Abaixo está disponibilizado para download o raro livro de Marx e Engels sobre a América Latina, a obra é uma coleção de textos dos autores sobre figuras e temas relacionados ao continente latino-americano.
A organização, introdução e notas são de Pedro Scoron. A tradução foi realizada por Cláudio Alberto Martins. Originalmente publicado em 1982, pela Editora Edições Populares.
Número de páginas: 186
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Introdução
A América Latina raramente foi objeto de atenção preferencial ou sistemática por parte de Marx e Engels. Para a consciência europeia do século XIX, esta região do mundo era quase uma terra incógnita, que somente grandes acontecimentos (a luta pela independência da América espanhola, a guerra no México e a intervenção anglo-franco-espanhola contra este mesmo país) obrigavam não poucos estudiosos e políticos do Velho Mundo a lembrarem de que nem sempre o termo “América” era um sinônimo substituível pela denominação “Estados Unidos”. Em que pese seus talentos e conhecimentos quase enciclopédicos, Marx e Engels não foram neste aspecto uma exceção. Seus textos que se referem direta ou indiretamente à América Latina, ainda que mais numerosos do que geralmente se supõe, representam uma parte muito pequena no todo de sua obra.
Essa Contribuição para uma História da América Latina constitui, em primeiríssimo lugar, material para a história do pensamento marxista, contra teorias bastante difundidas, segundo as quais, com a redação do Manifesto Comunista, estariam traçadas, quase que definitivamente, as grandes linhas da concepção do mundo que Marx havia formulado, linhas estas que somente nos decênios seguintes conheceriam uma prolongação harmoniosa. A análise destes textos contribui para tornar claro que a evolução do pensamento de Marx e Engels sobre a questão nacional é extremamente complexa. Diríamos que é inclusive acidentada.
A filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês, denominados acertadamente por Lênin de as “três fontes” ou “três partes integrantes do marxismo”, fundiram-se aqui de maneira menos feliz, mais conflitiva e trabalhosamente que em outras esferas do ideário de Marx. É possível reconhecer várias etapas no desenvolvimento do pensamento de Marx e Engels sobre o problema nacional, e, em particular, sobre a expansão dos grandes países do Ocidente Europeu, às custas de países não-europeus.
1) A primeira etapa, com data de início imprecisa, mas não posterior a 1847 e que se encerra aproximadamente com o término da Guerra da Criméia, em 1856. O característico deste período é que Marx e Engels combinam o repúdio moral às atrocidades do colonialismo, com uma mais ou menos velada justificação teórica deste mesmo colonialismo. Os famosos artigos sobre a dominação britânica na Índia enunciam notavelmente esta posição, resumida assim pelo próprio Marx em uma carta de 14 de junho 1853, destinada a Engels: “Prossegui nesta guerra oculta (a favor da centralização) no meu primeiro artigo sobre a Índia, no qual se apresenta como revolucionária a destruição da indústria local pela Inglaterra. Isto lhes parecerá muito shocking (aos editores do The New York Daily Tribune, periódico americano, do qual Marx era colaborado). Ademais, a administração britânica na índia, era, em seu conjunto, indecente e continua sendo até o presente”. Pelo julgamento de Marx e Engels, o capitalismo desenvolvido exercia uma influência “civilizadora” (em algumas ocasiões eles mesmo colocava esta palavra entre aspas) sobre os países “bárbaros”, ainda não capitalistas, tirava-os de sua quietude (uma quietude muito hegeliana), diga-se de passagem, para lança-los violentamente na senda do progresso histórico. As consequências devastadoras da livre concorrência em escala mundial eram tão positivas, em última análise, como as que resultavam daquela no interior de um país capitalista qualquer. A liberdade comercial acelerava a revolução social. Era então natural que Marx, ainda que “somente neste sentido revolucionário”, se pronunciasse nesta época “a favor do livre intercambio”. Ainda, em fins da década de 1850 Marx ironiza o protecionista Carey porque este, ainda que considerasse “harmônico” o aniquilamento da produção patriarcal pela produção industrial, dentro de um país determinado, considerou “inarmônico” que a grande indústria inglesa dissolvesse as formas “patriarcais ou pequeno-burguesas” da produção nacional de outros países. Carey relegava ao esquecimento “o conteúdo positivo destes processos de dissolução (…) em sua manifestação plena, correspondente ao mercado mundial”.
