O que é a Arte e a Cultura Popular para Angela Davis

Em 1951, Paul Robeson fez a seguinte declaração em uma conferência, na cidade de Nova York, organizada em torno do tema dos direitos iguais para pessoas negras nas artes, ciências e profissões:

Há espoliadores circulando em nossa terra, semelhantes àqueles que tentaram sufocar a nossa república em seu nascimento. Espoliadores que teriam mantido meu amado povo em uma servidão infinita, uns poucos poderosos que abençoaram Hitler quando ele destruiu um amplo segmento de um grande povo […].

Todos [os] milhões do mundo ficam perplexos diante da visão e do nome América – mas eles nos amam; eles se voltam para nós para que ajudemos a criar um mundo onde possamos viver em paz e amizade, onde possamos intercambiar a excelência de nossas várias artes e ofícios, as múltiplas maravilhas de nossas criações científicas em comum, um mundo onde possamos nos regozijar diante do poder livre de amarras do nosso eu mais profundo, diante do potencial de grandes massas de pessoas. Para eles, nós somos a verdadeira América. Vamos nos lembrar disso. E aprendamos como levar às grandes massas do povo da América nossa cultura e nossa arte. Pois, afinal, do que estamos falando quando falamos sobre a cultura da América hoje? Estamos falando sobre uma cultura que está restrita a poucas, pouquíssimas pessoas. Quantas trabalhadoras quantas trabalhadoras e trabalhadores conseguem ir ao teatro? Realizei concertos por vinte anos, recitais com assinatura, os 2 mil lugares vendidos antes que qualquer pessoa negra da comunidade, qualquer trabalhadora ou trabalhador pudesse sequer ouvir falar sobre um ingresso […]. Apenas quando fui a sindicatos, cantei em piquetes e nas batalhas pela liberdade de nosso povo — apenas desse modo trabalhadoras e trabalhadores desta terra puderam me ouvir. [2]

Passadas mais de três décadas, esse problema formulado por Paul Robeson permanece um dos principais desafios a ser enfrentados por artistas progressistas e pessoas envolvidas no ativismo político: como reconhecemos de maneira coletiva o legado da nossa cultura popular e o transmitimos para as massas de nosso povo, a quem, em sua maioria, tem sido negado o acesso aos espaços sociais reservados à arte e à cultura? Nos Estados Unidos, uma tradição rica e vibrante da arte do povo surgiu da história da militância trabalhadora, das lutas da população afro-americana, de mulheres e de pacifistas. É fundamental explorar essa tradição, compreendê-la, reivindicá-la e tirar dela a sustentação cultural que pode nos ajudar a preparar uma contraofensiva política e cultural às instituições e às ideias retrógradas semeadas pelo capitalismo monopolista avançado.

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Paul Robeson (1898 – 1976)

Como Marx e Engels observaram há muito tempo, a arte é uma forma de consciência social — uma forma peculiar de consciência social, que tem o potencial de despertar nas pessoas tocadas por ela um impulso para transformar criativamente as condições opressivas que as cercam. A arte pode funcionar como sensibilizadora e catalisadora, impelindo as pessoas a se envolverem em movimentos organizados que buscam provocar mudanças sociais radicais. A arte é especial por sua capacidade de influenciar tanto sentimentos como conhecimento. Christopher Caudwell, o comunista britânico que escreveu amplamente sobre estética, certa vez definiu a função da arte como a socialização dos instintos humanos e a educação das emoções humanas: “A emoção, em todo o seu intenso colorido, é a criação de eras de ação da cultura sobre os instintos cegos, insensíveis. Toda arte, toda educação, toda experiência social cotidiana a trazem à tona [m] e conduzem e dão forma às suas inúmeras manifestações” [3].

A arte progressista pode ajudar as pessoas a aprender não apenas sobre as forças objetivas em ação na sociedade em que vivem, mas também sobre o caráter intensamente social de suas vidas interiores. Em última análise, ela pode incitar as pessoas no sentido da emancipação social. Embora nem toda arte progressista tenha de lidar com problemas explicitamente políticos — na verdade, uma canção de amor pode ser progressista se incorporar certa sensibilidade em relação à vida de mulheres e homens da classe trabalhadora —, quero explorar especificamente os significados sociopolíticos evidentes da arte com o objetivo de definir o papel que ela pode representar na aceleração do progresso social.

