Trecho retirado do livro “Stálin – História Crítica de uma Lenda Negra”, lançado em 2010 pela Editora Revan.
Com referência em particular ao papel desempenhado por ele no segundo período de desordens, não poucos estudiosos, retomando um tema que vimos presente já em Churchill, compararam Stálin a Pedro o Grande. [100] Mesmo a objeção levantada a tal propósito (“Pedro, ao contrário de Stálin, olhou para o Ocidente e quis abrir para ele o seu Estado” [101]) não parece persuasiva. A condenação das “disposições asiáticas”, das “medidas bárbaras, asiáticas” e das “providências asiáticas”, de que são responsáveis o governo e a burguesia da Rússia czarista é um momento essencial da agitação revolucionária de Stálin. [102] Pelo menos até outubro de 1917, ele não tem nenhuma dúvida de que o seu país é em todo nível mais atrasado em relação às democracias ocidentais, onde não se verificam os sangrentos pogroms contra os judeus, que grassam num “país semiasiático” (supra, cap. 5, § 9). Depois da conquista do poder, Stálin não só insiste na necessidade da assimilação da tecnologia ocidental, mas declara também que, se querem realmente estar à altura dos “princípios do leninismo”, os quadros bolcheviques devem saber unir “o ímpeto revolucionário russo” com “o espírito prático estadunidense”. Em 1932, sempre se referindo aos Estados Unidos, ele exprime apreço pelas “tradições na indústria e na praxe produtiva”: elas “têm algo de democratismo”. [103]
Mais persuasiva ainda parece ser a referência a Pedro o Grande para explicar a história da Rússia soviética, pelo fato de serem referidos explicitamente a ele Lênin (já em maio de 1918) e, sobretudo, Stálin, que, de vez em quando, parece tomar a figura do grande czar como modelo. [104] O próprio Trotski, mesmo denunciando a “traição” da revolução, escreve: “Em comparação com várias regiões e nacionalidades, o regime [staliniano] realiza em grande medida a obra histórica que Pedro I e seus camaradas realizaram para a velha Moscou; só que o faz em escala mais vasta e com ritmo mais veloz!”. É interessante também observar que, no final da sua viagem à União Soviética, em 1927, o grande filósofo Benjamin relata com interesse simpático a tese de alguns “literatos […] que voem no bolchevismo o coroamento da obra de Pedro o Grande”. [106] Enfim, poder-se-ia voltar atrás e lembrar uma previsão de Marx. Depois de ter acenado para as perturbações de uma violência inaudita que teriam sido provocadas pelas contradições seculares da Rússia czarista, ele conclui: “O ano de 1793 russo […] será a segunda virada da história russa e introduzirá uma civilização real e geral, no lugar da Civilização falsa e enganosa, introduzida por Pedro o Grande”. [107]
Contudo, enquanto pode servir parcialmente para iluminar a relação com a história da Rússia e com o segundo período de desordens, a comparação em questão deixa na sombra a II Guerra dos Trinta Anos e a extraordinária influência exercida por Stálin a nível planetário. A condenação, em 1924, da “disparidade escandalosa” entre as nações teorizada e imposta pelo imperialismo e o apelo a derrubar “a barreira que separava brancos e negros”, povos considerados “civis”ec povos excluídos dessa dignidade (supra, cap. 5, § 7); a aprovação de uma Constituição “profundamente internacionalista” – como Stálin sublinha ao apresentar o seu projeto – e baseada no “princípio de que todas as nações e raças têm direitos iguais”, independentemente da “cor da pele”, da língua e do grau de desenvolvimento econômico e militar de cada uma delas. [108] Tudo isso não podia não suscitar um eco profundo não só nas colônias, mas também nos povos de origem colonial colocados no próprio coração do Ocidente.