Dentro da própria Europa, determinadas nações eram, para Marx e Engels, as portadoras do progresso histórico, enquanto que as demais não tinham outra missão que a de se deixar absorver por vizinhos mais poderosos. Esta tese, pode perguntar o leitor, não contradizia a exigência internacionalista formulada no Manifesto, a palavra de ordem demandava à unidade dos proletariados de todos os países, excluindo implicitamente as rivalidades nacionais entre eles? Marx e Engels possivelmente responderiam que a pergunta está mal formulada: aquela palavra de ordem só podia ter validade para as relações entre os países… onde houvesse proletários. “Em todos os países civilizados o movimento democrático aspira em última instância à dominação política pelo proletariado. Pressupõe, portanto, que exista um proletariado; que exista uma burguesia dominante; que exista uma indústria que produza o proletariado e que tenha tornado dominante a burguesia. De tudo isto, nada encontramos na Noruega e nem na Suíça dos cantões primitivos”. (Grifo nosso – P.S.) A fortiori, pretende aplicar à guerra entre os Estados Unidos e o México, por exemplo, os princípios do que depois se chamou de internacionalismo proletário, seria visto por Marx e Engels como o cúmulo da desorientação histórica.
2) Por volta de 1856 se abre uma nova etapa no pensamento de Marx e Engels, sobre o problema nacional e colonial, a qual dura, também aproximadamente, até a fundação da Internacional (1864). Trata-se de uma fase de transição, Marx e Engels não revisam claramente suas concepções teórica sobre a relação entre as grandes potências europeias e o mundo colonial a semicolonial, porém em seu escritos sobre o tema, o aspecto que prevalece, na maior parte dos casos, é a denúncia dos abusos daquelas potências e a reivindicação do direito que possuíam os chineses, hindus, etc., de resistir contra os agressores e ocupantes estrangeiros. Um fato interessante é que a maior parte dos trabalhos de Marx e Engels sobre o colonialismo se situam nesta etapa, que em certa medida coincide com a sua atividade jornalística mais intensa.
3) Os limites do terceiro período podem se fixar entre 1864 e a morte de Marx. Se de um certo ponto de vista é exato que Marx é um dos principais fundadores da Internacional, não menos certo é que esta contribui não para fundar, mas sim para desenvolver o internacionalismo de Marx, para livrá-lo de elementos contraditórios em relação a este internacionalismo. É notável, neste período, a mudança da posição de Marx a respeito da questão irlandesa. Ainda que em 1848 Marx fazia sua a ambígua palavra de ordem cartistas, de “estabelecer uma firme aliança entre os povos da Irlanda e Grã-Bretanha”, em cartas de novembro de 1867 escreve a Engels: “Antes considerava impossível a separação entre Irlanda e Inglaterra. Agora considero inevitável, se bem que após a separação poder-se-á estabelecer uma federação. O que necessitam os irlandeses é: 1- um governo próprio e independente da Inglaterra; 2 – uma revolução agrária (…); 3 – tarifas protetoras contra a Inglaterra (grifo de Marx). A união (de 1801 entre Inglaterra e Irlanda), ao tornar sem efeito as tarifas protecionistas estabelecidas pelo parlamento irlandês, destruiu toda a vida industrial na Irlanda. O livre cambista (seulement dans ce sens revolutionnaire – revolucionário somente neste sentido) de 1848, em 1867 é um lúcido expositor da necessidade de países como a Irlanda defenderem da concorrência britânica suas incipientes industrias, erigindo barreiras protecionistas. Não é menos profunda, durante o período, a evolução do pensamento de Marx com respeito à India. Ainda que não generalize suas descobertas empíricas neste terreno, o autor de O Capital se aproxima da noção de subdesenvolvimento. Estamos longe da tese segundo a qual o capitalismo inglês, mefistofelicamente condenado a trazer o bem, malgrado sua natureza maligna, engendraria a indústria moderna em sua imensa colônia asiática. “Mais do que na história de qualquer outro povo, a admnistração inglesa na índia oferecec a história de experimentos malogrados e realmente ridículos (na prática) infames). Em Bengala, os ingleses criaram uma caricatura da grande propriedade rural inglesa; no sudoeste da Índia, uma caricatura da propriedade parcelária; no noroeste, na medida em que foi possível, transformaram a comunica econômica indiana, com sua propriedade comum da terra, numa caricatura de si mesma.”
