aos museólogos e aos museógrafos restituir, estruturar e evidenciar esse contexto à luz de concepções filosóficas científicas e colocadas em função do objetivo da tese a demonstrar – todo museu também é uma tese demonstrada – uma série de instrumentos formais, como gráficos ou audiovisuais – e, por que não? – na função de propaganda para produzir estímulos e sensações geradoras de percepções que influenciam a consciência do visitante do museu. Anteriormente nos referimos à verdadeira função do museu: investigar, conservar, comunicar e, sobretudo, formar e educar; portanto, o museu é un fin – um objetivo – na medida em que sua concepção responde aos princípios e propósitos já analisados, mas é também un medio – um meio –, uma ferramenta, um instrumento valioso e indispensável no processo de formação científica e materialista das massas através do trabalho de educação, da efervescência cultural e da ação dinâmica de propaganda ativa.
O museu e o patrimônio são válidos em função e a serviço da investigação, compreensão e investigação do passado e na transformação do presente projetada para a construção do futuro. Portanto, desconsiderar a herança, ou usá-la para fins mercantilistas, é uma prática que nada tem a ver com a verdadeira atitude científica que deve ser possuída para a exploração dos bens culturais. No primeiro caso, porque sem o uso da validade que herdamos da cultura do passado, uma cultura socialista não pode ser criada, uma cultura para as massas, porque nos expomos a desenterrar tendências populistas que carregam confusão e propiciam posições que desvirtuam a concepção criadora da cultura material e ideológica necessária para a construção do socialismo.
Dirigindo-se aos jovens comunistas durante o III Congresso da União Juventudes Comunistas de 1920, Vladimir Ilich Lenin disse:
A cultura proletária não surge de fonte desconhecida, não é uma invenção dos que se denominam especialistas em cultura proletária. Isso é pura necessidade. A cultura proletária tem que ser fruto do desenvolvimento lógico do montante de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade de proprietários de terras, da sociedade burocrática.[2]
E mais adiante sentenciava: “[…] só se pode chegar a ser comunista quando se enriquece a memória com todo o tesouro da ciência acumulado pela humanidade.[3]
No que se refere à herança cultural e sua utilização com fins mercantis, têm-se adquirido características trágicas no mundo capitalista, com o pretexto de um inevitável avanço econômico, se tem destruído incontáveis obras que constituíam parte da cultura material de um povo, apagando o perfil de sua identidade por uma exploração turística metalizada e impensada.
Em oposição a esta situação de naufrágio cultural do universo capitalista, o socialismo tem sido fiel defensor da herança cultural do passado, nesse sentido, Cuba tem despendido um enorme esforço, pois apesar de sua condição de país em desenvolvimento e de luta contra o bloqueio econômico imposto pelo imperialismo norte americano – o que dificulta o trabalho de resgatar suas tradições culturais –, trabalha com firmeza indestrutível e alcançará seus objetivos no programa da Revolução. Para isso contamos com a orientação precisa e com a inspiração de nosso máximo guia, o Comandante Chefe Fidel Castro, e neste sentido nos remetemos a um fragmento de seu discurso realizado em comemoração do 24° Aniversário do 26 de Julho, na cidade de Camaguey, em que disse:
[…] vejam vocês, por exemplo, a quantidade de pessoas das que visitam Camaguey e buscam visitar a residência em que nasceu e viveu Ignacio Agramonte. Isso é de grande valor histórico-cultural e enriquece o espírito da comunidade e do povo.
As futuras gerações serão eternamente agradecidas pela conservação destes edifícios que têm mais de 100 anos a até mais de 200 anos.
Com estas frases, Fidel instrui as massas para que conservem seu patrimônio e o faz por considerar um meio de desenvolvimento dessa massa, observação que tem nos servido como espora para a realização desta tese.
CONCLUSÃO
Todo que fora elencado até aqui trata de resumir as razões pelas quais consideramos a validade do museu como um estimável veículo para a formação científico-materialista das massas e, entre essas razões, a indiscutível missão histórica de alcançar a conjugação de elementos que propagam os valores da cultura material e espiritual através da imagem, sua análise e interpretação, desempenhando-se como centro coletor, conservador, investigador, organizador e explorador de bens culturais, impedindo assim que estes desapareçam e que as evidências da transformação e desenvolvimento do homem e da natureza, que são meios imprescindíveis, cheguem fragmentadas para o conhecimento e desfrute das gerações posteriores.
RECOMENDAÇÕES
Todo exposto nos permite estabelecer algumas considerações fundamentais:
- Que se apliquem ao estudo e valorização do patrimônio as concepções científico-materialistas do mundo, da história e da cultura como um meio que tem por fim a definição de nossa identidade nacional e, em geral, do homem e da humanidade.
- Que se utilize o patrimônio em forma de evidências materiais, como ferramentas práticas de trabalho e estudo.
- Que se explorem pelos meios massivos de comunicação, mediante ações de divulgação e propaganda, o estudo e valorização do patrimônio para fomentar a conscientização das grandes maiorias acerca de sua importância na construção do socialismo.
- Que se leve em conta os museus, e, em geral, o patrimônio como instrumentos auxiliares necessários e como fontes inestimáveis de referências em educação integral das novas gerações, promovendo visitas de estudo às instalações museológicas e estimulando ações coordenadas para seu resgate e proteção.
[1] Lei n° 2. Lei dos Monumentos Nacionais e Locais. Gaceta Oficial de la República de Cuba (ed. ordinaria). La Habana, 6 de agosto de 1977, p. 285.
[2] LÊNIN, V. I.. Tarefas das Juventudes Comunistas. A cultura e a revolução cultural, p. 120-121.
[3] Ibdem, p. 121.
brabo
CurtirCurtir