Por evidenciar os fortes vínculos entre a arte e a luta pela libertação negra, a história da cultura afro-americana contém importantes lições para aquelas pessoas interessadas em estreitar os laços entre arte e movimentos populares. De todas as formas de arte historicamente associadas à cultura afro-americana, a música atuou como a principal catalisadora no despertar da consciência social da comunidade. Durante o período da escravidão, as pessoas negras foram vítimas de uma estratégia deliberada de genocídio cultural, que proibiu praticamente todos os costumes africanos, com exceção da música. Se escravas e escravos receberam permissão para cantar enquanto labutavam nos campos e para incorporar a música em seus rituais religiosos, isso se deu porque a escravocracia não conseguiu apreender a função social da música em geral e, em particular, seu papel central em todos os aspectos da vida na sociedade africana ocidental. Em consequência disso, o povo negro foi capaz de criar com sua música uma comunidade estética de resistência que, por sua vez, encorajou e nutriu uma comunidade política de luta ativa pela liberdade. Esse continuum de lutas, que é estético e político ao mesmo tempo, estendeu-se dos spirituals de Harriet Tubman e Nat Turner até “Poor Man’s Blues” [Blues do homem pobre], de Bessie Smith, “Strange Fruit” [Fruta estranha], de Billie Holiday, “Freedom Suíte” [Suíte da liberdade], de Max Roach, e mesmo até os raps progressistas da cena musical popular dos anos 1980.

Com o spiritual afro-americano foi criada uma linguagem de luta que era tão facilmente compreendida por escravas e escravos quanto mal interpretada pelos senhores. Embora a escravocracia tentasse estabelecer uma autoridade absoluta sobre a vida pessoal e a vida comunitária das pessoas escravizadas, os spirituals eram ao mesmo tempo a causa e a comprovação de uma consciência política autônoma. Essas canções formaram uma linguagem complexa que tanto incorporava quanto trazia à tona um profundo anseio pela liberdade. Quando escravas e escravos cantavam “Didn’t My Lord Deliver Daniel and Why Not Every Man?” [Não libertou Daniel o Senhor, então por que não todos os homens?], utilizavam temas religiosos para representar as adversidades concretas de sua própria condição e seu desejo terreno de ser livres. Quando cantavam “Samson Tore the Building Down” [Sansão derrubou o edifício], faziam uma referência simbólica ao seu desejo de ver o edifício opressivo da escravidão vir abaixo.

Se meu desejo se realizasse,
Oh, Senhor, Senhor,
Se meu desejo se realizasse;
Se meu desejo se realizasse,
Eu derrubaria este edifircio [13]

Muitas vezes, a música religiosa da comunidade escrava representava papéis reais e instrumentais na operação da Underground Railroadtb) e na organização de insurreições antiescravagistas. A letra de “Follow the Drinking Gourd” [Sigam a cuia de beber], por exemplo, literalmente trazia um mapa de uma seção da Underground Railroad, e “Steal Away to Jesus” [Devote-se a Jesus] era uma canção em código para reunir as pessoas envolvidas na organização da rebelião de Nat Turner. Mas, mesmo quando os spirituals não estavam relacionados a ações específicas da luta pela liberdade, eles sempre serviam, epistemológica e psicologicamente, para moldar a consciência das massas do povo negro, garantindo que as chamas da liberdade estariam acesas em seu interior. Como Sidney Finkelstein observou, “a luta antiescravagista foi a essência da luta pela democracia, então os spirituals encarnavam em sua música e em sua poesia a afirmação de uma inquebrantável exigência de liberdade”[41. Os spirituals influenciaram diretamente a música associada a outros movimentos populares em vários momentos da história dos Estados Unidos. Muitas canções dos movimentos trabalhador e pacifista têm origem em músicas religiosas cantadas por escravas e escravos, e as “canções da liberdade” do movimento pelos direitos civis eram spirituals cujas letras às vezes passavam por sutis modificações para refletir de modo mais concreto as realidades daquela luta. Mesmo o blues, frequentemente apresentado de forma equivocada como um estilo musical centrado em aspectos triviais do amor sexual, está estreitamente ligado aos anseios do povo negro por liberdade. Nas palavras de James Cone:

Para muitas pessoas, uma canção de blues é sobre sexo ou sobre uma mulher solitária saudosa de seu companheiro inconstante. Entretanto, o blues é mais do que isso. Para ser exato, o blues envolve sexo e o que ele significa para a expressão corporal humana, mas em um nível muito mais profundo […] o blues apressa uma perspectiva negra sobre a incongruência da vida e a tentativa de encontrar significado em uma situação repleta de contradições. Como disse Aunt Molly Jackson, de Kentucky: “O blues é feito por pessoas trabalhadoras […] quando elas têm um monte de problemas de trabalho para resolver, quando seus salários são baixos e elas não sabem para que lado se voltar nem o que fazer”.

De fato, Bessie Smith, a Imperatriz do Blues, alcançou o ápice de sua carreira quando compôs e gravou uma canção que expressava uma mensagem política inequívoca, intitulada “Poor Man’s Blues”. Essa música evocava a exploração e a manipulação da classe trabalhadora pelas pessoas ricas, retratando estas últimas como parasitas que acumulavam sua fortuna e lutavam suas guerras com o trabalho das pessoas pobres.

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Billie Holliday (1915 – 1959)

Outro pináculo na evolução da música afro-americana foi quando Billie Holiday incluiu a canção política antilinchamentos “Strange Fruit” em seu repertório. Ao longo de toda a carreira de Lady Day, milhares de pessoas foram levadas a confrontar a brutal realidade do racismo do Sul, mesmo quando buscavam escapar dos problemas da vida cotidiana por meio da música, do álcool e da atmosfera enfumaçada das casas noturnas. Sem dúvida, algumas acabaram por participar ativamente no movimento antilinchamentos daquela época. Que Billie Holiday tenha gravado “Strange Fruit” em 1939 não é acidental. Nem o fato de a letra ter sido composta pelo poeta progressista Lewis Allan, que estava ligado às lutas ativistas dos anos 1930. Tal década continua sendo o período mais empolgante e exuberante da evolução da história cultural dos Estados Unidos. O processo de desenvolvimento de um movimento artístico popular maduro nos dias de hoje pode ser facilitado por uma séria análise das conquistas de então. Como observa Phillip Bonosky em um artigo de 1959 na Political Affairs intitulado “The Thirties in American Culture” [Os anos trinta na cultura norte-americana]:

Há todos os motivos do mundo para que uma reação oficial deseje que os anos trinta sejam esquecidos como se nunca tivessem existido. Pois aquela época permanece um divisor de águas na tradição democrática da América. Trata-se de um momento que continuará a servir tanto no presence quanto no futuro como um lembrete e um exemplo de como um povo desperto, liderado e impelido pela classe trabalhadora, pode alterar toda a compleição da cultura de um país. [6]

Intelectuais da ideologia burguesa tentaram, por isso,

deturpar e extinguir da consciência do povo norte-americano e, principalmente, de cada artista e intelectual o fato de que um dia existiu nos Estados Unidos a produção de uma cultura popular e que ela foi inspirada, em grande medida, pela classe trabalhadora, com frequência liderada e amplamente influenciada pelo Partido Comunista. [7]