[Página 10 e 11 do livro não foram escaneadas, faltam alguns parágrafos nesta seção.]
Insuficientemente representada, em compensação, está a etapa que localizamos entre a fundação da Internacional e a morte de Marx. Sente-se a falta, em particular, de análises da clareza e contundência alcançadas por algumas que por essa mesma época Marx dedicar à Irlanda e à Índia. Os textos latino-americanos, escritos pelo velho Engels, em seus doze últimos anos de vida, ainda que interessantes, tampouco caracterizaram suficientemente a evolução experimentada neste período por suas ideias sobre o problema das nacionalidades.

Parágrafo à parte merece o artigo sobre Bolívar, escrito por Marx em 1858. O maior dos teóricos europeus do século XIX compõe uma biografia da mais relevante figura latino-americana daquele século; se o resultado não foi tão importante como deveria ser, isto se deve, em parte, a alguns dos motivos que muito esquematicamente esboçamos nas páginas precedentes. Ainda que por essa data Marx evoluísse para posições diferentes, compartilhava ainda do julgamento unanimemente pessimista de seu mestre Hegel sobre a América Latina. Outros elementos gravitaram nele também, e sempre no mesmo sentido negativo. A afeição de Bolívar pela pompa, pelos arcos triunfais, pelas proclamas, assim como pelo culto nascente à personalidade do Libertador, podem haver induzido Marx a vê-lo como uma espécie de Napoleão III avant la letre, isto é, alarmantes semelhanças com um personagem que despertava em Marx o mais profundo e justificado desprezo (Não nos consta que alguma vez haja comparado Luís Bonaparte com o general e político sul-americano, porém, em compensação, sabemos que os assimilou separadamente ao mesmo tertium comparationis, o imperador haitiano Soulouque). O curioso é que Marx – cuja informação sobre Bolívar era insuficiente, porém não tão pobre como se acredita – em seu ensaio biográfico, passou por alto ou simplesmente deixou de lado temas que, se não estivesse tão entregue à tarefa de demolir a figura do Libertador, teriam lhe interessado vivamente. Nas Memórias do general Miller, sem dúvida a melhor das fontes por ele consultadas, aparecem escassas, porém sugestivas referências à atitude das classes sociais latino-americana frente à guerra de independência, á situação dos índios e o al alcance da abolição bolivariana do pongo e da mita, o projeto de Bolívar de vender as minas do Baixo e Alto Peru aos capitalistas ingleses (projeto repugnado pelas classes altas, partidárias, diga-se de passagem, de que as minas fossem cedidas gratuitamente). Porém, destes e de outros temas, cujo tratamento pela pena de Marx teria sido bastante frutífero, não encontramos vestígio na biografia de Bolívar, centra na história militar e política. Com isto não queremos dizer que este extenso artigo careça de relevância. Mais importante do que uma biografia de Bolívar, no entanto, o opúsculo de Marx tem seu valor mais apropriado como documento para o estudo de Marx.