No sul dos EUA, onde ainda assola o regime de white supremacy, se difunde um clima novo; olha-se com esperança para a União Soviética e para Stálin como o “novo Lincoln”, o Lincoln que teria dado fim, desta vez, de modo concreto e definitivo, à escravidão das negros, à opressão, à degradação, à humilhação, à violência e aos linchamentos que eles continuavam a sofrer. [109]
Enquanto avança para a autocracia, a URSS de Stálin influencia poderosamente a luta dos afro americanos (e dos povos coloniais) contra o despotismo racial. No sul dos EUA se assiste a um fenômeno novo e preocupante do ponto de vista da casta dominante: é a crescente “impudência” dos jovens negros. Estes, graças aos comunistas, começam, de fato, a receber o que o poder teimosamente lhes negava, a saber, uma cultura que vai muito além da instrução elementar tradicionalmente transmitida aos que estão destinados a fornecer trabalho semiescravo a serviço da raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo partido comunista no norte dos Estados Unidos ou nas escolas de Moscou, na URSS de Stálin, os negros se empenham em estudar economia, política, história mundial; interrogam essas disciplinas para compreender também as razões da dura sorte reservada a eles num pais que se comporta como campeão da liberdade. Aqueles que frequentam tais escolas passam por uma mudança profunda: a “impudência” censurada a eles pelo regime da white supremacy é na realidade a autoestima deles, até aquele momento impedida e espezinhada. Uma negra, delegada no Congresso internacional das mulheres contra a guerra e o fascismo, que se realiza em Paris em 1934, fica extraordinariamente impressionada com as relações de igualdade e fraternidade, apesar das diferenças de língua e de raça, que se instauram entre os participantes dessa iniciativa promovida pelos comunistas: “Era o paraíso na terra”. Aqueles que chegam a Moscou — observa um historiador estadunidense contemporâneo — “experimentam um sentido de liberdade inaudito no Sul”. Um negro se apaixona por uma branca soviética e se casam, mesmo se depois, ao voltar à Pátria, não pode levá-la consigo, sabendo o destino que no Sul aguarda aos que se mancham com a culpa da miscegenation e do abastardamento racial. [110]
As esperanças dos afro-americanos colocadas no “novo Lincoln” não eram tão ingênuas como poderiam parecer. Reflitamos sobre os tempos e as modalidades que caracterizam o fim do regime de supremacia branca. Em dezembro de 1952, o ministro estadunidense da Justiça envia à Corte Suprema, que discutia a questão da integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: “A discriminação racial leva água à propaganda comunista e suscita dúvidas também entre as nações amigas sobre a intensidade da nossa devoção à fé democrática”. Washington — observa o historiador estadunidense que reconstrói tais acontecimentos — corria o perigo de separar as “raças de cor” não só no Oriente e no Terceiro Mundo, mas no próprio coração dos Estados Unidos: também aqui a propaganda comunista conseguia um considerável sucesso na tentativa de ganhar os negros para a “causa revolucionária”, fazendo desabar a sua “fé nas instituições americanas”. [111] Não há dúvida: nesses acontecimentos, a preocupação com o desafio objetivamente representado pela URSS e pela influência por ela exercida sobre os povos coloniais e de origem colonial desempenhou um papel essencial.
Não é só por causa do impulso de algum modo dado ao processo de emancipação dos afro-americanos que Stálin influiu indiretamente na configuração da própria democracia no Ocidente. O discurso de apresentação do projeto de nova Constituição condena em bloco as três grandes discriminações que caracterizaram a história do Ocidente liberal: “Não é a renda, nem a origem nacional, nem o sexo” que deve determinar a colocação política e social, mas só “as capacidades pessoais e o trabalho pessoal de todo cidadão”. [112] No momento em que se exprime assim, as três grandes discriminações ainda estão presentes em diferente forma e grau neste ou naquele país do Ocidente liberal. Enfim, ao pronunciar-se pela superação das três grandes discriminações, Stálin declara também que a nova Constituição está destinada a garantir “o direito ao trabalho, o direito ao descanso, o direito à instrução” e a assegurar “melhores condições materiais e culturais”, tudo no âmbito da realização do “democratismo socialista”. [113] É a teorização dos “direitos sociais e econômicos” que, segundo Hayek, representa o legado ruinoso da “revolução marxista russa” e influencia profundamente a reivindicação do estado social no Ocidente!”