Respondendo às acusações feitas ao Partido Comunista de que ele “deprecia e banaliza o domínio da cultura”, Bonosky argumenta que nenhum outro partido político em toda a história dos Estados Unidos jamais manifestou uma preocupação tão séria com a arte. O Partido Comunista estava envolvido, por exemplo, na convocação, em 1935, de um Congresso de Escritores e Escritoras dos Estados Unidos – que afirmava ter assinaturas de Langston Hughes, Theodore Dreiser, Richard Wright e Erskine Caldwell. Como resultado do trabalho do Partido e de outras forças progressistas, artistas conquistaram o direito de trabalhar em projetos sob os auspícios do Work Progress Admnistration [Administração para o Progresso do Trabalho; WPA, na sigla original]. O que artistas da WPA realizaram foi uma conquista sem precedentes na história deste país: a arte foi levada ao povo em uma escala realmente grandiosa. Ela não podia seguir confinada ao domínio privado, monopolizada por aquelas pessoas cuja classe de origem lhes garantia acesso cotidiano a galerias, museus, teatros e salas de concerto. Pela primeira vez, a arte norte-americana se tornou arte pública. Isso significou, por exemplo, que a classe trabalhadora, ao utilizar o serviço de agências dos correios, podia ao mesmo tempo apreciar os murais pintados ali. Escultura, música, e teatro estavam entre as outras expressões levadas diretamente ao povo durante aquele período. Além disso, citando Bonosky mais uma vez, quando esses programas foram ameaçados de dissolução.

Foi o Partido Comunista que lutou de modo tão heroico para salvar os projetos de arte e, com eles, obvio, a concepção de que a arte tinha responsabilidades em relação as pessoas de quem esses projetos eram a encarnação viva. Pela primeira vez na história norte-americana, artistas, escritoras e escritores participaram de piquetes em nome e em defesa do direito de artistas serem artistas.

A abordagem radical da arte e da cultura inspirada pelo Partido Comunista e outras forças da esquerda durante a Grande Depressão envolveu mais do que criar uma arte que fosse acessível às massas na esfera pública. Muito da arte daquele período era arte popular, no sentido de que, no processo de elaborar o conteúdo de suas criações estéticas, artistas aprendiam como dar atenção à vida material e emocional da população trabalhadora da América. Meridel Le Sueur investigou a vida da população trabalhadora em sua literatura, assim como Woody Gugthrie compôs canções sobre suas vivências e lutas. Essa emergente arte popular era, portanto, uma contestação à cultura burguesa dominante. Artistas não apenas sentiam a obrigação de defender seu direito de expressar as reais dores, alegrias e aspirações da classe trabalhadora por meio de sua arte, mas um número grande acabou se tornando ativista das lutas trabalhadoras, da batalha pelos direitos das pessoas desempregadas, em especial, da população negra. Nesse processo, obvio, jovens artistas surgiram das fileiras de lutas.

A estética burguesa sempre buscou situar a arte em uma esfera transcendente, além da ideologia, além das realidades socioeconômicas e, certamente, além da luta de classes. De uma infinidade de maneiras, a arte tem sido representada como produto subjetivo puro da criatividade individual. No artigo “Party Organization and Party Literature” [A organização do partido e a literatura de partido), de 1905, Lênin desafiou essa visão e desenvolveu o princípio do partidarismo na arte e na literatura —um princípio com o qual grande número de artistas progressistas de 1930 estava de acordo, ao menos implicitamente. Lênin deixou bastante evidente que, ao insistir para que as criações estéticas fossem partidárias, ele não estava defendendo a ditadura do partido sobre a arte e a literatura.

Não há dúvida de que a literatura não é nem um pouco sujeita a ajustes mecânicos ou ao nivelamento à regra da maioria sobre a minoria. Não há dúvida também de que, nesse campo, deve ser permitida uma esfera de ação mais ampla à iniciativa pessoal, à inclinação individual, ao pensamento e à fantasia, na forma e no conteúdo?

Ele observou, entretanto, que a reivindicação burguesa por uma liberdade subjetiva abstrata na arte era, na verdade, um estrangulamento da liberdade de criatividade. A literatura e a arte, ele disse, devem ser livres não apenas da censura policial, “mas do capital, do carreirismo e […] do individualismo anarquista burguês. A literatura e a arte partidárias serão realmente livres porque promoverão a liberdade de milhões de pessoas’.

Quais são as perspectivas atuais para a expansão de uma arte que não tem medo de declarar sua relação partidária com as lutas populares por igualdade econômica, racial e sexual? Devemos não só reconhecer e defender o legado cultural que nos tem sido transmitido ao longo de décadas, mas também identificar os indícios evidentes ou sutis de avanços progressistas nas formas contemporâneas de arte popular. Nos últimos anos, por exemplo, filmes partidários como Silkwood o retrato de uma coragem [Silkwood e Desaparecido, um grande mistério [Missing] surgiram como faróis em meio aos valores usualmente medíocres, sexistas, violentos e, em geral, anti-humanos que caracterizam a maioria dos produtos da indústria de cinema de Hollywood.