Alguns dos textos de Marx e Engels incluídos neste volume podem resultar surpreendentes para quem, em matéria de marxismo, se tenha limitado à leitura das Obras Escolhidas ad usum Deslphini ou de certos manuais. Pode ocorrer também que algumas pessoas entendam que a publicação de tais textos não seja oportuna que inclusive seja prejudicial, já que o conhecimento dos mesmo poderia depreciar o bom nome dos clássicos, ou alimentar a suposição de que “Marxista” (se por este adjetivo se entende o que tem a ver com a obra de Marx) não, em todos os casos equivalente exato a “científico”. Para edificação “dessas almas crédulas, em que produz calafrios cada dúvida de que Marx e Engels pudessem alguma vez terem-se equivocado em uma vírgula”, transcrevermos o que sobre outro culto, o dedicado a Bolívar, expressou o historiador venezuelano Germán Carrera Damas: “É natural pois, que mais de uma consciência se alarme quando não vê coincidir a representação que do herói se fez com a realidade de sua vida histórica, e compreensível também, tratando-se de tais consciências, que não se tenha vacilado em mutilar, dissimular ou tergiversar o que lhes parecia incongruente com seu enfoque, até o ponto de que bem poderíamos pensar que o culto a Bolívar acabará por fazer de sua vida esse relato insosso, mostruário de virtudes e de predestinação em que tem sido convertidas as vidas dos santos para uso de catequese”. O problema consiste, a nosso ver, em saber se a aplicação criadora dos elementos revolucionários e perduráveis do marxismo é compatível com o ocultamente e escamoteação dos escritos de Marx. Modestamente, entendemos que não. A verdade, como dizia Lênin, é sempre revolucionária.
Esta recopilação tem, ao que saibamos, dois antecedentes. O primeiro é a seleção “México em la obra de Marx y Engels” de Domingo P. de Toledo y J., publicada há 33 anos na revista El Trimestre Económico e, como separata, pelo Fondo de Cultura Económica. O recopilador – que naturalmente incluiu os trabalhos sobre o México – na maior parte dos casos utilizou como fonte a não muito confiável tradução francesa de Molitor. O segundo precedente é “Marx y América Latina”, uma antologia que publicamos em 1968, na revista uruguaia Cuaderno de Marcha. Não incluía – salvo um par de exceções – trabalhos de Engels, nem as passagens sobre a América Latina que aparecem nas obras mais difundidas de Marx, e tampouco muitos fragmentos que localizamos posteriormente àquela data. A presente recopilação é aproximadamente três vezes mais ampla que a de 1968. Muitas das páginas que a compõem são inéditas em castelhano, como em Português.
Como o leitor poderá apreciar pela referência bibliográfica que segue cada texto, nossa fonte principal foram as Marx Engels Werk (MEW), publicadas na República Democrática Alemã. Tal edição supera, notoriamente, não todas, porém sim muita das falhas que caracterizavam as recopilações feitas durante a época de Stálin. Em todos os casos que nos foi possível, traduzimos diretamente do inglês ou do francês os textos de Marx e Engels redigidos nesses idiomas. Quando não pudemos localizar o original inglês de algum escrito de Marx, tomamos como base a tradução alemã do MEW e, caso houvesse, alguma versão em castelhano, o que em todas as oportunidades é indicado expressamente.
Agrupamos os textos por temas: tratando-se em muitos casos de fragmentos, uma ordenação puramente cronológica produziria um resultado próximo do caos. Em cada caso, entretanto, se anota a data de publicação do trabalho, e frequentemente a da redação. Desta maneira, o leitor poderá restabelecer a vinculação cronológica entre os textos situados em capítulos diferentes.
Sempre que nos pareceu necessário, acrescentamos notas explicativas – algumas vezes – polêmicas – que teriam sido muito mais breves se nossa disponibilidade de tempo tivesse sido maior. No caso da biografia de Bolívar, a extensão se deve, em parte, a que cada vez que nos parece aconselhável, citamos os argumentos com que o próprio Bolívar respondeu às críticas formuladas contra ele, críticas que, decênios mais tarde, foram recolhidas por Marx.
Resolvemos diversas dificuldades de tradução graças à ajuda de Margarita Rittau, a quem deixamos aqui a constância de nosso agradecimento.
Pedro Scoron