Voltemos à Rússia. O leitor deve ter notado que, ao falar de “stalinismo”, faço uso de aspas. A expressão é usada pelos seguidores atuais de Trotski em relação às realidades políticas mais diferentes, por exemplo, para classificar o grupo dirigente da China pós-maoísta. Mas, mesmo querendo referir-se de modo exclusivo à URSS, a categoria de “stalinismo” não é persuasiva; ela parece pressupor um conjunto homogêneo de doutrinas e de comportamentos que não existe. Nas três décadas em que administrou o poder, vemos Stálin se esforçar em elaborar e pôr em prática um programa de governo, tomando nota do desaparecimento da perspectiva do triunfo planetário da revolução socialista e esclarecendo a diferença entre a utopia (que o legado, por um lado, da teoria de Marx e, por outro lado, da expectativa messiânica de um mundo totalmente novo suscitada pelo horror da I Guerra Mundial) e o estado de exceção (que na Rússia assume uma duração e uma agudeza excepcionais por causa da convergência de duas crises gigantescas, o segundo período de desordens e a II Guerra dos Trinta Anos). Ficando clara a sua vontade de não colocar em discussão o monopólio do poder exercido pelo partido comunista, Stálin busca respeitosamente passar do estado de exceção a uma condição de relativa normalidade, com a realização de uma “democracia soviética”, de um “democratismo socialista” e de um socialismo “sem ditadura do proletariado”. Mas essas tentativas fracassam. É significativo como logo depois da morte de Stálin é “regulado” o problema da sucessão: a liquidação de Beria é uma espécie de ajuste de contas em estilo mafioso, é uma violência privada que não faz referência alguma nem à ordem jurídica estatal, nem ao estatuto do partido.
A comparação entre Stálin e Pedro o Grande fica agora totalmente problemática. Olhando bem, o segundo período de desordens não termina tampouco com a chegada da autocracia. Essa chegada coincide com o começo de um novo prolongado estado de exceção, que vê o alastrar-se, primeiro, de um novo espantoso conflito mundial e, depois, de uma guerra fria suscetível a todo momento de transformar-se em apocalipse nuclear. Poder-se-ia dizer que o segundo período de desordens termina, na realidade, com a derrocada da URSS. Assim como os jacobinos, tampouco os bolcheviques conseguem adaptar-se ao desaparecimento ou à atenuação do estado de exceção e acabam, por isso, parecendo obsoletos e superficiais à maioria da população. Depois de ter realizado a superação da “crise de toda a nação russa”, os bolcheviques são enfim vencidos pela chegada daquela relativa normalidade, que é também o resultado da sua ação.
É no plano internacional, porém, que se revela mais sólida a influência da Revolução de Outubro e daquele que por três décadas dirigiu a Rússia soviética. Pode-se fazer ironia sobre a grandiloquência de uma Constituição que nunca entrou em vigor, mas é preciso ter presente que também as declarações de princípio puramente abstratas exercem uma eficácia histórica. Podemos retirar-nos horrorizados diante de um quadro que vê a democracia (com o colapso do despotismo racista e colonialista e das três grandes discriminações) e mais ainda a democracia social avançar na onda de um desafio proveniente de um regime ditatorial e propenso ao terror; mas abandonar-se a uma reação desse gênero significa, em última análise, fugir da complexidade do processo histórico. Os que prefeririam ter diante de si um quadro mais simples fariam bem em refletir sobre uma observação de Marx: “É o lado mau que produz o movimento que faz a história”. [115]
[100] Em particular Tucker (1990), pp. 13-24.
[101] Graziosi (2007), p. 24.
[102] Stálin (1971-1973), vol.2, pp. 107-08 e 114-14 (= Stalin, 1952-1956, vol. 2, oo. 134, 142 e 144)
[103] Stálin (1971 – 1973), vol. 6, pp. 164-165 (= Stálin, 1952, vol. 13, pp. 100-02).
[104] Lênin (1955-1970), vol. 27, p. 309; Stálin (1971-1973), vol. 11, p. 221
[105] Trotski (1988), p. 863 (= Trotski, 1968, pp. 156-57)
[106] Benjamin (2007), p. 45.
[107] Marx, Engels (1955-1989), vol. 12, p. 682.
[108] Stálin (1971-1973), vol. 14, p. 69 (= Stálin, 1952, pp. 624-25).
[109] Kelley (1990), p. 100.
[110] Keney (1990), pp. 94-96.
[111] Em Woodward (1966), pp. 131-34.
[112] Stálin (1971-1973), vol. 14, pp. 69-70 (= Stálin, 1952, p. 625).
[113] Stálin (1971-1973), vol. 14, pp. 74 e 89 (= Stálin, 1952, pp. 629 e 643).
[114] Hayek (1986), p. 310.
[115] Marx, Engels (1955-1989), vol. 4, p. 140.