Para considerarmos outra forma de arte, algumas das grandes estrelas da cultura musical popular de hoje são, sem dúvida, gênios da música, mas distorceram a tradição musical negra desenvolvendo brilhantemente sua forma enquanto ignoram seu conteúdo de luta e liberdade. Ainda assim, encontra-se luz na música negra contemporânea, em trabalhos de artistas como Stevie Wonder e Gil Scott-Heron, que reconheceram o legado da música negra tanto na forma como no conteúdo. Suas criações individuais despertaram no público uma percepção verdadeira da dignidade da liberdade humana.

A canção “Happy Birthday” [Parabéns a você], de Stevie Wonder, tocou o coração de centenas de milhares de jovens, fazendo com que se mobilizassem em apoio ao movimento para que o aniversário do Dr. Martin Luther King Jr. fosse declarado feriado nacional. O fato de Reagan ter sido obrigado a assinar o projeto promulgando essa lei, apesar da oposição que ele articulou abertamente, demonstra que o sentimento popular pode prevalecer sobre o racismo oficial mais intransigente que este país testemunhou em muitos anos.

A música imensamente popular de Gil Scott-Heron, “B-Movie” [Filme B], lançada logo depois da eleição de Reagan para seu primeiro mandato, catalisou fortes sentimentos anti-Reagan entre a opinião pública negra jovem. A canção-poema revelou especificamente os esforços de propagandistas de Reagan em declarar que ele havia recebido um “mandato” do povo.

A primeira coisa que quero dizer é “mandato”
uma ova
Porque parece que fomos convencidos
De que 26% das pessoas registradas para votar,
Que nem mesmo são 26% da população norte-americana,
Constituem um mandato ou uma vitória esmagadora […]
Mas, ah, sim, eu me lembro […]
Eu me lembro do que eu disse sobre Reagan
Atuou como um ator/Hollywood
Atuou como um liberal
Atuou como o general Franco
Quando ele atuou como governador da Califórnia
Depois de atuou como um Republicano
Depois ele atuou como se alguém fosse votar nele para presidente
E agora ele atua como se 26% das pessoas registradas para votar
Realmente constituíssem um mandato
Somos todos atores nessa história, na verdade

O álbum Bom in the U.S.A., de Bruce Springsteen, foi enaltecido por Reagan, que elogiou “a mensagem de esperança das canções […] do próprio Bruce Springsteen, da Nova Jersey”, ao fazer campanha naquele estado para a eleição presidencial de 1984. Entretanto, é mais provável que a assessoria de Reagan simplesmente tenha presumido que a capa vermelha, branca e azul do álbum fosse um indício da aceitação do patriotismo fraudulento promovido pela administração Reagan. Dois dias depois dos comentários de Reagan, Springsteen divulgou uma canção intitulada “Johnny 99”, dizendo: “Eu não acredito que o presidente tenha ouvido esta”, e seguiu cantando sobre um trabalhador da indústria automotiva desesperado, endividado e desempregado que chegou ao corredor da morte após assassinar uma pessoa durante um assalto. Outra de suas músicas, “My Hometown” [Minha cidade natal], é sobre a desolação acarretada pelo fechamento de fábricas:

hora as vitrina cobertas de branco da rua principal e as lojas vazias
Dão a impressão de que ninguém mais quer vir para cá
Estão fechando as tecelagens ao lado dos trilhos da ferrovia
O contramestre diz: esses empregos estão indo embora, rapazes, e não vão voltar
Para a sua cidade natal […]

Um novo gênero musical com raízes na tradição milenar da narração de histórias tem se tornado cada vez mais popular entre a juventude de hoje. O rap reflete inequivocamente a vida cotidiana das pessoas da classe trabalhadora, em especial jovens da comunidade urbana afro-americana e latina. Muitas canções de rap incorporam uma consciência progressista a respeito das questões políticas atuais, como demonstrado, por exemplo, pelo rap a seguir, de Grandmaster Flash e Melle Mel, que convoca a juventude a se associar à campanha presidencial do reverendo Jesse Jackson, em 1984:

Oh, lindos e vastos os céus
E suas ondas âmbar de mentiras não ditas
Olhe para todos os políticos tentando executar um trabalho
Mas eles não conseguem evitar parecer uma quadrilha
Pegam uma propina polpuda, guardam
Veja o FBI, veja a CIA Eles querem um míssil maior e um jato mais rápido
Mas se esqueceram de contratar os veteranos
Hipócritas e Pais Tomás estão falando bobagem
Vamos falar sobre Jesse
Liberdade e Justiça são coisas do passado
Vamos falar sobre Jesse
Eles querem uma nação mais forte a qualquer custo
Vamos falar sobre Jesse
Mesmo que isso signifique que tudo em breve estará perdido
 Vamos falar sobre Jesse
Ele começou de baixo, agora ele está no topo
Vamos falar sobre Jesse
 Ele provou que consegue, então não pare nunca
Agora vamos nos unir e deixar o mundo todo ver
Nosso irmão Jesse Jackson entrar para a história
Então vote, vote, vote
Todo mundo se levante e vote […]

As pessoas jovens estão se tornando mais e mais conscientes da necessidade de fazer oposição à corrida armamentista nuclear. Uma canção de rap popularizada pelo filme A loucura do ritmo [Beta Street], de Harry Belafonte, traz o seguinte aviso:

Um jornal queima na areia
E a manchete diz: “Homem destrói homem”
Extra, extra, leia todas as más notícias
Sobre a guerra pela paz
Que todo mundo perderia
A ascensão e a queda do último grande império
O som do mundo inteiro pegando fogo
A luta implacável, a aposta desesperada
Os jogos que deixaram o mundo todo na ruína
As trapaças, as mentiras, os álibis
E a tola tentativa de conquistar o céu
Perdido no espaço, e do que vale isso
O presidente acaba de se esquecer da Terra
Gastando bilhões e talvez até trilhões
O custo das armas chega a zilhões […]
Uma briga pelo poder uma chuva nuclear
As pessoas gritam no momento mais tenebroso
Suas visões não vistas e vozes não ouvidas
E finalmente a bomba tem a última palavra […]
Temos de sofrer enquanto as coisas ficam mais duras
E é por essa razão que precisamos ficar mais fortes
Então aprenda com o passado e trabalhe pelo futuro
Não vire escravo de nenhum computador
Porque as crianças da humanidade herdam a Terra
E o futuro do mundo está em suas mãos. [14]

Embora possam ser apresentados numerosos exemplos de tendências progressistas na música popular contemporânea, seria uma interpretação totalmente equivocada da indústria da música dizer que tais canções são representativas do que a juventude ouve nas transmissões de rádio. Em geral, a cultura musical popular que se dirige às pessoas jovens foi rigorosamente moldada pelas exigências do mercado capitalista, que avalia os produtos de acordo com seu potencial de gerar lucro. Ainda que às vezes as mensagens progressistas consigam se infiltrar na rede da produção capitalista, de modo geral a cultura musical proposta por essa produção promove a reificação da sexualidade, o individualismo crasso e, frequentemente, valores violentos, sexistas e contrários à classe trabalhadora. Em última instância, um grande número de profissionais talentosos destrói seu potencial artístico ao tentar criar uma música que atenda ao que é considerado vendável pelo mercado. Como Man apontou há muito tempo nas Teorias do mais-valor, “a produção capitalista é hostil a certos ramos da produção espiritual, particularmente a poesia e a arte”. [11]

Não podemos esperar que a arte popular de massa expresse temas progressistas de modo mais vigoroso e eficaz sem o fortalecimento de um movimento artístico associado em termos organizacionais e filosóficos às lutas populares. Nos últimos anos, a arte politicamente consciente tem se tornado cada vez mais evidente. A importância do Peace Museum [Museu da Paz], de Chicago, por exemplo, não deve ser subestimada. Nem o desenvolvimento do movimento nacional Artist’s Call Against U. S. Intervention in Central America [Convocação de Artistas contra a Intervenção dos Estados Unidos na América Central]. Essa mobilização, que se espalhou por 25 cidades do país, surgiu como reação a um apelo da Sandinista Cultural Workers Association [Associação Sandinista de Profissionais da Cultura]:

Que entre para a história da humanidade o dia do século XX em que, diante da gigantesca agressão que um dos menores países do mundo, a Nicarágua, estava prestes a sofrer, artistas e intelectuais de diferentes nacionalidades e gerações ergueram conosco a bandeira da fraternidade a fim de evitar nossa total destruição. [12]

Só em São Francisco, mais de duzentos artistas participaram de três grandes exposições. Recursos angariados em todo o país por esse movimento foram doados à Associação de Profissionais da Cultura da Nicarágua, à Universidade de El Salvador, a um sindicato salvadorenho e a pessoas refugiadas da Guatemala. Outro movimento de artistas em solidariedade à América Central que surgiu na região da baía de São Francisco escolheu o nome PLACA, que significa fazer uma marca, deixar um sinal. Essa organização dedicou uma rua inteira de murais ao tema da oposição à intervenção dos Estados Unidos na América Central. Em seu manifesto, artistas e responsáveis pela pintura dos murais declaram: “Integrantes do PLACA não se aliam à política desta administração que causou morte, guerra e desespero e que ameaça mais vidas a cada dia. Nosso objetivo é demonstrar, em termos visuais/ambientais, nossa solidariedade e nosso respeito pelo povo da América Central”. [13]

De modo semelhante à Convocação de Artistas, um movimento cultural contrário ao apoio dos Estados Unidos às políticas racistas e fascias do governo da África do Sul declarou outubro de 1984 o mês da Art Against Apartheid [Arte contra o Apartheid]. Por toda a área de Nova York e em outras cidades do país foram realizadas exposições e eventos culturais pelo engajamento na campanha para libertar Nelson Mandela e todas as pessoas presas por razões políticas na África do Sul e na Namíbia. No San Francisco Art Institute [Instituto de Arte de São Francisco], um grupo de artistas associado ao movimento Arte contra o Apartheid organizou um festival com duração de um mês, na primavera de 1985, em solidariedade ao povo sul-africano.

Um dos mais estimulantes acontecimentos culturais progressistas é o movimento da música, que construiu pontes sonoras entre o movimento trabalhador, o movimento afro-americano, o movimento pela paz e as lutas em solidariedade à América Central e à África do Sul. Artistas politicamente engajadas como Sweet Honey in the Rock, Holly Near e Casselberry-DuPreé trouxeram uma aguçada consciência dessas lutas para o movimento de mulheres. Bernice Johnson Reagon, do Sweet Honey in the Rock, publicou diversos artigos e fez vários discursos apelando àquelas pessoas que apoiam a música feita por mulheres para que se associassem às lutas da classe trabalhadora, aos movimentos antirracistas, às lutas pela paz e ao trabalho solidário. E qualquer pessoa que esteja familiarizada com as canções do Sweet Honey pode confirmar o fato de que elas promovem essas políticas de coalização de modo efetivo e pungente. Riscos ocupacionais à saúde – asbestose, silicose, bissinose e pulmão negro – são o tema de “More than a Paychek” [Mais do que um contracheque], por exemplo. Em outras canções o Sweet Honey evoca o líder dos direitos civis Faniee Lou Hamer, o ativista sul-africano assassinado Steven Biko e imigrantes do México que foram vítimas de leis repressivas à imigração dos Estados Unidos. Um tópico recorrente em sua música é a necessidade de que todas as pessoas se unam para evitar a deflagração da guerra nuclear.

O Sisterfire, festival anual de música feita por mulheres no qual o Sweet Honey in the Rock desempenhou um papel fundamental, tenta dar concretude ao conceito de política de coalização por vias culturais. Em um de seus manifestos, o Sisterfire é descrito como “uma saudação a todas as mulheres, pessoas da classe trabalhadora, minorias e pobres que se levantam contra os sistemas políticos e econômicos desumanizadores”.

Além disso,

A cultura, em sua forma mais legítima, expressa um caráter de massa ou popular. Ela não deve ser defininda nem perpetuada pelos poucos de uma elite para o beneficio de poucos. A cultura deve, inevitavelmente, refletir e registrar a tentativa da humanidade de viver em harmonia consigo mesma e com a natureza. […] Nós estamos construindo pontes entre o movimento de mulheres e outros movimentos por mudança social progressistas. Estamos brincando com o fogo e não queremos nada menos deste evento do que liberar as energias criativas, poderosas e extraordinárias de todas vocês. [15]

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Edição de 2018 do festival Sisterfire.

Holly Near, que há anos tem sido associada ao movimento da música feita por mulheres, bem como a muitas outras lutas populares, continua encorajando profissionais da música a ir além de preocupações sociais e políticas limitadas e promover a justiça ara mulheres e homens de todas as raças e nacionalidades. Em 1984, ela e Ronnie Gilbert fizeram a turnê “Dump Reagan” [Livre-se de Reagan], cantando para mais de 25 mil pessoas entre as 25 cidades pelas quais passaram. Outra ação exemplar no esforço de construção de pontes pelo movimento da música feita por mulheres foi a canção escrita por Betsy Rose para a campanha da ativista negra Mel King à prefeitura de Boston, intitulada “We May Have Come Here on Different Ships, but We’re in the Same Boat Now” [Podemos ter chegado aqui em navios diferentes, mas agora estamos no mesmo barco.]

Comunistas tiveram papéis importantes no avanço desse movimento da música. O Ad Hoc Singers, por exemplo, que se formou originalmente durante a campanha presidencial de 1980, faz canções que aprofundam a consciência de classe de quem as ouve. Uma de suas músicas, “People Before Profits” [Pessoas antes dos Lucros], apresentada durante a primeira campanha anti-Reagan, é praticamente um hino das lutas do povo. Talvez o mais importante em relação ao Ad Hoc Singers seja que elas trazem ao movimento musical uma dimensão de experiência concreta, militante, nessas lutas.

De fato, se pudermos antecipar a expansão da cultura popular atual, ela dependerá diretamente da influência crescente e cada vez mais profunda dos movimentos de massa. Uma arte progressista e revolucionária é inconcebível fora do contexto dos movimentos políticos por mudança radical. Se novas formas ousadas de arte surgiram com a Revolução Russa, a Revolução Cubana, e mais recentemente, as revoluções Sandinista e Granadina, então podemos ter certeza de que, se cumprirmos a tarefa que temos diante de nós de fortalecer e unir os movimentos de massa, nossa vida cultural florescerá. Profissionais da cultura, portanto devem se preocupar não só em criar arte progressista, mas em se envolver ativamente na organização de movimentos políticos populares. Uma relação exemplar entre arte e luta está no próprio cerne do jornal Freedomways – que tanto serve como um veículo de divulgação da literatura negra progressista como participa diretamente das lutas políticas da população afro-americana e de seus aliados.

Se profissionais da cultura utilizarem seus talentos em uma escala sempre crescente para realizar a tarefa de despertar e sensibilizar as pessoas para a necessidade de uma contestação de massa à ultradireita, as chances de fortalecer e de unir ainda mais o movimento antimonopolista — articulando classe trabalhadora, grupos afro-americanos, mulheres e pacifistas — crescerão imensamente. À medida que esse movimento registra vitórias, artistas atuais tiram inspiração da energia criativa desse processo e, como resultado, surgirão mais artistas. Se conseguirmos colocar essa dinâmica em ação, começaremos a nos mover de forma segura em direção à emancipação econômica, racial e sexual — de fato, rumo ao objetivo máximo do socialismo — e seremos capazes de antecipar um futuro pacífico, livre da ameaça de guerra nuclear.


Capítulo originalmente intitulado “A arte na linha de frente: mandato para uma cultura do povo” transcrito do livro “Mulheres, Cultura e Política”, publicado pela editora Boitempo.

Transcrição sem fins lucrativos.

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